Vai ficar para a história a foto do presidente Lula, em evento de comemoração do 2 de julho na Bahia, segurando uma placa com os dizeres “taxar os super ricos”. Lula deve ter compreendido que o Congresso optou por tornar o Executivo ingovernável e que não será parceiro para a aprovação do que pode ser seu maior trunfo para a reeleição: a isenção completa do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil e parcial para ganha até R$ 7 mil.
Em tempos de derrota, sobretudo frente ao Congresso Nacional, mas também com a queda de popularidade, a melhor arma é o ataque. O presidencialismo de coalizão demonstrou suas limitações estruturais, seladas na resistência do Congresso Nacional a atacar os privilégios dos seus financiadores e do seu compromisso de classe.
A única forma de sobrevida e reeleição da chapa Lula é se tiver jogo combinado com a torcida, ou seja: contando com a mobilização da sociedade para mudar a correlação de forças a partir de uma proposta que está quente na conjuntura.
A pauta da justiça tributária já tem mobilizado as redes e as ruas. Afinal, diferentemente de outras tantas justas reivindicações, a modificação da tributação brasileira tem um apelo material óbvio – os mais pobres vão pagar menos ou nada – e uma dimensão ideológica simples e de fácil entendimento: os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os mais ricos.
O sistema tributário brasileiro é um dos mais regressivos do mundo. Historicamente – desde a Constituição Federal de 1881 e passando pelas outras quatro até chegar à Constituição Federal de 1988 – o sistema tributário se manteve ancorado em uma estrutura repleta de distorções, ineficiências e injustiças sociais.
A forma como o sistema tributário brasileiro está hoje organizado não apenas se coloca como um entrave ao crescimento econômico, mas – sobretudo – é um dos principais mecanismos de produção e reprodução do basilar problema nacional que é a persistente e indecente desigualdade social. Ou seja: opera na contramão do crescimento econômico, da equidade social e do equilíbrio federativo – e, portanto, do texto Constitucional de 1988.
Para entender melhor as raízes dessa desigualdade – e por que esse é um momento em que tudo pode mudar –, vem comigo:
1. O Brasil não cobra muito imposto. Ele cobra muito mal.
Nós temos uma carga tributária que é composta, na sua maior parte, de impostos indiretos que incidem tanto sobre o consumo como sobre a mão de obra. Impostos indiretos são, por natureza, violadores do princípio básico da equidade vertical e horizontal, na medida em que eles recaem de forma igual para sujeitos desiguais.
Para corrigir essa distorção, os países menos desiguais lançam mão de uma maior participação do chamado imposto “direto”, aquele que é capaz de tributar mais quem ganha e tem mais, assim como tributar menos quem ganha e tem menos.
Além dessa completa inversão, comparativamente aos principais e menos desiguais países do mundo, o sistema tributário brasileiro inibe o desenvolvimento do mercado interno. Isso porque ele retira – proporcionalmente – mais renda dos mais pobres que, ao gastarem uma soma grande em tributos, ficam com menos dinheiro disponível para consumo. Assim, deixam de estimular essa variável que, hoje, é responsável algo em torno de 60% da composição do PIB nacional.
O sistema tributário apresenta uma grave distorção, que não encontra paralelo em nenhuma bem-sucedida experiência internacional. Isso porque embora a carga tributária em relação ao PIB seja de 32,6% – próxima a média dos países da OCDE, que é 34% – a sua distribuição em relação aos tributos é uma particularidade do nosso sistema injusto. Ou seja, o Brasil não cobra muito imposto, ele cobra muito mal os impostos.
Composição da Carga Tributária em relação ao PIB (%) dos países da OCDE e do Brasil
2. Na contramão de países desenvolvidos, o Brasil cobra muito pouco sobre patrimônio e riqueza. Ou seja: quem tem muito paga pouco.
Os dados dessa tabela mostram o caráter regressivo da tributação, uma vez que a maior parte da arrecadação total brasileira – quase 50% – vem de tributação indireta, aquela que recai sobre a compra de bens e serviços. Na média dos países da OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, esse tipo de tributação corresponde a apenas 32,4% da arrecadação total:
País | Renda | Patrimônio | Consumo | Outros |
Alemanha | 31,2 | 2,9 | 27,8 | 28,1 |
Bélgica | 35,7 | 7,8 | 23,8 | 32,7 |
Chile | 36,4 | 4,4 | 54,1 | 5,1 |
Coreia do Sul | 30,3 | 12,4 | 28 | 29,3 |
Dinamarca | 63,1 | 4,1 | 31,6 | 1,2 |
Espanha | 28,3 | 7,7 | 29,7 | 34,3 |
EUA | 49,1 | 10,3 | 17 | 23,6 |
França | 23,5 | 9 | 24,3 | 43,2 |
Holanda | 27,7 | 3,8 | 29,6 | 38,9 |
Irlanda | 43 | 6,4 | 32,6 | 18 |
Itália | 31,8 | 6,5 | 27,3 | 34,4 |
Japão | 31,2 | 8,2 | 21 | 39,6 |
Noruega | 39,4 | 2,9 | 30,4 | 27,3 |
Portugal | 30,2 | 3,7 | 38,4 | 27,7 |
Reino Unido | 35,3 | 12,6 | 32,9 | 19,2 |
Suécia | 35,9 | 2,4 | 28 | 22,6 |
Turquia | 20,3 | 4,9 | 44,3 | 30,5 |
Brasil | 21 | 4,4 | 49,7 | 24,9 |
Média da OCDE | 34,1 | 5,5 | 32,4 | 28 |
Por outro lado, no Brasil se arrecada muito pouco daqueles tributos diretos, que têm capacidade de taxar mais quem ganha mais, contribuindo para a redução das desigualdades sociais e da concentração de renda e patrimônio.
Apenas 4,4% do total arrecadado pelo Brasil provém da tributação sobre patrimônio, ou seja, sobre estoque de riqueza adquirida. Além disso, apenas 21% do total tributado provém do imposto de renda, o que é bastante inferior ao que se pratica nos países mais desenvolvidos do mundo, nos quais esse tributo corresponde a 34,1% do total da carga tributária.
Apesar disso, a reforma do sistema tributário brasileiro ainda passa por grande objeção em uma parte da sociedade. Os poderosos, aqueles que são os donos do poder político e econômico, não estão interessados em renunciar aos seus privilégios.
3. A discussão sobre justiça tributária é também uma discussão sobre luta de classes.
A proposta do governo e dos movimentos populares, que visa cobrar mais de quem recebe mais de R$ 600 mil ao ano e isentar total ou parcialmente quem ganha até R$ 7 mil por mês, nada mais é do que luta de classes.
A luta de classes pode adquirir diversas facetas na sociedade capitalista: a principal delas é o conflito entre o “capital” e o “trabalho”. Ou seja, entre aqueles que exploram o trabalhador e entre aqueles que são explorados.
No entanto, há outras formas em que o conflito entre proprietários da riqueza e vendedores da força de trabalho se expressa. A luta pela taxação dos super ricos e isenção de Imposto de Renda dos mais pobres é luta de classes pela perspectiva do conflito distributivo: ou seja, sobre como vão ser distribuídas a renda e riqueza nacional, se vão seguir sendo apropriadas pelos mais ricos na forma de baixa tributação, ou se vão ser apropriadas pelos mais pobres na forma de isenção.
4. Enquanto você sofre para pagar IR, quem vive de renda não paga nada.
Na proposta do Governo Federal – e que é a proposta histórica dos movimentos populares – os mais ricos não serão sobretaxados apenas porque são mais ricos. Mas, principalmente, porque eles não contribuem proporcionalmente à sua riqueza quanto os mais pobres.
Isso pode ser um pouco difícil de entender, mas vamos tentar. No Brasil, os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos do que os mais ricos. Um dos motivos é que a maior parte do recolhimento de impostos é via tributação indireta, como já vimos. O outro é porque a principal parcela de composição da renda dos mais ricos vem de renda do capital, e não renda do trabalho. E acredite se quiser: a renda do capital é isenta no Brasil!
Isso mesmo: nós, trabalhadores, recolhemos Imposto de Renda na fonte. Mas os mais ricos, que têm proporcionalmente a maior parcela da sua renda vinda de juros e dividendos, não pagam nada. Só o Brasil, a Letônia e a Estônia não taxam juros e dividendos na pessoa física.
Vejam com os próprios olhos: a linha azul mais forte é a alíquota efetiva paga por diversos conjuntos de renda. Veja que o sistema tributário é progressivo até o grupo social que ganha até 40 salários-mínimos/mês. Após isso, passa a ser mais regressivo:
Ou seja: quem ganha mais de 320 salários-mínimos por mês paga apenas 6,36% de imposto de renda. Praticamente a mesma coisa do grupo que ganha entre sete e 10 salários-mínimos por mês. Isso porque, repito, quanto mais elevada a renda maior é a presença da chamada “renda do capital”, sobretudo os juros e os dividendos.
Se vocês fizerem as contas, vão ver que 40 salários-mínimos equivalem a R$ 60 mil reais/mês, exatamente a faixa que será sobretaxada na proposta atual. Ou seja, não é que o governo está punindo quem ganha mais. Ele apenas está corrigindo uma distorção.
5. Quem vai pagar a conta? Os super ricos e quem tem renda além do trabalho, como juros e aluguéis.
É importante saber que apenas será sobretaxado em alíquotas progressivas de até 10% aqueles que ganham mais de R$ 50 mil por mês – que não seja apenas renda do trabalho.
Ou seja, se você é um trabalhador com esse salário, você não vai pagar nada a mais. Mas se esse recurso provém de renda do trabalho e de outras rendas como aluguéis, juros e dividendos, aí sim haverá a aplicação da alíquota mínima.
É preciso deixar claro que a proposta beneficiará, diretamente, 10 milhões de brasileiros e afetará, apenas, 0,04% das pessoas. Isso mesmo: são aproximadamente 114 mil pessoas que passarão a pagar mais.
Esse total não representa nem a quantidade de moradores do bairro da Tijuca no Rio de Janeiro. Ou seja, paremos para pensar: é menos gente que UM bairro, em UMA cidade em UM estado brasileiro.
7. Esse é um momento histórico para lutar contra um de nossos problemas mais graves – e precisamos aproveitar.
O tema da justiça tributária é essencial porque o Brasil é um dos países mais injustos do mundo: só perdemos para a África do Sul. Segundo um estudo que levou em conta dados da Receita Federal do Brasil, em 2015, no Brasil, os 10% mais ricos se apropriaram de 55,3% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres de apenas 12,3%.
Estamos diante de uma das janelas históricas que se abrem periodicamente. O governo brasileiro resolveu apostar na ousadia e levar ao Congresso Nacional aquela que foi sua proposta de campanha: isentar de IR os trabalhadores que ganham até R$ 5 mil reais e reajustar a tabela de contribuição para quem ganha até R$ 7 mil.
Como forma de compensar a perda de arrecadação, os mais ricos arcarão com uma pequena parcela. Ou seja, alivia o bolso dos mais pobres, dinamiza a economia brasileira e, de quebra, ainda contribui na justiça fiscal.
O Congresso Nacional já mostrou seu lado: seu papel de preposto dos interesses dos mais ricos, dos grandes empresários e do capital financeiro. Ou seja, estamos diante da aceleração do tempo histórico, de avanço na luta de classes.
Esse é o verdadeiro nós contra eles: nós que queremos justiça fiscal e eles que querem manter privilégios.
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