Orçamento cada vez mais magro, greves recorrentes e o fantasma da privatização pairando no ar: o retrato da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) reflete o cenário apresentado em outras instituições públicas de ensino superior do Brasil, como as universidades estaduais de São Paulo, da Bahia e até mesmo da rede federal.
“Em praticamente todos os Estados da Federação há informes de que as universidades estaduais e municipais passam por momentos difíceis, em muitos casos interrompendo serviços que beneficiam sobretudo a parcela mais carente da população”, manifesta-se, em nota, a Associação Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais e Municipais.
A crise que assola o Rio de Janeiro trouxe consequências extremas às universidades Norte Fluminense (Uenf), da Zona Oeste (Uezo) e do Estado do Rio de Janeiro. Hoje, o governo deve R$ 402,5 milhões às três instituições. Com salários atrasados e sem condições mínimas para voltar a operar — como a falta de serviços de higiene e segurança dentro dos campi — os funcionários e alunos temem o fechamento das portas, a municipalização ou privatização dos serviços.
Em resposta aos cortes, representantes de diversas instituições de ensino e pesquisa em nível superior se organizaram em manifestações que estão acontecendo dentro da Uerj, desde o início do mês, em sua defesa. Na manhã desta terça-feira, dia 24, os manifestantes realizaram um enterro simbólico da educação superior pública, que foi chamado de “Uerj de luto na luta”.
A presidente do sindicato dos trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz, Justa Helena Franco, esteve no protesto “abraço à Uerj”, dia 19, e falou ao The Intercept Brasil:
“É um projeto muito bem articulado de privatização. A voz corrente é a de que só haveria condições de fornecer o básico e de que as universidades teriam de seguir um modelo americano, um modelo de países desenvolvidos em que as pessoas teriam de pagar. Ora, quem teria dinheiro para pagar para entrar na universidade? Isso é uma exclusão da população sem precedentes no nosso país.”
A pauta do financiamento privado de universidades públicas foi mais uma vez defendida em um editorial do jornal O Globo, publicado dia 22 de janeiro, e em um artigo do ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso, publicado no mesmo jornal uma semana antes.
“A crise da Uerj revela não apenas a falência do Estado do Rio, mas também de um modelo de financiamento da universidade no Brasil”, escreveu Barroso, que tem graduação e doutorado feitos na Uerj e leciona na faculdade de direito de lá. O ministro defende que “a universidade brasileira vai ter de aprender a viver com recursos próprios, só contando com dinheiro público para alguns projetos específicos”. O artigo foi rebatido por representantes da universidade, e o jornal contra-argumentou que “a única alternativa para compensar a falta de dinheiro público são recursos privados”.
Em uma resposta irônica, os manifestantes criaram a iniciativa “vaquinha Uerj” que, em vez de dinheiro, pede pela mobilização da sociedade. Um texto no site do movimento explica: “Para manter uma universidade do porte da Uerj com contribuições voluntárias, precisaríamos de 10 MIL doadores bancando R$ 9 mil mensais. É uma vaquinha impossível! Voluntarismo e filantropia não sustentam grandes universidades. Por isso, precisamos pressionar o governo para que invista o dinheiro que os contribuintes já pagam na forma de impostos”.
Em São Paulo, a saída para a crise foi drástica. No ano passado, o estado contingenciou R$ 233 milhões das três universidades sob sua tutela: a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp). Os cortes começaram em 2015 e, para 2016, cálculos estimam déficit de R$ 230 milhões para a Unicamp e de R$ 659,91 milhões para a USP. A saída apresentada pelas reitorias foi criar programas de incentivo à demissão voluntária e redução da jornada de trabalho com redução proporcional do salário.
Na Bahia, as quatro universidades estaduais (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, Universidade do Estado da Bahia – UNEB e Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC) protestam juntas contra a grave crise orçamentária que enfrentam. Em notas públicas, as instituições alertam que, desde 2015, denunciam “a grave crise que punha em risco o próprio funcionamento”. Segundo levantamentos internos, entre 2013 e 2016 foram cortados cerca de R$18 milhões do orçamento de manutenção apenas da Uesb.
Já entre as federais, o gargalo se deu quando, a partir de 2012, a rede foi ampliada e o orçamento não acompanhou a expansão. Os cortes ainda não chegaram aos salários, mas já impedem a manutenção da infraestrutura das instituições. É o que explica Orlando Afonso do Amaral, presidente da comissão de orçamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes):
“Os orçamentos têm sido atualizados de forma insuficiente. E, para a parte de manutenção do custeio, que é fundamental para manutenção das atividades de dia a dia, pagar contas de luz e reformar os laboratórios, por exemplo, esse valor está sendo reduzido a cada ano. Em 2016, foram R$3,3 bilhões para todas as federais, este ano serão R$3 bilhões.”
Custeio é a parte do orçamento destinada aos gastos com a manutenção e a conservação da infraestrutura, aquisição de material de trabalho e pagamento de serviços terceirizados, como limpeza e segurança. Na Uerj, os cortes no custeio se seguem desde 2013. O orçamento de custeio, com valores ajustados pela inflação, caiu de R$576 milhões em 2013, para R$506 milhões em 2014 e R$476 milhões em 2015. Os pagamentos de 2016 não foram concluídos, segundo uma nota oficial do governo do Rio. O governo informa que “76% do orçamento total da Uerj foram efetivamente repassados” e que foram repassados R$ 189,2 milhões em custeio.
Limitar o orçamento da educação superior é limitar também as chances de crescimento de milhões de jovens que ingressam nas universidades públicas por cotas afirmativas, e o desmonte da universidade do Rio é um retrato claro disso. A Uerj foi a primeira universidade no país a adotar o sistema de cotas, quase dez anos antes da Lei de Cotas.
Roberto Lourenço é aluno do quinto período da faculdade de biologia. Ele mora na baixada fluminense e precisa da bolsa para arcar com as despesas do transporte, afirma que “se não fosse a Uerj, não teria acesso a uma formação de qualidade”. Lourenço afirma que colegas de curso já desistiram das aulas por não terem condições de pagar pelo transporte ou pela alimentação e que muitos já imploraram aos professores para cancelarem provas, porque as bolsas estavam atrasadas, e eles não teriam como ir à faculdade.
Defender a cobrança de mensalidades para alunos de universidades públicas é ir contra o movimento de inclusão social que levou pessoas como Lourenço — e outros 12 mil cotistas da Uerj — a uma educação superior de qualidade.
Apesar dos cortes, as universidades públicas conseguem permanecer entre as melhores do país. Das 50 melhores universidades da América Latina em 2016, 18 são universidades públicas brasileiras, apenas 5 particulares. No entanto, as quedas de investimentos já se revertem em queda de qualidade. Entre 2013 e 2016, quando os cortes se intensificaram, a USP, melhor universidade do Brasil, caiu aproximadamente 100 posições no ranking mundial: passou do 158º lugar para um empate do 251º ao 300º colocados.
Para Javier Botero Álvarez, especialista do Banco Mundial que monitora a educação superior na América Latina e fez uma análise sobre o ranking, “o montante investido por aluno nas universidades públicas brasileiras ainda é baixo” se comparado com outros países. Ele acredita que a falta de financiamento adequado ainda será um problema para a educação superior brasileira “por alguns anos”. Se depender do atual governo e de suas medidas de austeridade, serão, mais especificamente, vinte anos.
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