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‘Por que o Intercept não fala da fraude no INSS?’

Fomos os primeiros a investigar o projeto de poder da entidade campeã em descontos indevidos. Mas essa é uma parte do escândalo que muita gente prefere ignorar.

‘Por que o Intercept não fala da fraude no INSS?’

Não importa o assunto ou a denúncia que fazemos. Sempre um mesmo tipo de comentário se repete em todas as publicações do Intercept Brasil nas redes sociais: “Por que vocês não falam do roubo da aposentadoria dos velhinhos na fraude do INSS?”, é a pergunta feita, como você deve imaginar, por apoiadores de Jair Bolsonaro. 

A fraude bilionária envolvendo o desconto indevido de aposentadorias por associações e entidades é, sem dúvida, um dos principais escândalos de corrupção dos últimos anos. Nos últimos meses, o caso vem sendo usado pela extrema direita como combustível para atacar o governo Lula.

Por um lado, é importante dizer: não dá para passar pano para a gestão do INSS no governo Lula, diante do aumento expressivo dos descontos em 2023 e 2024. Por outro, no entanto, é fundamental destacar que esse cenário só foi possível porque, no governo Bolsonaro, a gestão do INSS concedeu o famoso “liberou geral” esses descontos.

A pergunta que aparece nas nossas postagens, portanto, é legítima. Mas ela parte de uma premissa errada: o Intercept tem, sim, investigado esses descontos indevidos. E não é só isso: fomos os primeiros a dar uma especial atenção para a Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais, a Conafer. 

Essa entidade é campeã de reclamações em auditoria-geral do INSS e a que teve o maior aumento repentino de descontos em aposentadorias, arrecadando mais de R$ 800 milhões em cinco anos com essas taxas. Fomos nós que revelamos que a Conafer foi blindada no INSS do governo Bolsonaro, com a ajuda de um servidor ex-PL, na mesma época em que foi acusada de ameaçar um delator do esquema.

Comandada pelo empresário ligado à agropecuária e mineração, Carlos Lopes, a Conafer tenta se colocar como uma nova liderança indígena do país, ao mesmo tempo que tem braços na área de genética bovina e no sistema financeiro internacional, com apoiadores no mundo político.

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Eu acompanhei pessoalmente o depoimento de Carlos Lopes na CPMI do INSS na última segunda-feira, 29 de setembro, no Senado, em Brasília. Com as mãos coloridas de tinta usada na pintura corporal indígena, ele falou durante cerca de oito horas no Senado em Brasília antes de ser preso de madrugada por falso testemunho – e solto após pagar fiança. 

As falas de Lopes foram marcadas por caretas e ironias. Quando ele se referiu à própria entidade de maneira megalomaníaca, foi motivo de chacota entre os parlamentares, que riam e faziam piadas.

“A Conafer atendeu mais que três governos juntos”, disparou. “A Conafer é um braço da República. A Conafer é um braço dos senhores”, disse em outro momento. Embora exista uma boa dose de engrandecimento na fala de Lopes, tratar a Conafer só como mais uma das entidades que roubaram milhões de aposentados para enriquecimento ilícito é um equívoco.

Lopes tem um projeto de poder que envolve o domínio de terras indígenas, pecuária e garimpo, com o apoio de políticos a nível federal, estadual e municipal. 

Esse desmerecimento na participação da Conafer, a primeira entidade a ser ouvida na CPMI, ficou evidente na fala do senador Izalci Lucas, do PL do Distrito Federal, em entrevista para a TV Senado, pouco antes do começo do depoimento de Carlos Lopes.

“São mais de 40 associações que descontaram INSS. Essa (Conafer) foi um volume razoável, R$ 800 milhões, mas mesmo assim não representa quase nada”, declarou o senador que patrocinou a última manifestação bolsonarista pró-anistia em Brasília.

Àquela altura eu já sabia que Izalci e Carlos Lopes eram próximos, e que fizeram uma reunião juntos na entidade em 2022. Mas ninugém imaginava que, dias depois da sessão, um vídeo publicado pelo deputado federal Alencar Santana, do PT de São Paulo, revelaria Izalci dando uma carona para Carlos em seu carro particular, em abril de 2024.

Carlos Lopes e senador Izalci Lucas em reunião na sede da Conafer, em 2022 | Divulgação

Mas ignorar o perigo e os malfeitos da Conafer, infelizmente, não é exclusividade da extrema direita. Durante o depoimento de Carlos Lopes na CPMI, parlamentares do campo progressista também pareciam considerar que a Conafer não representa tanto. Deixaram os principais questionamentos a Lopes nas mãos da oposição. 

Foi a senadora Damares Alves, do Republicanos – sim, a ex-ministra de Bolsonaro – quem tocou na questão indigena e fez uma importante indagação, comum de quem se depara com essa singular entidade: “A quem a Conafer está a serviço? Do agro, da agricultura familiar, de indígenas ou de ONGs ambientalistas? Porque a gente não consegue entender”.

A Conafer cresceu e se fortaleceu dizendo representar a causa indígena. A entidade está presente em terras indígenas de todas as regiões do país, a ponto de ter se apresentado na COP 28 em Dubai, em 2023, como representante de 20% do território nacional.

Horas antes de prestar depoimento na CPMI, uma sócia de Carlos Lopes, Tehiana Gomes, divulgou um vídeo pedindo rituais indígenas em favor do líder da Conafer, a quem ela chama de “Guerreiro Tamury”. 

Na sede da Conafer em Brasília, Lopes era conhecido pelos funcionários como “comandante” e seu símbolo era uma onça.

Quando teve sua ascendência indígena questionada na CPMI, Lopes mostrou um documento de autodeclaração indígena da etnia tapuya, residente do território indígena Caramuru-Paraguassu, na Bahia, onde conviveria com seus familiares em regime de economia familiar.

Eu questionei a defesa de Lopes sobre quem seriam esses parentes, mas não teve retorno. Horas depois, o Cacique Nailton Muniz, tradicional liderança indígena Pataxó Hahahãe, contestou o relatório da Funai em vídeo gravado após o depoimento de Lopes. “Não é verdade, ele não mora aqui”.

Mas as tramoias e mentiras de Lopes não param por aí. A empresa administrada pela esposa de Lopes, Bruna Braz, chamada Lagoa Alta, atua nas áreas de mineração e pecuária em Minas Gerais. Quando questionado sobre contratos suspeitos da mineradora na CPMI, Lopes disse que não cabia a ele responder. Mas documentos da Junta Comercial de Minas Gerais mostram que foi ele mesmo quem criou a empresa, e depois repassou as cotas societárias para os nomes dos filhos adolescentes.

A verdade é que os dados financeiros da Conafer revelam um complexo sistema com dezenas de empresas, associações e prestadores de serviço ligados a sócios, amigos e familiares de Lopes. Indícios robustos de lavagem de dinheiro, segundo a investigação da Polícia Federal.

Mas como Lopes passou tanto tempo blindado? Talvez porque suas ligações com políticos e empresários são amplas e interestaduais. Quando perguntado na CPMI sobre quais parlamentares ele seria próximo, disse que eram os 212 congressistas integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Empreendedorismo Rural. Um grupo que, como nós revelamos, Lopes ajudou a criar e financiar

Fora isso, o chefe da Conafer recebeu homenagens em assembleias legislativas estaduais e câmaras municipais, e assinou pelo menos dezenas de acordos de cooperação com prefeituras, de adesão ao seu programa de melhoramento genético bovino. 

Em Alagoas, por exemplo, mais da metade dos municípios do estado tem acordos com a Conafer, segundo o presidente da Federação de Empreendedores Rurais de Alagoas, Webert Carvalho.

Outro fato que não dá para ignorar e revela o tamanho do poder da entidade: a Conafer teve um acordo de cooperação com o Ministério das Comunicações na gestão de Juscelino Filho, o ex-ministro de Lula do União Brasil, e também com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra.

Lopes não estava mentindo quando disse para os parlamentares da CPMI que a “Conafer é um braço dos senhores”.

E apesar da proximidade da Conafer com o Republicanos, já demonstrada em reportagens na imprensa, Lopes é bem eclético quando o tema é negócios e política. Como uma liderança indígena da Bahia me alertou em abril: “Para o Carlos, a sigla partidária é o de menos”.

Isso explica muito. A Conafer não é só campeã em fraudes: é parte de uma engrenagem política e empresarial que atravessa governos e partidos. Ignorar isso é continuar enxergando apenas a superfície do escândalo, como tem feito a extrema direita na CPMI.

2026 já começou, e as elites querem o caos.

A responsabilização dos golpistas aqui no Brasil foi elogiada no mundo todo como exemplo de defesa à Democracia.

Enquanto isso, a grande mídia bancada pelos mesmos financiadores do golpe tenta espalhar o caos e vender a pauta da anistia, juntamente com Tarcísio, Nikolas Ferreira, Hugo Motta e os engravatados da Faria Lima.

Aqui no Intercept, seguimos expondo os acordos ocultos do Congresso, as articulações dos aliados da família Bolsonaro com os EUA e o envolvimento das big techs nos ataques de Trump ao Brasil.

Os bastidores mostram: as próximas eleições prometem se tornar um novo ensaio golpista — investigar é a única opção!

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