Está enganado quem insiste em dizer que o jornalismo morreu. A geringonça continua aí, viva, se bulindo, tomando lapadas e ainda assim cintilando. Sua potência – para o bem e para o mal – ficou clara nos últimos dias, quando a apresentação do Cordão da Bicharada, tradicional grupo de Cametá, no Pará, viralizou após ser publicada pelo portal Metrópoles direto do Tapete Verde da COP30. Em pouco tempo, um vídeo mal descrito e um texto apressado estavam na boca e nas telas de milhões de pessoas. Virou assunto nacional.
É sempre preciso lembrar: essa geringonça que produz notícia tem funções múltiplas. Pode informar, provocar pensamento. Mas, usado de maneira descuidada, o jornalismo também destrói, esculhamba, achaca. Infelizmente, é nesse segundo território, estreito e raso, que se encaixa a pequena matéria do Metrópoles sobre o grupo criado há 50 anos e cujos integrantes são, em maioria, crianças.
O texto intelectualmente tacanho é uma pequena joia de desinformação e arrogância. Ao descrever os integrantes do Cordão como “atores vestidos de animais rastejando”, o portal não apenas errou factual e culturalmente (não são atores, tampouco “rastejam”) como expôs um vício cada vez mais comum na imprensa que se diz profissional: um jornalismo autocentrado, incapaz de olhar para fora do próprio umbigo e que transforma tudo o que não entende em exotismo, estranheza ou, nesse caso específico, constrangimento.

O resultado foi imediato e previsível: ridicularização nacional, avalanche de comentários e, claro, o uso político da desinformação por influenciadores da direita e extrema direita. Kim Kataguiri, deputado federal por São Paulo e filiado ao União Brasil, por exemplo, riu da apresentação dizendo tratar-se de “gente fantasiada se arrastando de quatro” (vi no Facebook do mesmo).
Firmino Cortada, com seus 2,1 milhões de seguidores no Instagram, ironizou que o desfile merecia “nota dó”. E Nikolas Ferreira, deputado federal de Minas Gerais pelo PL, sempre atento a qualquer fagulha de indignação fabricada, entrou na onda ao criticar o Cordão com um reels do influenciador Danuzio Neto (a postagem não está mais disponível).
Eles não precisaram inventar nada: bastou utilizar o que o jornalismo profissional lhes entregou de bandeja.
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“Que vergonha”, “toscos”, “quanto pagaram para esse show de horrores?” e outras pérolas do mesmo teor inundaram as redes – uma amostra da facilidade com que se debocha daquilo que não se conhece, algo típico das redes sociais, mas que não deveria ser comum no jornalismo.
Aliás, jornalismo deveria servir para combater isso.
Conheço de perto o Cordão da Bicharada e seu criador, o Mestre Zenóbio, artista quase octogenário. Estive em Cametá, em março deste ano, acompanhando a realização de um filme sobre o grupo, dirigido pela artista Rivane Neuenschwander e pelo cineasta Cao Guimarães. O making of está disponível aqui, recomendo fortemente. O filme integrou a exposição Brasil de Susto e Sonho, sobre a obra de Rivane, cuja curadoria assinei.
A cidade, a cerca de quatro horas de Belém, é conhecida por seu carnaval e pelos cordões, grupos de mascarados que percorrem povoados ribeirinhos criando espetáculos visuais inesquecíveis. Ali misturam-se bichos de todos os cantos, dos botos aos sapos, das tartarugas aos ursos polares, das borboletas às girafas.
Trata-se de imaginação, criação, essas coisas que brasileiro tem de sobra e nos torna um país único.

O Cordão da Bicharada nasceu em 1974, em plena ditadura militar, quando a Transamazônica era vendida como símbolo de “progresso”, do homem “vencendo” a floresta. Zenóbio, ao contrário, escolheu homenagear os animais e denunciar a devastação ambiental.
Suas fantasias artesanais – onça, cobra, macaco, peixe-boi – são mais que adereços: são gestos políticos, celebrações da floresta e alertas sobre sua destruição. Como qualquer manifestação popular autêntica, o cordão é território de saberes: saber costurar, saber dançar, saber narrar a Amazônia com o corpo, saber mover-se como o bicho que se homenageia – não somente um simples “rastejar”.
Conversei com o músico e produtor Júnior Gonçalves, um dos filhos de Zenóbio, sobre a repercussão nas redes sociais:
“Pra gente, foi pesado demais. Graças a Deus as crianças não estavam entendendo direito, mas nós e os pais, sim. Ficamos abalados, acompanhando novas distorções a toda hora. Papai ficou muito triste. Tínhamos outras apresentações, mas decidimos voltar antes para Cametá. O clima estava pesado. Senti que usaram a nossa imagem com sentido político, para agredir partidos”.

Júnior está coberto de razão: como dito antes, o conteúdo do Metrópoles foi fartamente utilizado nas redes de nomes que vêm criticando a própria existência da COP em Belém e, por tabela, o governo Lula. No Google Trends, a procura pela Vila de Juaba e Cametá bombaram.
Em nenhum momento o texto do Metrópoles se interessou pela história do grupo. Não se informa que a apresentação na Green Zone vinha de um cordão tradicional do carnaval paraense – aliás, o nome do Cordão nem sequer é citado. Em vez disso, inventou-se que eram atores.
No próprio vídeo publicado pela coluna de Andreza Matais (com André Shalders e Valentina Moreira), ouvimos aplausos, alegria, acolhimento – tudo oposto ao suposto “constrangimento” narrado pela matéria.
Essa não é a primeira vez que o autodenominado jornalismo profissional dá gasolina para a direita e a extrema direita atacarem pessoas e regiões: em outubro de 2022, logo após o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais, veículos como CNN e UOL relacionaram o bom desempenho de Lula ao número de analfabetos no Nordeste. Logo, Jair Bolsonaro e centenas de perfis utilizaram as manchetes para “provar” a suposta baixa qualidade do voto nordestino. E o que aconteceu? Os jornais caíram matando em Bolsonaro porque ele estaria sendo preconceituoso com o NE. Escrevi uma coluna aqui no Intercept Brasil a respeito.
‘Quando a cultura amazônica surge fora da caricatura esperada, com agência própria, o jornalismo autocentrado não sabe lidar’.
É isso que venho analisando há anos: a desumanização no jornalismo. A mesma lógica que exotiza pessoas pobres, que trata favelas como laboratório de tragédia, que reduz populações nordestinas e amazônicas a estereótipos fáceis.
Quando a coluna associa brincantes amazônicos ao gesto de “rastejar”, deixa de ver o que é performance para sugerir humilhação.
E isso tem nome claro, ainda que cause desconforto dizer: xenofobia. Uma xenofobia que, às vezes, se fantasia de humor, de comentário, de leveza; mas que segue sendo xenofobia quando o que se entende como norma olha para o outro como “estranho”. Não é “exagero identitário”; é fato histórico, político e linguístico.
A forma como o Metrópoles tratou os artistas e moradores de Cametá reforça um padrão antigo: Norte e Nordeste são sempre comentados – quase nunca ouvidos. A Amazônia segue sendo cenário: floresta de fundo, personagens folclóricos, exotismo pronto para ser embalado e consumido pelos algoritmos da “metrópole”. Quando a cultura amazônica surge fora da caricatura esperada, com agência própria, o jornalismo autocentrado não sabe lidar. Então, ri.
Não se trata de cancelar jornalistas ou portais, e sim demandar que nós, que produzimos informação e representação, tenhamos mais cuidado com o que noticiamos – esteja essa notícia em São Paulo, Nova York ou Pará. Isso implica reconhecer que o gesto da Bicharada não é submissão, mas ritual. Implica saber que o corpo que dança carrega memória, comunidade, território e não é matéria-prima para meme.
O pior, porém, vem depois: a instrumentalização. A indignação fabricada, amplificada por perfis de enorme impacto cultural, transforma erro em arma. Primeiro, vem o equívoco jornalístico; depois, sua multiplicação dirigida; por fim, a transformação do real em caricatura. E quem paga essa conta não são colunistas nem parlamentares ou influencers: são os moradores de Juaba, que precisaram lidar com chacotas, mentiras e agressões.
Que deixaram, fique registrado, de realizar mais três apresentações em Belém, segundo me contou Júnior, e voltaram para Cametá com suas fantasias dentro das sacolas. Dezenas de pessoas que estavam felizes em mostrar a Vila de Juaba para o mundo.
Ainda bem que essa história não vai terminar assim, já que, após a repercussão do caso, o Cordão da Bicharada foi convidado pelo governador do Pará, Helder Barbalho, do MDB, para fazer uma nova apresentação no encerramento da COP30.
‘Quem decide se um gesto é dança ou ridículo?’.
Mesmo assim, ainda há dezenas de vídeos zombando do cordão, memes no TikTok, threads no X, tudo no mesmo tom de ignorância satisfeita. Poucos desses críticos se deram ao trabalho de pesquisar sobre Cametá, sobre Zenóbio. Ridicularizar o que não se conhece é fácil; mais fácil ainda quando o jornalismo, que deveria impedir esse abismo, ajuda a cavá-lo.
E então fica a pergunta essencial: quem estava mesmo constrangido? Quem decide se um gesto é dança ou ridículo?
O Cordão da Bicharada não rasteja. Ele anda, pula, gira, transforma. Ele atravessa. Quem rastejou, desta vez, foi o jornalismo – incapaz de se erguer à altura da responsabilidade que tem. Pior: apesar de centenas de pessoas apontarem os erros em posts do próprio Metrópoles e dos colunistas responsáveis, a matéria segue no ar sem qualquer reparo.
Diversas matérias na imprensa brasileira falaram que o vídeo “foi motivo de piada nas redes sociais” e, ao mesmo tempo, também informaram que não se tratava de atores. Mas nada disso fez com que o portal e o time de colunistas se retratassem.
Uma arrogância que mostra o tipo de cuidado que o portal dá ao Pará – ou melhor, ao Brasil que não é umbigo.
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