O data center que o TikTok pretende instalar em Caucaia, município da região metropolitana de Fortaleza, no Ceará, projeta consumir em um dia a mesma quantidade de energia gasta por 2,2 milhões de brasileiros em suas casas. Isso significa que, sozinho, ele gastará mais energia do que 99,9% dos municípios brasileiros – se a sua demanda for comparada diretamente com o consumo médio por habitante de cada cidade.
O impacto foi calculado pelo Intercept Brasil com base em informações do relatório ambiental simplificado, o RAS, que tivemos acesso com exclusividade. O documento foi apresentado pela Casa dos Ventos, empresa que assina oficialmente o projeto, ao governo do Ceará para obter a licença prévia, primeira das três etapas do licenciamento ambiental.
Embora a Casa dos Ventos seja quem se apresenta oficialmente como responsável pelo projeto, o Intercept confirmou com fontes do governo e revelou em maio que quem vai ocupar na prática o data center é a chinesa ByteDance, dona da rede social TikTok.
Para medir o tamanho da demanda de energia do data center, comparamos o gasto diário de energia previsto no projeto do empreendimento com o consumo residencial médio diário do brasileiro no ano passado. Segundo o relatório da Casa dos Ventos, o “consumo esperado para o projeto é de potência média de 210 MW, o que equivale a um consumo diário de 5.040 MWh para uma operação de 24 horas”.
Como o consumo residencial médio diário de um brasileiro foi de 2,27 kWh em 2024, segundo dados do Anuário Estatístico de Energia Elétrica, da Empresa de Pesquisa Energética, a EPE, isso significa que o data center terá um gasto equivalente ao consumo residencial de mais de dois milhões de pessoas.
A conta é simples: dividimos o consumo do data center (5.040.000 kWh/dia) pelo consumo residencial por habitante (2,27 kWh/dia). A base de dados oficial não possui informações de consumo residencial dos municípios, o que impede a comparação da demanda do data center com cidades específicas.
Mas pode ser ainda pior, pois essa é a previsão de consumo para o início da operação do data center. A empresa informa que a potência média de 210 MW representa 70% da capacidade total disponível. A ideia é que eventualmente o data center alcance uma potência média de 300 MW – ou seja, essas comparações, que já são superlativas, podem aumentar ainda mais. Quando atingir a capacidade máxima, o data center vai consumir por dia o equivalente a 3,2 milhões de brasileiros.
No início deste ano, a Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel, havia dado o aval para a Casa dos Ventos acessar a rede básica de energia para implantar o data center. Mas, poucos dias depois, o Operador Nacional do Sistema, o ONS, publicou um relatório apontando uma “inviabilidade sistêmica” por riscos de sobrecargas significativas.
A empresa entrou com recurso, que foi negado pela Aneel. Mas, no fim de maio, a Casa dos Ventos obteve autorização após um novo parecer favorável do ONS, que condicionou o projeto à implementação de obras estruturantes para fortalecer a rede, como construção de linhas de transmissão.
O diretor-executivo da Casa dos Ventos, Lucas Araripe, disse recentemente em entrevista ao site MegaWhat que a energia para abastecer o data center no Ceará será fornecida por novos parques eólicos e solares “a serem instalados no Nordeste e dedicados exclusivamente para alimentar essa atividade”.
Em resposta a questionamentos do Intercept, a Casa dos Ventos disse que os novos projetos eólicos e solares ficarão no Ceará e outros estados nordestinos e que estão em “fase avançada de desenvolvimento”, com licença ambiental e conexão à rede básica.
A empresa afirmou ainda que foram realizados estudos de viabilidade de conexão da carga elétrica, como solicitado por órgãos federais, e que o projeto teve, desde o início, “foco em sustentabilidade, alta eficiência energética e conectividade internacional”. Sobre o data center em Caucaia, informou que o plano é iniciar as obras no segundo semestre deste ano, com a entrada em operação no segundo semestre de 2027.
A Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará, a Semace, órgão responsável pelo licenciamento, não respondeu nossos questionamentos sobre o projeto. Ainda procuramos o TikTok para comentar sobre o data center, mas não tivemos retorno até a publicação desta reportagem.
Apesar da sinalização da Casa dos Ventos de que construirá novos parques de geração, não falta energia renovável no Nordeste. Pelo contrário, o setor vive hoje uma espécie de crise provocada por um excesso de produção, resultado de uma política de subsídios à construção de usinas que gerou uma bolha especulativa.
Só que, se por um lado sobra geração, falta infraestrutura, como linhas de transmissão, para escoar essa energia para o restante do país. É preciso diminuir a geração nas usinas para evitar desligamento da rede ou até apagões, explicou ao Intercept Luiz Carlos Pereira da Silva, professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e Computação da Universidade de Campinas, a Unicamp.
Os data centers entram como potenciais clientes para consumir esse excedente perto do local onde a energia é gerada – e a Casa dos Ventos, que é eólica, além de atuar no segmento de data centers, está bem posicionada para se beneficiar desse movimento. O governo já avalia a criação de instrumentos de atração para data centers ao Nordeste, afirmou Igor Marchesini, assessor especial do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em um evento do setor de energia no fim de junho.
Segundo dados do Ministério de Minas e Energia, há quatro projetos de data center em fase de documentação inicial localizados na Bahia, Rio Grande do Norte e Ceará – os principais estados geradores de energias renováveis do Brasil. Três pertencem à Casa dos Ventos e um à Qair Brasil, também uma empresa de renováveis.
Nem a Casa dos Ventos nem a Qair são empresas do segmento de tecnologia. Isso é um forte indicativo de que, assim como no caso do TikTok em Caucaia, a infraestrutura do data center será ocupada por outras grandes empresas estrangeiras de tecnologia.
Uma metrópole que nunca para de consumir energia
O data center que será construído em Caucaia será como uma cidade que nunca dorme. Operando no regime 24×7 – ou seja, sem parar, sete dias por semana –, o empreendimento terá um apetite energético de uma metrópole.
Diariamente, o complexo consumirá mais energia do que a maioria dos 5,5 mil municípios brasileiros. Se fosse uma cidade, o data center ocuparia a 7ª posição entre as maiores do país, considerando a média nacional de consumo residencial por habitante, de 2,27 kWh por dia.
Quando se considera a média regional do Nordeste, onde será instalado o empreendimento, de 1,75 kWh/dia, o gasto energético do data center corresponderia a uma cidade ainda mais populosa, de 2,9 milhões de habitantes.
Dados do relatório ambiental simplificado enviado às autoridades também permitem calcular o consumo anual previsto pelo empreendimento: 1,84 TWh. Isso é mais do que o gasto elétrico total de três estados brasileiros – Acre, Amapá e Roraima – e equivale a pouco mais de 1% de todo o consumo do estado de São Paulo, incluindo indústrias, residências e iluminação pública.
Se a comparação for feita novamente com base apenas no consumo residencial, os percentuais passam a ser significativos até mesmo para os três estados mais populosos do país. O empreendimento representaria, sozinho, o equivalente a 3,9% de todo o consumo residencial de São Paulo, 12% de Minas Gerais e 13,9% do Rio de Janeiro.
Esse percentual cresce na lista dos estados mais populosos: na Bahia, o data center consumiria o equivalente a 22,5% do consumo residencial; no Paraná, 18%; e no Rio Grande do Sul, 16%. O data center do TikTok também consumiria 271,6% de todo o consumo residencial do Acre, ou seja, quase três vezes mais do que se consome nas casas do estado.
Tecnologia e resfriamento impulsionam consumo de energia
O alto gasto de energia do data center tem duas razões principais: o método de resfriamento utilizado no projeto e a demanda energética dos supercomputadores que processam, treinam e distribuem dados.
Segundo informações do relatório ao qual o Intercept teve acesso, a empresa usará um sistema de ar-condicionado para resfriar o data center — composto por equipamentos como condicionadores de ar, unidades de resfriamento conhecidas como chillers, tanques de regulação de temperatura e uma estrutura de canos e tubos que distribuem água e energia elétrica.
Nesse tipo de sistema, o consumo de água tende a ser baixo – a empresa projeta usar apenas 30m³ por dia, retirados de poço artesiano, sendo 10m³ dedicados ao sistema de refrigeração. Isso equivale ao que 230 habitantes de Fortaleza consomem por dia. Mas, se o uso de água é baixo, o consumo de energia elétrica, em compensação, dispara.
Outro fator que implica em um alto consumo de energia é a atividade do data center. Segundo o RAS, o projeto tem como “finalidade principal fornecer serviços de processamento, armazenamento e gerenciamento de dados com alto padrão de eficiência”.
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Mas quem define mesmo quais atividades serão desempenhadas pelos supercomputadores dentro do data center é a empresa que ocupará o projeto: o TikTok. Para além do feed infinito cheio de vídeos curtos, a ByteDance, empresa-mãe da rede social, também tem desenvolvido um modelo de IA.
Em fevereiro deste ano, a empresa inclusive lançou um modelo avançado para geração de vídeos. O Omni Human-1 é capaz de criar vídeos realistas de pessoas conversando, cantando e se mexendo a partir de uma imagem estática. Em um exemplo apresentado pelos desenvolvedores do modelo, o cientista Albert Einstein aparece falando.
E isso tem tudo a ver com o potencial consumo de energia do data center que o TikTok pretende operar no Ceará, uma vez que, quanto maior a quantidade de processamento de dados, mais energia é gasta.
Um estudo publicado em novembro de 2024 por pesquisadoras do Hugging Face, uma startup global focada em IA responsável e aberta, e da universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, concluiu que modelos focados em tarefas generativas, ou seja, que criam imagens, vídeos e áudios, usam mais energia e carbono do que outras atividades.
Enquanto um modelo de classificação de texto gasta entre 0,002 e 0,007 kWh a cada mil inferências, um modelo de geração de imagens gasta entre 0,06 e 2,9 kWh a cada mil inferências.
O estudo também destacou que tarefas que envolvem a criação de imagens são mais intensivas em uso de energia e carbono do que tarefas que envolvem apenas texto. Na prática, isso significa que o consumo de energia do data center em Caucaia está diretamente relacionado a quais atividades e tarefas o TikTok quiser “rodar” naqueles servidores.
Grandes empresas de tecnologia como o TikTok precisam de data centers, esses grandes armazéns com poderosos supercomputadores, para processar e distribuir dados e treinar modelos. Esse data center pode funcionar como uma central de processamento para usuários do TikTok no mundo todo, independentemente de onde estejam acessando a plataforma. Isso significa que, apesar de ficar no Brasil, essa estrutura servirá a usuários globalmente.
Energia limpa, mas não livre de impactos ambientais
O projeto de data center em Caucaia prevê usar 100% de energia renovável. Segundo o relatório ambiental da Casa dos Ventos, o data center contará também com um sistema de backup com 60 geradores à base de diesel, que entrarão em funcionamento caso falte energia, suficiente para manter a operação por 24 horas.
O Ceará é um dos maiores produtores de energia renovável do Brasil, especialmente eólica e solar. Em 2023, foi o terceiro maior gerador de energia renovável do Nordeste, atrás apenas de Rio Grande do Norte e Bahia.
A Casa dos Ventos, empresa responsável pelo projeto de data center, é uma das principais companhias do segmento de renováveis, com participação em energia eólica, solar, e mais recentemente, hidrogênio verde.
Apesar de o uso de energia renovável ser melhor do que outros tipos, isso não significa que essa matriz seja livre de causar danos ambientais. “Não é uma energia livre de impactos, justamente por causa da sua interação durante o seu processo de construção e de operação, da sua interação muitas vezes problemática em relação às comunidades próximas a esses empreendimentos”, avalia Adryane Gorayeb, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará e criadora do Observatório da Energia Eólica, ligado à universidade.
‘A gente não vai ter uma transição energética, mas uma transação’
Segundo ela, as questões vão desde bloqueio de acesso a áreas antes visitadas pelas comunidades até aterramento de lagoas, bloqueio de áreas de pesca, acessos à praia e, inclusive, o ruído sonoro que gera durante o funcionamento.
As torres que produzem energia eólica geram ruído e infra-sons constantes, associados a uma série de sintomas que vão de insônia a dores de cabeça – e já ganharam até mesmo uma nomenclatura própria: a síndrome da turbina eólica.
Em 2023, pesquisadores da Fiocruz Pernambuco, em parceria com a Universidade de Pernambuco, a UPE, se dedicaram a estudar o impacto do funcionamento de parques eólicos em populações rurais. Em uma das etapas, cerca de 70% dos entrevistados disseram que queriam deixar suas casas devido aos incômodos.
Os danos ambientais também estão documentados. Em 2022, mais de 4 mil hectares de caatinga, um bioma já sob grave ameaça, foram desmatados para receber infraestrutura ligada a energias renováveis, incluindo linhas de transmissão, segundo dados do relatório anual do desmatamento divulgado pelo MapBiomas.
Para Andrea Camurça, assistente social e coordenadora de incidência política do Instituto Terramar, há uma diversidade de danos causados pelas plantas de energia renovável, desde violações de direitos humanos aos impactos ambientais. Nesse contexto, ela destaca que a chegada de empreendimentos com alto consumo de energia, como é o caso do data center, são preocupantes porque podem justificar um aumento na demanda.
“A gente não vai ter uma transição energética, mas uma transação. Você vê a ampliação [da demanda] e não a substituição. Por isso, a gente fica muito preocupada com a chegada do data center”, analisa ela.
‘Essas novas demandas estão ficando cada vez mais intensas’
Segundo Camurça, a geração de energia eólica tem instabilidades, o que levanta dúvidas sobre de onde virá a energia para o data center em caso de problemas no abastecimento – e se isso será usado como justificativa para manter outras fontes não-renováveis presentes na região, como termelétricas. “Contraditoriamente, vai precisar daqui a pouco manter essa termelétrica por conta da instabilidade da produção de energias renováveis”, explica.
Essa já é uma preocupação da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Ela falou sobre os efeitos dos data centers em uma entrevista semana passada à imprensa em Londres, onde cumpriu agendas relacionadas à London Climate Action Week. “É, com certeza, uma preocupação o uso intensivo de energia, porque isso faz com que novas fontes sejam cada vez mais buscadas”, afirmou.
Segundo ela, o Ministério do Meio Ambiente, o MMA, tem participado de um grupo técnico junto a outros ministérios para pensar em como “nos proteger de uma pressão que seja insustentável em relação ao suprimento de energia para essas novas demandas que estão ficando cada vez mais intensas”.
Especialistas ouvidos pelo Intercept ressaltam que energias renováveis ainda são alternativas muito mais interessantes que combustíveis fósseis, mas há formas de implementar projetos do tipo que gerem ganhos também para as comunidades próximas e menos danos ao meio ambiente.
“Somos totalmente a favor das energias renováveis, não queremos mais queimar combustíveis fósseis de forma alguma. Mas entendemos que é preciso pensar em formas mais sustentáveis de atuação no planeta, e trazer formas mais democráticas e de distribuição de riquezas, pensando na melhoria da qualidade de vida das populações que tradicionalmente são marginalizadas e já são vítimas desses grandes empreendimentos”, pontua Gorayeb, da Universidade Federal do Ceará e do Observatório da Energia Eólica.
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