A disputa por poder político de olho na eleição de 2026 já mobiliza três dos principais grupos evangélicos do Brasil. Neste Game of Thrones religioso, está em jogo a pavimentação para a candidatura de Tarcísio de Freitas para a presidência, uma possível indicação de Ricardo Nunes para disputar o governo paulista e o ressurgimento político de figuras como o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha.
Essa tríade é comandada pelo pastor Silas Malafaia, líder da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, a Advec; pelo bispo Samuel Ferreira, presidente-executivo da Convenção Nacional das Assembleias de Deus Madureira, que reúne vários templos desse ramo pelo país; e pelo bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus.
“Nesse momento, o que a gente consegue ver com mais evidência são esses três grandes projetos. Mas todos esses projetos estabelecidos apresentam entre si rearranjos e recombinações”, explica o teólogo protestante Fábio Py, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, o Iuperj.
O deputado federal pelo Rio de Janeiro e pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara e tido como um porta-voz informal de Silas Malafaia, disse ao Intercept Brasil que essa ação política de grupos evangélicos pode ser ainda mais ampla.
“De média a grandes representações evangélicas, temos umas dez. Todas elas têm projeto político, sim. A Igreja Batista, por exemplo, é forte. Tem ainda os presbiterianos, os luteranos, as comunidades evangélicas e a Igreja do Evangelho Quadrangular, uma das mais organizadas e com representatividade muito grande”, pontua Sóstenes, ex-presidente da Frente Parlamentar Evangélica.
Segundo o pastor e líder do PL, essas dez representações deverão se unir na sucessão presidencial, “todas contrárias a um projeto de esquerda para o Executivo, porque a esquerda não consegue conversar com o segmento”.
Mas ainda é cedo para dizer que isso está sacramentado. Afinal, cada grupo tem estratégias diferentes. “Os batistas se alinham ao poder, mas não têm projeto de poder. Não vão lançar um candidato a presidente, por exemplo, ou, como denominação, colar numa candidatura a presidente oficialmente”, garante o pastor Sergio Dusilek, da Igreja Batista de Marapendi, no Rio de Janeiro, ex-presidente da Convenção Batista Carioca.
Entre todos esses grupos, ganha destaque a disputa interna para definir quem tem a hegemonia na Assembleia de Deus, a maior igreja evangélica do país, com 12,3 milhões de fiéis, segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2010, sobre o tamanho das denominações religiosas.
A Assembleia de Deus é composta por vários ramos. O maior deles é o da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, CGADB, liderada pelo pastor José Wellington Bezerra, do bairro do Belém, zona leste de São Paulo.
Para se ter uma ideia do poder político desse grupo, basta olhar para a bancada evangélica na Câmara dos Deputados. Hoje, há 14 deputados federais e três senadores ligados à CGADB – a maioria de partidos à direita ou centro. Apesar de maior do que partidos como PSOL, Avante e Solidariedade, o grupo atua com discrição. “O Wellington nunca disputou esse posto de voz dos evangélicos”, testemunha o colega pastor Sergio Dusilek.
Na sequência, vêm a Assembleia Madureira, do bispo Samuel Ferreira, com sete deputados federais e um senador; a Vitória em Cristo, de Malafaia, com quatro deputados; e a Assembleia de Deus de Belém, no Pará, ligada à Convenção das Assembleias de Deus do Brasil, a CADB, liderada pelo pastor Samuel Câmara, com três deputados federais.
Os grupos menores na Assembleia vão agora a campo na política justamente para se fortalecer. “A Vitória em Cristo, porém, transcende sua representação, além da Assembleia, por causa do pastor Malafaia, que, com suas pregações e o seu discurso, atrai a simpatia de evangélicos de outras denominações”, afirma Sóstenes Cavalcante.
O atual presidente da Frente Parlamentar Evangélica, deputado e pastor Gilberto Nascimento, do PSD de SP, já foi representante da Assembleia Madureira em São Paulo e hoje é próximo do pastor Silas Malafaia, da Advec. “Ele [Nascimento] frequenta várias igrejas, mas é o candidato do pastor Silas. Ele é o candidato da nossa igreja em São Paulo. É o candidato que tem uma mala direta com mais de 200 mil nomes de pessoas evangélicas de São Paulo ligados ao pastor Silas”, explica o deputado Sóstenes.
O pastor e deputado procura amenizar a disputa interna entre os evangélicos. “A igreja evangélica é plural. Nós não temos um grupo mais forte do que o outro ou menos forte. Há igrejas maiores, porém, conforme mostram os números do IBGE. Isso se reflete no parlamento”, diz.
Malafaia quer herdar o espólio do bolsonarismo
O pastor Silas Malafaia, mentor de Sóstenes, procurou se notabilizar nos últimos anos como um dos líderes do bolsonarismo e como protagonista de um ativismo evangélico conservador, que cresceu e ganhou força no país.
Em busca de um fortalecimento político maior para sua igreja, Malafaia apostou na aproximação com os seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL, e na manutenção de um alinhamento com a extrema direita. Tenta herdar o espólio do bolsonarismo.
Malafaia foi o patrocinador e organizador de atos pelo Brasil reivindicando anistia a Bolsonaro, que está inelegível por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, TSE, até 2030 e é réu na ação penal que apura a tentativa de golpe para mantê-lo no poder após as eleições de 2022.
Aliado tradicional de políticos conservadores, embora já tenha apoiado Lula e o PT no passado, Malafaia e sua igreja têm entre os seus objetivos o combate às ações da esquerda. O presidente Lula e o PT estão entre os seus alvos preferidos. Verborrágico e histriônico, o pastor usa o seu poder midiático e faz um forte apelo emocional nos discursos e pregações.
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Malafaia tem ampliado a construção de templos de sua igreja pelo país – inaugurou mais um em março em Santo André, na Grande São Paulo. Para crescer, também tem investido na formação de seus religiosos.
Há quem acredite que ele teria interesse em pleitear a vaga de Bolsonaro na candidatura à Presidência, já que o ex-presidente está inelegível, ou mesmo aparecer como vice em uma eventual candidatura da ex-primeira-dama Michelle ou do deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PL de São Paulo.
Mas líderes evangélicos descartam essa possibilidade. “O desejo dele é ajudar a eleger alguém e ficar ao lado, como um conselheiro. Ele quer ser o braço direito informal de um eventual presidente”, avalia o pastor Dusilek.
Samuel Ferreira mira bancada forte no Congresso
Já o bispo Samuel Ferreira, da Assembleia Madureira, tem prometido investir pesado na próxima disputa eleitoral para eleger o maior número de parlamentares, segundo religiosos próximos a ele. A ideia de Ferreira é preparar membros da igreja para ingressar na política, elegendo-os e depois exercendo influência sobre eles.
O ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, do Republicanos, que chegou a ser preso durante a Lava Jato – a punição depois foi anulada – e cassado em 2016, é um desses candidatos. Ligado à Assembleia Madureira, Cunha pretende voltar ao Congresso, concorrendo por Minas Gerais com o apoio do clã Ferreira.
O projeto de Samuel Ferreira é adquirir emissoras de rádio pelo país ou alugar espaços em programações com a intenção de ceder horários para pastores de igrejas menores em troca de apoio à campanha de candidatos da Assembleia de Deus. Em São Paulo, uma das emissoras utilizadas pelo grupo é a rádio 102.9 FM.
Eduardo Cunha estaria reproduzindo essa estratégia. Em fevereiro deste ano, ele adquiriu, segundo o site mineiro Vai na Fonte, um imóvel de mais de 600 metros no bairro Savassi, área nobre de Belo Horizonte, para instalar ali o seu escritório político e uma rádio evangélica ligada à Assembleia.
O posicionamento da igreja no espectro político, porém, é dúbio. O pai do bispo Ferreira, o ex-deputado Manoel Ferreira, bispo-primaz da Madureira e presidente vitalício da Convenção Nacional das Assembleias de Deus Madureira, apoiou Lula em 2006 e depois Dilma Rousseff, também do PT, em 2010. Mas se alinhou à campanha de Jair Bolsonaro em 2018.
Em 2021, Manoel Ferreira recebeu o presidente Lula no Rio de Janeiro. Na época, o petista iniciava sua campanha eleitoral. Apesar dos acenos a Lula, a Assembleia Madureira apoiou novamente Bolsonaro em 2022.
O pai Manoel e o filho Samuel têm mantido encontros com o governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, cotado como um possível candidato à presidência na vaga de Bolsonaro, e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, do MDB, que deseja concorrer ao governo paulista, caso Tarcísio desista mesmo da reeleição.
No último 9 de junho, Tarcísio e Nunes foram recebidos na sede da Assembleia Madureira, no bairro do Brás, região central de São Paulo, por onde passaram também outros políticos como Gilberto Kassab, presidente nacional do PSD, e o ministro da Advocacia-Geral da União no governo Lula, Jorge Messias, que é evangélico e membro da Igreja Batista, para celebrar o aniversário de Manoel e Samuel Ferreira.
Três meses antes, em março, Nunes esteve na mesma sede para participar da Convenção da Assembleia Madureira, junto com Samuel Ferreira, o pastor Silas Malafaia e o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, do União Brasil, que mira a candidatura à presidência em 2026. Já em fevereiro, faleceu a bispa Keila Ferreira, esposa de Samuel, e Jair Bolsonaro, Tarcísio e Nunes compareceram ao velório.
Prioridade na Universal é fortalecer Republicanos e Record
Enquanto isso, a Igreja Universal de Edir Macedo busca ampliar ainda mais esse seu alicerce político e midiático, além de fortalecê-lo. A estrutura organizacional atual da Universal conta com mais de mais de 100 empresas, incluindo um banco, a TV Record e um partido político em ascensão: o Republicanos, com 44 deputados federais, quatro senadores e 433 prefeitos.
Para a eleição de 2026, a Universal tem criado até podcasts voltados aos seus fiéis que integram o grupo Arimateia, o braço de formação política da igreja, a fim de mobilizá-los. Líderes da Universal, como o deputado federal por São Paulo e pastor Marcos Pereira, presidente do Republicanos, têm arregimentado pastores e líderes de outras pequenas denominações evangélicas para atuar em sua campanha à reeleição, relatou ao Intercept um ex-pastor da instituição que prefere não se identificar por temer represálias.
A Universal apoiou Bolsonaro nas duas últimas eleições presidenciais e durante o seu governo, a partir de 2019. Na campanha eleitoral de 2022, criticou duramente Lula. Agora, pragmaticamente, se mantém em silêncio e tenta ficar bem com o governo do petista.
A intenção, na análise de observadores no meio evangélico, é procurar manter uma boa relação com o governo e, assim, obter benefícios, como verbas publicitárias polpudas para a TV Record. O histórico também pesa: a Universal sempre participa ativamente das eleições presidenciais, mas costuma anunciar suas escolhas apenas na reta final, de acordo com o quadro político do momento e a opção que avaliar ser a mais conveniente.
Vale destacar que o partido mantém um representante no ministério de Lula: Silvio Costa Filho, que comanda a pasta de Portos e Aeroportos. O partido alega, no entanto, que a nomeação de Costa Filho teria sido uma indicação pessoal do presidente da República.
O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.
Enquanto Nikolas, Gayers, Michelles e Damares ensaiam seus discursos, quem realmente move o jogo político atua nas sombras: bilionários, ruralistas e líderes religiosos que usam a fé como moeda de troca para retomar ao poder em 2026.
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