Uma advogada que trabalhou em um escritório de advocacia e lobby norte-americano que defende a Meta – dona do Facebook, do Instagram e do WhatsApp – e outras big techs foi a autora do documento que deu início à investigação comercial dos EUA contra o Brasil.
A investigação foi aberta pelo Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos, USTR, na sigla em inglês, na terça-feira, 15, com base na Seção 301 da lei de comércio dos EUA para apurar “ataques do Brasil contra empresas americanas de mídia social”.
O pedido de investigação foi feito pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na mesma carta em que anunciou as tarifas de 50% sobre produtos brasileiros.
Oficialmente, o documento é assinado por Jennifer Thornton, conselheira-geral do USTR. Mas o Intercept Brasil identificou que uma advogada chamada Catherine H. Gibson foi a criadora do arquivo a partir dos metadados do PDF que estava hospedado no site do escritório.
Os metadados são como as impressões digitais do arquivo, revelando informações sobre o autor, hora e máquina usada, por exemplo. É possível apagar esses metadados, o que não foi feito nesse caso. Há diversas ferramentas online para consultar metadados.
Hoje, Gibson ocupa o cargo de assistente-adjunto da Representação dos EUA para Monitoramento e Execução no USTR. Mas ela trabalhou, pelo menos de 2014 a 2018, em um escritório de advocacia e lobby chamado Covington & Burling, segundo dados do Legistorm, um site de monitoramento de atividades parlamentares nos EUA. Na época, seu foco era em questões de arbitragem, regulação e políticas públicas e comércio internacional.
O currículo da advogada chama a atenção porque o Covington & Burling é um dos maiores escritórios de advocacia dos EUA, com presença internacional, e tem como clientes em ações de grande repercussão a Meta e a Business Software Alliance, a BSA, entidade de lobby que representa big techs como Microsoft e OpenIA. São empresas diretamente interessadas nos efeitos de possíveis sanções dos EUA ao Brasil, o que reforça a hipótese de que big techs estariam por trás do tarifaço de Trump.
Além da regulação de redes sociais, que afeta diretamente as big techs, a investigação contra o Brasil também mira o sistema Pix, que acertou em cheio o serviço de pagamentos da Meta no WhatsApp, o WhatsApp Pay, suspenso pelo Banco Central em 2020.
Questionados, Catherine Gibson, USTR e a embaixada dos EUA não responderam os e-mails enviados pelo Intercept.
Escritório assessorou Facebook na compra do WhatsApp e Instagram
Segundo a ONG Open Secrets, o Covington & Burling recebeu cerca de US$ 8,1 milhões em 2024, contratado por 33 clientes para atividades de lobby. A própria Catherine Gibson é listada como lobista: ela teria atuado em defesa da liga de futebol americano no escritório em 2018, pouco antes de deixar a empresa.
Na advocacia, um dos clientes históricos do Covington é a Meta, empresa de tecnologia dona do Facebook, Instagram e WhatsApp. O escritório tem atuado na defesa da big tech em casos de grande relevância e repercussão internacional.
Em 2024, o Covington conseguiu para a Meta o arquivamento de quatro ações movidas por distritos escolares que alegavam que as redes sociais causavam danos a crianças e adolescentes, desde perturbações no ambiente escolar a problemas de saúde mental. O veredito foi celebrado como um dos mais significativos da Califórnia naquele ano.
Essas ações fazem parte de uma série de processos iniciados em 2023 por distritos escolares em todo o país contra as big techs, que ficaram conhecidas como “Social Media Cases”. Segundo o próprio escritório, o Covington atua como a principal defesa da Meta em mais de 2 mil ações judiciais do tipo nos EUA.
O escritório também se orgulha de ter assessorado a Meta, então Facebook, na bem-sucedida compra do WhatsApp, em 2014, por US$ 22 bilhões, e a do Instagram, em 2012, por US$ 1 bilhão. As aquisições, liberadas sem maiores entraves na época, foram fundamentais para a Meta atingir seu tamanho e poder. Mas, hoje, podem ser anuladas em um julgamento que analisa o monopólio da empresa.
O trânsito de profissionais entre setor público e privado é chamado de ‘porta giratória’. Essa prática levanta questões de conflito de interesse e segurança de informações sensíveis – por isso, é vista com preocupação pela potencial influência em decisões regulatórias ou investigações, já que agentes em cargos públicos podem representar, de forma velada, interesse de corporações em que atuaram anteriormente.
Associação de software dos EUA pediu ajuda à Catherine meses antes do pedido de investigação
Entre 2016 e 2019, o Covington & Burling também representou a Business Software Alliance, a BSA, entidade de lobby que representa dezenas de empresas de tecnologia como a Microsoft, OpenAI e Oracle. Os casos, paradigmáticos sobre privacidade no mercado de tecnologia, mudaram a forma como a transferência de dados era feita entre diferentes países. A organização defende maior liberdade para o fluxo internacional de dados.
Há ainda outra ligação entre o escritório e a BSA: a entidade tem como vice-presidente de políticas globais outro ex-Covington & Burling. Aaron Cooper atuou no escritório como conselheiro para assuntos de tecnologia até ser contratado pela entidade, em 2016.
Neste ano, a BSA foi uma das entidades envolvidas nos pedidos para que o governo Trump adotasse medidas mais rigorosas contra supostas práticas comerciais injustas. Atendendo a um pedido do USTR, a entidade enviou em março deste ano um e-mail a Catherine H. Gibson, que já estava no órgão do governo dos EUA, criticando políticas protecionistas de vários países e pedindo providências ao governo Trump
No e-mail, a BSA pediu que a USTR tomasse ações para identificar possíveis danos provocados por práticas e comércio desleal para “preservar os empregos” da indústria de software e a “liderança dos EUA na tecnologia”.
Segundo a entidade, atos governamentais, políticas e práticas que restringem o mercado digital estariam prejudicando as empresas norte-americanas. Sem citar o Brasil, a BSA diz que, em alguns casos, governos caracterizam essas medidas como “cibersegurança”, “privacidade” e “desenvolvimento digital”.
O documento menciona os exemplos da Índia e Coreia do Sul, que restringiram a oferta de produtos de empresas da BSA e criaram políticas para priorizar tecnologias locais. A Coreia do Sul, por exemplo, criou barreiras para empresas norte-americanas de serviços em nuvem oferecerem serviços para o setor público. A BSA não gostou das medidas protecionistas dos países.
“Instamos o USTR a garantir a manutenção de mercados abertos para software, filmes, música e outras exportações digitais dos EUA”, diz a carta. “Economias que buscam impor taxas e exigências não deveriam ter permissão para fazer isso impunemente”, complementou. Pouco tempo depois, parte dos argumentos estaria contemplada na carta ao Brasil.
Medidas de Trump são ataques à soberania do Brasil
Enquanto estava no Covington & Burling, Catherine Gibson era consultora em acordos internacionais de comércio. Em 2016, ela escreveu um artigo com seu colega John Veroneau, sócio do escritório, sobre o poder do presidente dos EUA de aumentar as tarifas. Na ocasião, Trump estava prestes a assumir o primeiro mandato.
No artigo, Gibson e seu colega argumentam que há um dispositivo em uma lei de 1930 chamado seção 338 que daria ao presidente dos EUA o poder de subir as tarifas contra países que tivessem práticas comerciais discriminatórias. O dispositivo foi utilizado nas décadas de 1930 e 1940, mas depois acabou esquecido – afinal, os EUA eram signatários de acordos comerciais sob a Organização Mundial do Comércio, a OMC, que controlavam abusos do tipo.
‘Os Estados Unidos praticamente chantageiam o Brasil para flexibilizar ou rever essas decisões’.
“Qualquer ação do presidente para usar esta autoridade para elevar tarifas ou bloquear importações levaria a contestações comerciais por países afetados”, escreveram Gibson e Veroneau. “Apesar disso, o governo Trump poderia ver a Seção 338 como possível alavancagem em disputas comerciais”.
Os sócios do escritório afirmaram que não sabiam porque o dispositivo havia desaparecido das discussões após 1949 e disseram que o objetivo do artigo não era “um apelo para seu uso”, pois era um recurso grosseiro que provocaria reações da OMC. “Mas, enquanto o governo que está chegando considera ferramentas potencialmente disponíveis para abordar práticas comerciais injustas, a Seção 338 é uma ferramenta há muito esquecida, mas aparentemente ainda disponível”, escreveram eles.
Agora, o recurso de chantagem do Trump com o tarifaço e a investigação alia a defesa da indústria dos EUA – particularmente a de tecnologia – com ataques a instituições democráticas brasileiras, em especial aquelas que têm imposto limites às empresas de redes sociais dos EUA e têm caminhado para responsabilizar o ex-presidente Jair Bolsonaro pela tentativa de golpe.
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“Tanto a carta quanto a investigação revelam um completo desrespeito dos Estados Unidos com decisões soberanas, democráticas e legítimas de instituições brasileiras sobre plataformas e empresas de tecnologia e nos colocam nesse momento onde os Estados Unidos praticamente chantageiam o Brasil para flexibilizar ou rever essas decisões”, disse Bruna Martins dos Santos, gerente de policy e advocacy na Witness, uma organização global que atua em defesa de direitos online.
Há menos de um mês, as big techs foram derrotadas no Supremo. Os ministros decidiram pela revisão do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que até então determinava que empresas só podiam ser responsabilizadas por manter no ar conteúdo de terceiros quando houvesse ordem judicial e elas não cumprissem.
Em resumo, o STF decidiu pela inconstitucionalidade parcial do artigo 19, ou seja: as plataformas são parcialmente responsáveis pelo que os usuários postam. A mudança na regulação foi recebida pelas big techs como um ataque à liberdade de expressão – e o Marco Civil da Internet foi citado nominalmente por Eduardo Bolsonaro, que anuncia nas redes ser o articulador dos ataques de Trump ao Brasil, como uma das razões para o tarifaço.
Na carta publicada no início de julho, além de afirmar que Bolsonaro está sendo injustiçado e alvo de uma “caça às bruxas”, Trump atribuiu sua decisão de tarifar produtos brasileiros em parte “aos ataques insidiosos do Brasil às eleições livres e aos direitos fundamentais de liberdade de expressão dos americanos”.
O presidente ainda mandou um recado ao Supremo Tribunal Federal, o STF, citando “centenas de ordens de censura ilegais e secretas a plataformas de redes sociais americanas”. O incômodo é nítido: dentre as instituições globais, o STF é talvez quem mais tem imposto limites à atuação de empresas americanas fora de seu território.
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