Gravações de youtubers interrompem aulas e afetam rendimento de crianças e adolescentes de escola pública no Paraná

Gravações de youtubers interrompem aulas e afetam rendimento de crianças e adolescentes de escola pública no Paraná

Funcionários de escola estadual de Londrina denunciam problemas causados pela produtora Dreams, que produz os vídeos e lucra milhões ao expor menores em conteúdos que têm insinuações de teor sexual, violência e intrigas.

Gravações de youtubers interrompem aulas e afetam rendimento de crianças e adolescentes de escola pública no Paraná

“Um dia começou uma gritaria nas salas e, quando eu olhei pela janela, tinha um Porsche azul na frente da escola. Faltavam uns 15 minutos para acabar a aula, a professora não conseguiu mais dar aula. Foi a partir desse momento que eu tive noção de quem era esse tal de João Caetano.”

Foi isso que me contou uma pessoa que trabalha em uma escola pública estadual em Londrina, no Paraná, onde estudam alunos que aparecem nos vídeos dos canais da produtora Dreams no YouTube. João Caetano, um youtuber que soma 14,7 milhões de inscritos, é o fundador e único sócio da produtora.

O relato revela como as fronteiras entre o online e o offline se confundem – e como os danos às crianças e adolescentes estão interligados. O caso chegou a ser denunciado ao Ministério Público do Paraná e ao próprio YouTube, mas até agora não houve resposta.

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar

No fim de julho, o Intercept Brasil mostrou um ecossistema de canais de YouTube ligados à Dreams, gerenciados por pessoas adultas, cujo conteúdo gira em torno da exploração da imagem de crianças e adolescentes, com foco em insinuações de teor sexual, violência, intrigas, além de violações claras como propagandas de casa de aposta, álcool e cigarro.

Depois da publicação da reportagem, fomos procurados por funcionários de uma escola pública onde estudam pelo menos cinco crianças e adolescentes que integram os vídeos, no estilo de reality show, dos canais gerenciados por João Caetano. 

Eles falaram com o Intercept sob anonimato, pedindo para não serem identificados por medo de represálias. Também não citamos o nome da escola a fim de preservar as crianças e adolescentes. “O dia-a-dia da novela que ele [Caetano] cria acaba se misturando com o nosso cotidiano na escola”, relata uma das pessoas. 

Esses funcionários contam como a presença constante de Caetano e seus parceiros fazendo gravações nos arredores da escola, inclusive durante o turno escolar, atrapalha o andamento das aulas. “É um furor na escola. Há um desespero pelos demais para ser notado pelo João Caetano”, disse um deles. 

‘Para um menino que mora ali, naquela região, o dinheiro do YouTube é bem tentador’.

Segundo os trabalhadores, um dos alunos que ganhou protagonismo no canal de Caetano tem apresentado questões de saúde mental ligadas à exposição. Esse mesmo aluno também tem mostrado para colegas prints de transferências bancárias que recebe graças ao trabalho para a produtora.

Os relatos vêm à tona na semana em que a exposição de crianças e adolescentes nas redes sociais e a adultização ganharam destaque nacional após um vídeo-denúncia do youtuber Felca que, em menos de uma semana, teve mais de 30 milhões de visualizações.

Desde a publicação do vídeo, mais de 30 projetos que tratam do tema foram apresentados na Câmara dos Deputados. Além disso, o influenciador Hytalo Santos, denunciado no vídeo por Felca, foi preso nesta sexta-feira, 15. Hytalo é investigado por exploração e exposição de menores de idade em conteúdos produzidos para as redes sociais.

De acordo com os funcionários, a escola atende, em sua maioria, estudantes de classe média baixa em Londrina – e há casos graves de vulnerabilidade social. Um contraste e tanto com o estilo de vida milionário e de ostentação alardeado por Caetano nos vídeos que produz com a participação de crianças e adolescentes. “Para um menino que mora ali, naquela região, o dinheiro do YouTube é bem tentador”, disse uma das pessoas que entrevistamos. 

Ao lado da escola, fica uma praça com um parque de skate. O espaço, que é aproveitado pela escola para aulas de educação física, é frequentemente usado como cenário na gravação dos vídeos publicados nos canais da Dreams.

Pela proximidade com a escola e pelo fato de alguns alunos atuarem nos vídeos da produtora, a temática e o enredo dos conteúdos invadem o cotidiano escolar. “Alunos que fazem parte do canal misturam os eventos dos vídeos com o cotidiano da escola, pois frequentemente fazem filmagens na entrada e saída dos alunos”, diz uma das pessoas que ouvimos.

Além disso, contam os funcionários, relacionamentos que acontecem entre alunos na escola viram tema nos canais, e meninas são expostas em vídeos com insinuações de teor sexual. 

Em 6 de agosto, quando um dos trabalhadores nos procurou, por exemplo, João Caetano havia aparecido – pela segunda vez – na porta da escola com um carro importado para uma gravação de vídeo. “Ele foi filmar uma cena de um aluno do 9º ano indo buscar a ‘namorada’ dele na porta da escola de Porsche conversível”, explicou. “Gerou um tumulto imenso.” 

Com menos de uma semana, o vídeo publicado no canal da produtora de Caetano atingiu mais de 653 mil visualizações. Nele, é possível ver uma aglomeração de pessoas em torno do carro e no portão da escola, com alguns pedindo fotos para Caetano. 

LEIA TAMBÉM:

Os vídeos também impactam no rendimento escolar dos alunos, afirmam as pessoas que entrevistamos. Elas relataram que uma das crianças que aparece em um dos vídeos deixou de entregar trabalhos e faltou em uma prova. 

A justificativa dada pelo aluno foi de que ele teria ficado até 3h da manhã gravando na casa de Caetano. A equipe pedagógica da escola encaminhou uma denúncia ao Ministério Público sobre este caso – sem resposta até a publicação desta reportagem. Ao Intercept, o MP disse que não pode dar nenhuma informação sobre qualquer caso do tipo porque tudo corre em sigilo.

Os funcionários também nos contaram sobre outro estudante. “Era bem sozinho, vivia triste por não se enturmar, até o ano passado vivia pedindo para mudar de sala porque não conseguia fazer amigos”, explicou um deles. “Agora que ele entrou no canal, ele é o ídolo da escola. Mas ele está visivelmente passando por muita coisa emocionalmente.” 

Uma das pessoas que trabalha na escola também relatou que o jovem a procurou chorando. “Ele chegou falando ‘eu só quero que lembrem que eu sou um aluno normal’”, disse ela, acrescentando que ele tem sido identificado como “o menino do YouTube”. “Tem um depreciamento para a identidade e dignidade dele”, pontuou. 

Segundo essa pessoa, o aluno é ótimo, muito estudioso, mas está visivelmente sob pressão. Conforme os funcionários, nos vídeos, no entanto, ele interpreta um outro personagem que é retratado como mau aluno, que está sempre tendo problemas e ficando de castigo.

Nós procuramos a produtora Dreams e o youtuber João Caetano para comentar os relatos dos funcionários da escola de Londrina. Não houve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.

Máquina de dinheiro e ‘limpa’ nos canais

A linha comum aos vídeos da Dreams é a adultização, fenômeno denunciado pelo YouTuber Felca. A adultização é a mimetização de comportamentos adultos em crianças. Nos canais da produtora Dreams, isso aparece, por exemplo, nos vídeos sobre namoros e intrigas entre as crianças, ou nos vídeos que insinuam consumo de álcool pelos atores.

Depois da publicação do vídeo de Felca, os canais da Dreams fizeram uma limpa. Entre sábado e domingo, o canal de João Caetano no YouTube apagou pelo menos 213 vídeos, de acordo com as métricas da ferramenta Social Blade. O canal do Taspio, um outro integrante da rede da Dreams, removeu 48 vídeos, de acordo com análise da mesma ferramenta. 

Segundo a denúncia de Felca, o grande motor dessa indústria é a monetização, ou seja, o lucro obtido. Nos canais da Dreams, essa monetização não se dá só pelas propagandas inseridas dentro dos vídeos, mas também pela assinatura – uma ferramenta oferecida pelo YouTube.

Espectadores podem pagar de R$ 6,99 a R$ 999,99 por mês para serem membros, tendo acesso a benefícios variados, como acesso antecipado a vídeos e emojis personalizados para serem usados no chat. 

Maioria dos conteúdos fica numa área cinzenta entre o que é notoriamente ilegal e o que é apenas condenável (Foto: Reprodução)

As ferramentas de monetização podem ser retiradas pelo YouTube a qualquer momento se a plataforma entender que o conteúdo viola alguma de suas diretrizes. Segundo as regras da plataforma, para aderir ao programa de parceiros, os canais não podem “ter advertências ativas por violação das regras da comunidade”. 

Os conteúdos dos canais da Dreams, no entanto, conflitam com as diretrizes de comunidade do YouTube sobre segurança infantil. A plataforma lista como exemplo de conteúdo não permitido “vídeos ou posts com menores envolvidos em atividades, desafios e apostas provocantes, sexuais ou com conotação sexual, como beijos ou carícias”.

O Intercept voltou a questionar o YouTube sobre ações tomadas em relação aos sete canais sinalizados por nós na reportagem divulgada no fim de julho. Em nota, a plataforma respondeu que “conteúdo direcionado a menores e famílias, mas que contenha temas sexuais ou violência, ou que de alguma forma coloque em risco o bem-estar emocional e físico de menores, não é permitido no YouTube” e que analisou “os canais sinalizados pelo The Intercept Brasil e removemos ou restringimos a idade do conteúdo, de acordo com nossas políticas de segurança infantil”.

Sem detalhar quais, o YouTube disse ainda que tomou medidas sobre 30 vídeos, o que inclui “a emissão de avisos, a aplicação de restrições de idade e painéis de recursos para crises”.

O Intercept é sustentado por quem mais se beneficia do nosso jornalismo: o público.

É por isso que temos liberdade para investigar o que interessa à sociedade — e não aos anunciantes, empresas ou políticos. Não exibimos publicidade, não temos vínculos com partidos, não respondemos a acionistas. A nossa única responsabilidade é com quem nos financia: você.

Essa independência nos permite ir além do que costuma aparecer na imprensa tradicional. Apuramos o que opera nas sombras — os acordos entre grupos empresariais e operadores do poder que moldam o futuro do país longe dos palanques e das câmeras.

Nosso foco hoje é o impacto. Investigamos não apenas para informar, mas para gerar consequência. É isso que tem feito nossas reportagens provocarem reações institucionais, travarem retrocessos, pressionarem autoridades e colocarem temas fundamentais no centro do debate público.

Fazer esse jornalismo custa tempo, equipe, proteção jurídica e segurança digital. E ele só acontece porque milhares de pessoas escolhem financiar esse trabalho — mês após mês — com doações livres.

Se você acredita que a informação pode mudar o jogo, financie o jornalismo que investiga para gerar impacto.

Apoie o Intercept Hoje

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar