A invasão da Mesa Diretora da Câmara, na semana passada, não foi mais uma cena pitoresca do bolsonarismo em Brasília. Foi um episódio que tem exatamente o mesmo DNA antidemocrático de outras páginas infelizes de nossa história escritas pela extrema direita, como os atos de 7 de setembro de 2021 e a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.
Diante disso, não basta esperar que os pedidos feitos ao Conselho de Ética e à Corregedoria prosperem, eventualmente resultando na suspensão dos mais violentos. É preciso denunciar que a tropa de choque de Jair Bolsonaro no Congresso tem uma prática política marcada por crimes, abusos e fraudes que precisam ser rastreados de perto.
Nesta semana, Cartas Marcadas traz uma reportagem do jornalista Vinícius Segalla sobre uma das protagonistas das cenas lamentáveis da semana passada: a deputada federal Júlia Zanatta, do PL de Santa Catarina, que admitiu ter usado o próprio bebê como escudo humano durante o episódio.
A investigação de Segalla revela que a deputada emprega como assessora uma nutricionista — que, coincidência ou não, é a esposa de seu advogado. Vamos aos fatos?
Nutricionista ‘representa’ Zanatta
No dia 23 de julho de 2024, Júlia Zanatta foi às redes sociais criticar a colega Érika Hilton, do PSOL de São Paulo, ecoando acusações de que a parlamentar paulista remuneraria maquiadores com dinheiro público, por meio de cargos de gabinete. Era de se esperar, portanto, que Zanatta evitasse qualquer situação semelhante. Não é o caso.
Em 30 de abril de 2024, Zanatta nomeou em seu gabinete, como secretária parlamentar, a nutricionista especializada em saúde da mulher Ana Julia Rodrigues Monteiro. No cargo, com jornada de 40 horas semanais, ela recebe remuneração bruta de R$ 4.976. Desde o ano passado, portanto, Ana Julia já recebeu mais de R$ 74 mil de dinheiro público.
Pelas regras da Câmara, não é permitido ocupar o posto realizando atividades incompatíveis com o expediente. Apesar disso, Ana Julia segue atuando como nutricionista, com uma clínica própria em Imbituba, município a 96 km de Florianópolis e 115 km de Criciúma, cidade natal de Zanatta.
A reportagem entrou em contato pelos canais de agendamento divulgados pela nutricionista e constatou que ela oferece horários de consulta que coincidem com o expediente da Câmara.
Uma paciente ouvida pelo Intercept Brasil relatou ter sido atendida por Ana Júlia em seu consultório, numa segunda-feira, durante o horário comercial — período em que a servidora deveria estar trabalhando em Brasília ou no escritório político de Zanatta. A apuração também identificou que, às quintas-feiras, Ana Júlia atende na clínica privada Ódena Saúde da Mulher, em Tubarão, no interior catarinense.
Além dos atendimentos, Ana Julia tem uma intensa atividade nas redes sociais. Ela publica de quatro a seis vezes por semana sobre nutrição e vida pessoal, sem qualquer menção a atividades políticas. Disponibiliza links para agendamento de consultas e, em novembro de 2024, já lotada no gabinete, chegou a anunciar serviços de mentoria.
Em suas redes, Ana Julia não esconde que é casada com o advogado Pedro Henrique Monteiro, procurador-geral de Imbituba, vice-presidente da OAB local e sócio do escritório Monteiro Advocacia. Até pelo menos dezembro de 2024, ele atuou como advogado de Zanatta.
Naquele mês, representando a deputada, Monteiro protocolou queixa-crime contra a ex-senadora Ideli Salvatti, do PT de Santa Catarina, e o presidente do Sebrae e ex-deputado federal Décio Lima, também do PT catarinense, acusando-os de calúnia por postagens nas redes sociais.
Pedro também representou a congressista em outras ações, que chegaram a ser divulgadas por ela com elogios ao trabalho do advogado, e seu escritório ainda a assiste judicialmente.
Questionada pelo Intercept, Ana Julia admitiu que conheceu Zanatta através de seu marido e disse não ver incompatibilidade entre as funções de nutricionista e secretária parlamentar. Ela afirmou ainda que cumpre tarefas de “representação política” para a deputada federal, ressaltando que, quando demandada, trabalha nos finais de semana.
Nós também questionamos Júlia Zanatta e o advogado Pedro Henrique Monteiro sobre as informações apuradas. Até o momento, não houve resposta. O espaço segue aberto.
*A reportagem teve a colaboração Gabriel Siqueira.
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Dica do Motoryn: o pós-motim
Se você quer entender mais sobre os bastidores do motim bolsonarista da semana passada, recomendo a leitura do site Come Ananás. Na última segunda-feira, 11, o portal publicou um texto importante lembrando que os golpistas tentam arrastar a deputada petista Camila Jara, do PT do Mato Grosso do Sul, para a lista de possíveis punições, mesmo sem ela ter participado da ação.
Como sempre, o veículo liderado pelo jornalista Hugo Souza é leitura indispensável para compreender o modus operandi da tropa bolsonarista e a escalada de ataques à democracia dentro da própria Câmara dos Deputados.
Na semana passada, convidei vocês a enviarem sugestões de nomes para investigarmos — e quero agradecer por cada contribuição. Todas foram consideradas, e alguns perfis bastante interessantes já estão no nosso radar e vão aparecer por aqui em breve.
Agora, aproveito para pedir um retorno: o que vocês têm achado da Cartas Marcadas? O que podemos melhorar, aprofundar ou mudar? Toda crítica, ideia ou sugestão é muito bem-vinda.
É isso. Nos vemos na terça-feira que vem?
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