Praticamente 90% das metas climáticas apresentadas pelos países para serem discutidas na COP30 citam “tecnologias digitais” como soluções para mitigação e adaptação climática. Mas quase nenhuma delas propõe compromissos para reduzir a própria pegada ambiental da indústria tecnológica, que hoje responde por entre 1,5% e 4% das emissões globais totais de gases do efeito estufa.
Essa falta de detalhamento sobre as emissões produzidas pelo desenvolvimento de tecnologias digitais, que crescem vertiginosamente com os avanços e a popularização da inteligência artificial, dificulta a tomada de medidas de mitigação e adaptação. É como um ponto cego que pode retardar a responsabilização das big techs pelo seu impacto nas mudanças climáticas.
Essa é uma das conclusões de um relatório do International Telecommunications Union, o braço de tecnologia da Organização das Nações Unidas, publicado nesta quarta-feira, 12, durante a COP30. Tecnologia e inteligência artificial foram dois temas escolhidos pela presidência da COP30 para os dois primeiros dias de evento.
Para se ter uma ideia, quatro das gigantes digitais – Amazon, Meta, Microsoft e Google – registraram um aumento médio de 150% em suas emissões indiretas de gases de efeito estufa entre 2020 e 2023, segundo outro relatório da ITU publicado em junho deste ano.
Os países deixam de detalhar as emissões do setor de tecnologia por uma questão metodológica. As NDCs, sigla para “contribuição nacionalmente determinada”, são o instrumento em que países formalizam em quanto – e como – irão reduzir suas emissões. Esse compromisso se dá por setores pré-definidos pelas diretrizes do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática.
Isso significa, por exemplo, que os países apresentam compromissos para reduzir emissões do setor de energia ou indústria, de maneira geral. Mas a falta de segmentação por subáreas dificulta o diagnóstico e a cobrança de medidas específicas de alguns setores, como as big techs.
“Já que eles não estão medindo de maneira separada, não é possível entender, ou eu estou certa de que os países sequer sabem quais são as emissões vindas do setor digital ou de IA especificamente”, disse Ana Fernández, gerente de programas na ITU e uma das autoras do relatório.
Segundo Fernández, as emissões do setor digital podem estar espalhadas pelas outras categorias. O relatório explica que as emissões ligadas à eletricidade para data centers podem estar consideradas na categoria de “energia”, enquanto as emissões resultantes da fabricação de dispositivos e hardware estariam sob a categoria “indústria”.
“Isso significa que países não estão nem quantificando emissões específicas do digital nem incluindo metas específicas para o digital”, diz o relatório. “Trazer uma contabilidade e metas mais claras para data centers, redes e dispositivos em outras estratégias nacionais fortaleceria a credibilidade geral dos compromissos climáticos e ajudaria a alinhar a ambição digital com uma descarbonização proporcional”.
A análise fez um recorte temporal e considerou 53 metas apresentadas entre 1 de janeiro e 29 de setembro. A do Brasil, apresentada em novembro de 2024, ficou de fora da análise. Até o início da COP, 112 países haviam apresentado novas metas climáticas, segundo o monitor de NDCs do site Climate Watch.
Quase 90% das metas fazem referência a tecnologias digitais como facilitadoras para cumprir os compromissos, especialmente na forma de plataformas de monitoramento e verificação ou sistemas de alerta antecipado de desastres. O relatório também destaca o crescente uso de IA para previsões meteorológicas e monitoramento do uso do solo.
Mas, em entrevista ao Intercept Brasil, a pesquisadora argentina radicada no Reino Unido Cecilia Rikap alertou que muitas dessas soluções são ofertadas pelas próprias big techs, que além de ganhar financeiramente com elas, acabam criando um monopólio intelectual sobre as formas de lidar com a crise climática.
“É ao mesmo tempo uma estratégia de controle do discurso, de criação de uma narrativa que ignora a responsabilidade direta que elas têm no agravamento da crise ecológica e, ao mesmo tempo, oferece a elas um negócio”, contou Rikap em entrevista publicada em outubro deste ano.
A única exceção na análise do ITU foi Vanuatu, um país-arquipélago que fica no Pacífico Sul. Em suas NDCs, Vanuatu dedicou um capítulo separado para as emissões provenientes de tecnologias de informação e comunicação.
A NDC do Brasil faz 43 menções à palavra tecnologia e dez menções a “digital”. Há por exemplo a meta de aquisição e produção de tecnologias limpas; promover investimentos em pesquisa, desenvolvimento e uso em escala comercial de processos produtivos baseados em tecnologias de baixo carbono e de baixo impacto ambiental; e uso de geotecnologias para promoção da regularização fundiária.
Uma das diretrizes da Estratégia Nacional de Mitigação é “aproveitar as transições climática e digital para alavancar o país à posição de vantagem comparativa na transformação digital e no desenvolvimento, difusão e transferência de tecnologias e soluções verdes e climáticas para os diferentes setores da economia, incluindo novas tecnologias digitais e biotecnologia”.
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Há duas menções à IA nas metas brasileiras, quando é mencionado o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial para o período de 2024 a 2028. A meta brasileira diz que o Plano reconhece que a inteligência artificial é ferramenta capaz de alavancar o desenvolvimento social e econômico do Brasil.
Segundo a NDC brasileira, “o país busca superar lacunas tecnológicas, compreendendo que a urgência climática não poderá ser enfrentada sem avanços em tecnologias específicas que nos prepararão para o futuro”. Para tanto, o Brasil alega acolher colaboração internacional, de atores públicos e privados, para a construção de capacidades tecnológicas endógenas.
O relatório da ITU também não faz uma diferenciação entre os diferentes tipos de soluções digitais. Inteligência artificial, por exemplo, é um termo guarda-chuva que abarca muitas soluções que têm finalidades diferentes e cuja pegada também varia. Uma IA usada para monitorar desmatamento, por exemplo, têm uma demanda energética e hídrica e emissões muito diferentes de uma ferramenta intensiva como o ChatGPT, por exemplo.
Medir para mitigar
O relatório do ITU propõe duas possíveis soluções. A primeira passa por uma revisão às diretrizes do IPCC para incluir um capítulo ou setor que olhe para essas questões. Mas Fernández lembra que revisar as diretrizes do IPCC é um “processo longo, complicado e que envolve negociações políticas”. A segunda e menos ambiciosa, então, seria desagregar os dados, separando as emissões por tipo de indústria.
Segundo David Tsai, coordenador do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa, o Seeg, do Observatório do Clima, a metodologia do IPCC é desenhada para garantir a completude e abrangência dos inventários de emissões e evitar dupla contagem.
“Por um lado é uma escolha adequada porque garante precisão da contabilidade das emissões na ótica dos países, mas por outro lado, de fato, não captura as emissões de setores da economia porque essas emissões ocorrem numa forma de cadeia de valor”, disse Tsai ao Intercept.
Para desenhar estratégias de mitigação para setores, é preciso adaptar os inventários nacionais – as metas – para outros recortes, disse ele, citando metodologias alternativas como o GHG Protocol, mais voltada para empresas.
Na avaliação de Tsai, com o forte peso das atividades digitais nas emissões totais e tendo em vista o aumento graças ao processamento de dados e inteligência artificial, é necessário ter recortes quanto a esse uso.
“Porque as medidas de eficiência devem ser desenhadas também por esse lado da demanda. Nós não olhamos a transição energética só do lado da oferta de novas fontes de energia, mas também do lado da demanda”, explicou.
O relatório foi publicado como parte do Green Digital Action, uma iniciativa multissetorial liderada pela ITU que foi lançada na COP28, em 2023. Na COP29, no Azerbaijão, 82 países apoiaram a adoção da Green Digital Action Declaration, que estimula o uso de soluções digitais para reduzir emissões, ao mesmo tempo em que estabelece expectativas claras para o setor digital em si, alinhando a infraestrutura digital com as metas do Acordo de Paris.
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