O depoimento emocionado de uma mãe cuja filha tem no uso da cannabis um alívio para a sua dor marcou a audiência pública realizada nesta quinta (26), na Comissão de Direitos Humanos do Senado, para discutir a descriminalização do cultivo da planta para uso próprio. Está em tramitação na Casa uma sugestão legislativa, a 25/2017, que trata do tema, com amplo apoio da população em consulta realizada no site do Senado.
“Bloquear o ‘autocultivo’ é a mesma coisa que dar uma sentença de sofrimento ou de morte ao paciente porque você não está permitindo que ele busque a melhor resposta para um alívio… Vocês já viram um filho convulsionar? Por mais de uma hora, pelo dia todo, em vários momentos… E isso pode levar à morte em casos como o da minha filha. Eu vivi isso por 11 anos. Então só peço que vocês não esperem ter a dor. Busquem o conhecimento antes de dizer não… Cultivar não é crime, não pode ser crime. Lutar pela vida não pode ser crime”, afirmou, com lágrimas nos olhos, Cidinha Carvalho, presidente da Associação de Cannabis Medicinal (Cultive).
Primeira a se pronunciar na audiência pública, Cidinha é mãe de uma menina com Síndrome de Dravet, que causa crises epiléticas e atraso no desenvolvimento psicomotor. No fim do ano passado, ela conseguiu permissão na Justiça para o cultivo caseiro da planta, que auxilia no tratamento da criança.
Consenso sobre uso medicinal
A discussão sobre o tema foi convocada pelo senador Sérgio Petecão (PSD-AC), relator da sugestão legislativa na Casa. O curioso é que, em setembro, ele havia se manifestado de forma contrária ao prosseguimento da tramitação no Senado. Mas, nesta quinta, ao fim da audiência pública, Petecão reconheceu que há consenso em relação ao cultivo para uso estritamente medicinal:
“A proposta é polêmica, até porque é uma sugestão popular… Mas uma coisa me tranquilizou: não vi ninguém aqui, pelo menos aqui, contra o uso de cannabis, o uso de maconha para fins medicinais.”
Para a audiência, foram chamadas pessoas a favor e contra a descriminalização do plantio da cannabis para uso pessoal. A jornalista Andreia de Souza, membro do Movimento Brasil Sem Drogas, disse temer que o cultivo caseiro, ainda que para fins medicinais, abra brecha para que mais pessoas tenham acesso à planta.
“No Estado do Colorado (EUA), a venda da droga é proibida para menores de 21 anos. Mesmo assim, sete em cada dez adolescentes em tratamento contra dependência química admitiram ter usado ‘maconha medicinal’ de outra pessoa e, em média, isso ocorreu 50 vezes por ano”, apontou.
Nos Estados Unidos, há uma forte resistência das indústrias de bebidas e de cigarros ao uso recreativo da maconha, que já é legalizado em alguns estados. Conforme noticiou The Intercept no ano passado, essas marcas financiam campanhas contrárias à cannabis porque temem perder mercado para a erva.
Supremo discute descriminalização
Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e secretário executivo da Plataforma Brasileira da Política de Drogas, afirmou, por sua vez, que é preciso abandonar os tabus sobre o tema:
“É preciso deixar de lado o tabu moral e é preciso acreditar que uma política de drogas precisa ser justa, eficaz e humana. Tudo que a nossa política antidrogas hoje não é. A descriminalização do cultivo de cannabis para uso próprio é uma realidade. E se o Senado não se manifestar, o Supremo Tribunal Federal, na análise do recurso extraordinário 635659, irá tratar desse assunto. O voto do ministro (Luís Roberto) Barroso nesse julgamento já diz: quem plantar até seis plantas florescendo será considerado usuário.”
O vice-presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, o advogado Paulo Fernando Melo da Costa, que também preside o diretório regional do partido Patriota (ligado a Jair Bolsonaro) no Distrito Federal, criticou o posicionamento que está se desenhando no STF:
“Quando o Supremo quer descriminalizar, e já está 3 a 0 a votação, ele está fazendo ao arrepio da lei, ao arrepio da Constituição e desta Casa. Em outros países, como em Portugal, [a descriminalização do cultivo e do uso] não foi feita pelo Poder Judiciário, passou pelo parlamento.”
A professora Andrea Galassi, coordenadora do Centro de Referência Sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB, argumentou que as pessoas vão sempre usar drogas, apesar de todas as proibições, e que essa restrição só leva ao consumo de produtos sem qualidade, que podem prejudicar ainda mais severamente o cidadão:
“Será que o Brasil vai legalizar a maconha? Essa pergunta eu não faço mais. A pergunta é ‘quando’. Porque acredito que isso vá acontecer”.
Na consulta feita no site do Senado, a sugestão tinha até a tarde desta sexta (27) 123.729 votos favoráveis a seu prosseguimento. Outras 13.786 pessoas haviam votado não. Para começar a tramitar, a proposta, que foi apresentada por um cidadão, precisou alcançar 20 mil apoios em quatro meses. Caberá ao senador Petecão, porém, em seu relatório final, decidir pelo prosseguimento ou não da matéria na Casa.
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