Em vez de proteger a população e fiscalizar o trânsito, comboios de viaturas da Polícia Civil de São Paulo e da Guarda Civil Metropolitana da capital paulista, a GCM, foram usados para escoltar carros de luxo, com vidros escuros e placas encobertas, que levavam VIPs até o autódromo de Interlagos para o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1.
O Intercept Brasil flagrou ao menos 15 desses comboios na sexta-feira, 7, na zona sul de São Paulo. Nos vídeos, é possível ver viaturas de órgãos de segurança pagas com dinheiro público abrindo caminho em meio a congestionamentos, com direito a sirene ligada e uso de corredores exclusivos para ônibus, para carros particulares – o que não é uma ação de segurança pública – e sem cumprir leis de trânsito como a que prevê, por exemplo, multar quem trafega com placa encoberta ou sem placa.
Os flagrantes foram feitos entre as 8h e 10h de sexta-feira – primeiro dia dos treinos classificatórios para a corrida de F1 – na Avenida Interlagos, próximo ao cruzamento com a Avenida das Nações Unidas. Pelo menos dez dos 15 comboios incluíam carros de luxo com as placas encobertas, o que não permitia identificá-los, circulando entre viaturas policiais ou da guarda municipal.

Identificamos pela placa automotiva única ou número da viatura oito veículos diferentes da Polícia Civil participando dessas escoltas – a maioria pertencia ao Grupo Armado de Repressão a Roubos, Garra. Pelo menos outros quatro veículos da Polícia Civil foram vistos, mas não tiveram seus números de viatura ou placas identificados claramente. Veículos à paisana com sirenes e giroflex, dispositivos de iluminação com luzes intermitentes, também participavam dos comboios. O Intercept ainda registrou pelo menos quatro carros e duas motos diferentes da GCM.
Além de sinalizar um desvio de função de quem deveria cuidar da segurança pública, chama atenção que os órgãos ignoraram a própria lei ao não terem impedido a circulação nem multado os veículos com placa encoberta ou sem placa.
O Código de Trânsito Brasileiro prevê, no artigo 230, que é infração gravíssima conduzir o veículo “com qualquer uma das placas de identificação sem condições de legibilidade e visibilidade” – sujeito à multa e apreensão. Além disso, o artigo 311 do Código Penal estabelece pena de três a seis anos de prisão para quem “adulterar, remarcar ou suprimir” sinal identificador do veículo – o que inclui a placa.
O Intercept confirmou, através de fontes que pediram para não ser identificadas temendo represálias, que os carros de luxo flagrados nos vídeos transportavam pessoas consideradas VIPs – incluindo chefes de equipe da F1, por exemplo – de um hotel na zona sul até o autódromo.
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Responsável pela Polícia Civil, a Secretaria de Segurança Pública, SSP, do governo Tarcísio de Freitas, do Republicanos, negou que tenha sido realizada qualquer escolta e chegou a dizer que quatro das viaturas flagradas pelo Intercept estavam em outro local – embora tenhamos registrado tudo em vídeos que permitem identificá-las ali no ponto próximo ao autódromo.
Já a GCM disse que “não há qualquer ilegalidade” e que agentes “prestam apoio operacional, acompanhando deslocamentos oficiais e equipes técnicas, de acordo com as exigências apresentadas para a realização da etapa brasileira da competição”.
Muita proteção e nenhum congestionamento
Durante a manhã de sexta, o trânsito na capital paulista chegou a 478 quilômetros de lentidão, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego, CET. Mas isso não foi um problema para os VIPs, que contaram com batedores para abrir o caminho entre o hotel Palácio Tangará, onde a maioria dos integrantes da F1 ficou hospedada, e o autódromo de Interlagos.
O percurso é de cerca de 11 quilômetros. Por volta das 9h, o mesmo trajeto para um motorista comum, sem escolta nem apoio de batedores de órgãos públicos, levava cerca de 51 minutos em meio ao tráfego pesado, de acordo com o aplicativo de navegação Google Maps.
Por volta das 9h, registramos em vídeo um comboio de três viaturas da Polícia Civil com sirenes ligadas, duas na frente e uma atrás, escoltando uma Mercedes-Benz SLK e um Volkswagen Tiguan pretos, ambos com as placas encobertas, na Avenida Interlagos, pouco após o cruzamento com a Avenida das Nações Unidas. Instantes antes de o comboio passar, agentes da GCM fecharam um cruzamento próximo para os outros carros.
Pouco depois, às 9h13, a reportagem gravou a cena de uma viatura da Polícia Civil abrindo caminho, também com as sirenes e luzes ligadas, para um furgão Mercedes-Benz Vito preto sem placa. Ambos trafegavam pelo corredor exclusivo para ônibus na Avenida Interlagos.
Um pouco mais cedo, no mesmo trecho, duas motos da GCM passaram também com as sirenes e luzes ligadas abrindo caminho para um Jeep Comander preto. Atrás, uma caminhonete e um carro de patrulha da GCM fechavam o comboio de quatro viaturas da segurança pública para um único veículo de VIPs da F1. O Comander também circulava com as placas encobertas.
Da rua, não era possível ver quem estava dentro dos carros com vidros escuros, mas uma fonte do Intercept em Interlagos – cujo nome será preservado porque ela teme represálias – confirmou que todos os carros com as placas encobertas ou sem placa que registramos na rota entre o hotel e o circuito entraram pouco depois dos registros pelo portão 7 do autódromo, reservado para os integrantes das escuderias da F1 e equipes técnicas. Nos carros de luxo, estariam dirigentes e pilotos, segundo essa fonte, enquanto as vans estariam levando técnicos das equipes.
Uma das pessoas que saiu de um desses carros escoltados pelas viaturas de segurança pública, de acordo com a fonte, foi Frédéric Vasseur, o chefão da equipe Ferrari. A reportagem teve acesso, inclusive, a imagens de Vasseur dentro do autódromo andando em direção ao paddock — área restrita do autódromo exclusiva para as equipes de corrida, seus convidados e imprensa — acompanhado por dois guardas municipais fardados.
Procurada pelo Intercept, a Ferrari não respondeu até a publicação desta reportagem. Também questionamos a assessoria de imprensa do Grande Prêmio do Brasil de F1 e a Federação Internacional de Automobilismo, FIA sobre os comboios policiais com VIPs do evento, mas não houve resposta. O espaço segue aberto.
Já a F1 Management, entidade internacional responsável pela categoria, afirmou em nota enviada pela assessoria de imprensa que “não é verdade sugerir que nós usamos escoltas policiais desta forma”. “Se há alguma preocupação sobre a conduta de escoltas individuais no evento, elas devem ser levadas às autoridades competentes”, ressaltou a empresa, enfatizando que sua posição não representa a das equipes nem a da FIA.
SSP só dá explicação sobre metade das viaturas flagradas
A Secretaria de Segurança Pública do governo Tarcísio negou que os flagrantes feitos no trajeto entre o hotel e o autódromo fossem escoltas. “O planejamento de segurança contempla o reforço do policiamento nas imediações do autódromo, nos trajetos de acesso e também no entorno do hotel onde estão hospedados pilotos e integrantes das equipes, com o objetivo de prevenir ocorrências e proteger a integridade de todos os envolvidos no evento”, informou, em nota (leia a íntegra).
Segundo a SSP, “não são realizadas escoltas particulares, mas sim ações de patrulhamento preventivo especializado”, o que é, conforme a pasta, uma atribuição do Garra, com apoio da Divisão Especializada de Atendimento ao Turista. “A Polícia Civil reitera que atua com total legalidade e transparência, e que não há qualquer pagamento adicional aos agentes empregados no planejamento e execução das ações de segurança do evento”, completou.
Não houve nenhuma resposta da SSP, apesar dos questionamentos do Intercept, sobre as placas encobertas ou falta de placa dos carros de luxo nos comboios e a presença de policiais envolvidos nas ações em horário de serviço. Ficaram sem resposta, também, questões sobre se havia alguma lei, decreto, ofício, termo de cooperação ou qualquer documento que comprovasse a legalidade das escoltas flagradas e se o serviço foi prestado de graça ou com contrapartida das equipes da F1.
‘Todas as atividades policiais foram planejadas com foco exclusivo na manutenção da segurança pública’.
O Intercept compartilhou com a SSP uma lista com as placas ou número de oito das viaturas registradas em vídeo fazendo escoltas. A secretaria simplesmente não respondeu sobre o paradeiro de quatro delas, mas negou que as outras quatro estivessem lá, onde foram gravadas.
Uma das viaturas , conforme a SSP, estaria sendo “utilizada em investigações de crimes patrimoniais na zona sul” naquele dia. Outra “da 6ª Seccional foi empregada nas ações do 102º Distrito Policial, incluindo a remoção de presos”. “Já a viatura da Delegacia de Mogi Guaçu fica à disposição de um delegado e não há registro de sua utilização na data, horário e local mencionados”, explicou a pasta.
Por fim, a SSP reiterou que “a viatura do Demacro permaneceu no pátio durante todo o dia, o que pode ser comprovado por meio de câmeras de segurança” – mas não nos enviou as imagens dessas câmeras.
Perguntada sobre o impacto na segurança da cidade com o uso de viaturas nos comboios, a SSP afastou qualquer preocupação. “Todas as atividades policiais foram planejadas com foco exclusivo na manutenção da segurança pública, sem qualquer prejuízo à população”, pontuou.
GCM não explica por que não multou carros com placa encoberta
Já a Secretaria de Segurança Urbana da capital paulista, cujo prefeito é Ricardo Nunes, do MDB, afirmou em nota (leia a íntegra) que “não há qualquer ilegalidade na atuação da Guarda Civil Metropolitana nas ações de logística relacionadas ao Grande Prêmio de Fórmula 1 de São Paulo”.
A assessoria de imprensa do órgão não respondeu, no entanto, se tinha conhecimento especificamente sobre os serviços de escolta para VIPs da F1 com placas encobertas e até sem placa nem explicou se houve algum pedido oficial para que a GCM atuasse nos comboios.
Também ficou sem esclarecimento por que os carros escoltados com as placas de identificação encobertas ou ausentes não foram multados nem se as escoltas haviam sido pagas ou autorizadas previamente.
‘Em grandes eventos oficiais, os agentes prestam apoio operacional’.
A nota da GCM apenas ressaltou que “em grandes eventos oficiais, os agentes prestam apoio operacional, acompanhando deslocamentos oficiais e equipes técnicas, de acordo com as exigências apresentadas para a realização da etapa brasileira da competição”, enfatizando que a conduta está de acordo com o artigo 5º, inciso XVII da lei federal 13.022/2014 e com a lei municipal 10.115/1986.
O inciso XVII do artigo 5º da lei federal 13.022/2014 estabelece que uma das competências das guardas municipais é “auxiliar na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades e dignatários” – embora não especifique que isso inclua escoltar carros com placas encobertas ou sem placa.
Já a lei municipal 10.115/1986 é a norma que criou a GCM e estabeleceu sua estrutura. Nela, também não consta nenhuma obrigação de escoltar carros ou prestar serviços do tipo em eventos de grande porte de São Paulo.
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