Prédio onde o líder do Hezbollah foi morto no ataque israelense, em Beirute. Foto: Leilla Salim

Novos ataques israelenses incitam uma guerra regional, Hezbollah fala em ‘nova fase’

Israel assassinou lĂ­deres do Hamas e do Hezbollah, desafiando o IrĂŁ a reagir. Em Beirute, moradores temem mais derramamento de sangue.

Prédio onde o líder do Hezbollah foi morto no ataque israelense, em Beirute. Foto: Leilla Salim

Com calçadas vazias, barreiras de segurança, comĂ©rcio parcialmente fechado e muitas motocicletas circulando nervosamente, o subĂșrbio de Haret Hreit, ao sul de Beirute, viveu a Ășltima quarta-feira entre o luto e a apreensĂŁo. Durante a tarde, enquanto seguiam as buscas nos escombros do prĂ©dio atingido pelo ataque aĂ©reo de Israel na noite anterior, os irmĂŁos Amira Fadlallah, de 6 anos, e Hassan Fadlallah, 10, foram enterrados.  

Outras trĂȘs vĂ­timas civis do ataque – Hana Bachir Hakim, sua filha Salwa Zouheir Bitar e Wassila Beydoun – foram confirmadas, elevando o nĂșmero total de civis mortos por Israel no LĂ­bano desde 8 de outubro de 2023 para 81, segundo a mĂ­dia local. Os feridos reportados apenas no Ășltimo ataque sĂŁo cerca de 75. 

JĂĄ era noite de quarta-feira no LĂ­bano quando o partido polĂ­tico e grupo paramilitar Hezbollah confirmou a morte de seu comandante de primeiro escalĂŁo Fuad Shukr, tambĂ©m chamado pelo nome militar Al-Hajj Mohsen. 

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Desde a noite anterior, horas apĂłs o ataque, Israel afirmava que o comandante havia sido morto em um ataque “direcionado e baseado em inteligĂȘncia”, em retaliação ao bombardeio que matou 12 crianças e feriu 30 pessoas em uma comunidade drusa nas Colinas de GolĂŁ, territĂłrio sĂ­rio ocupado por Israel. O ataque ao grupo ĂĄrabe nas Colinas de GolĂŁ foi atribuĂ­do por Israel ao Hezbollah, que nega a autoria. 

O bombardeio israelense é um de uma série de ataques desta semana que representam uma grande escalada no conflito e aumentam a chance de uma guerra regional em larga escala que o Líbano e o Irã, por nove meses, ameaçaram, mas também tentaram impedir.

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O Hezbollah, que inicialmente nĂŁo confirmava a informação das Forças de Defesa Israelenses (IDF, na sigla em inglĂȘs), iniciou a quarta-feira comunicando que Shukr estava no prĂ©dio atingido, mas que seu estado era “desconhecido”.  Somente apĂłs o dia de buscas nos escombros, declarou oficialmente a morte do lĂ­der militar. Najib Mikati, primeiro-ministro interino do LĂ­bano, repudiou o ataque e afirmou que o paĂ­s vai denunciar novamente Israel Ă  ONU. 

Ao longo do dia, no entanto, ninguĂ©m na ĂĄrea atingida pelos caças israelenses parecia ter dĂșvidas de que a qualquer momento o corpo de Fuad Shukr seria encontrado. Uma barreira de segurança isolava o prĂ©dio para a imprensa, mas permitia a entrada a moradores de Haret Hreit. Do outro lado da rua, um aglomerado de jornalistas da mĂ­dia local e internacional esperava uma visita guiada aos escombros, que acabou sendo cancelada. 

‘Fortaleza do Hezbollah’

O subĂșrbio ao sul de Beirute Ă© uma ĂĄrea residencial com uma histĂłria muito mais longa e complexa do que apenas uma “fortaleza do Hezbollah”, como Ă© chamado de forma reducionista nas reportagens ocidentais. Uma microrrepresentação das relaçÔes entre grupos sociais, migraçÔes e redefiniçÔes demogrĂĄficas que marcam a histĂłria libanesa, Haret Hreit Ă© uma ĂĄrea hoje majoritariamente habitada por muçulmanos xiitas e que conta com algumas famĂ­lias de cristĂŁos maronitas.

Prédio onde o líder do Herbollah foi morto no ataque israelense, em Beirute. Foto: Leilla Salim
Prédio onde o líder do Hezbollah foi morto no ataque israelense, em Beirute. Foto: Leilla Salim

“EstĂĄvamos em casa, a algumas quadras [do prĂ©dio alvejado] e escutamos um som alto de explosĂŁo. Nenhum de nĂłs [da famĂ­lia] saiu para a rua. Ficamos esperando, porque estĂĄvamos com medo de outro mĂ­ssil vir. NĂŁo sabĂ­amos se tinha acabado. Apenas hoje vim para cĂĄ acompanhar as buscas”, contou Ali, um jovem de 22 anos que vive em Haret Hreit e se identificou apenas pelo primeiro nome. 

Ali passou o dia prĂłximo Ă  ĂĄrea de imprensa, conversando com repĂłrteres e, de tempos em tempos, saindo em sua moto para buscar ĂĄgua, cafĂ© e lanches para oferecer a quem quisesse. “VocĂȘ sabe como Ă© a tradição ĂĄrabe. Sempre temos comida a oferecer”, brincou. 

Ao longo do dia, encontrou amigos que tambĂ©m iam visitar a ĂĄrea atingida. “NĂłs estudamos na mesma escola”, disse, apĂłs sorrir e abraçar um jovem que chegava por volta das 17h – em um clima aparentemente amistoso que poderia parecer estranho a quem, minutos antes, o ouvisse dizendo que a situação era de pĂąnico e horror. 

“Depois da noite de ontem, sabemos que estamos entrando em um novo momento da guerra. Essa semana serĂĄ de pĂąnico e muito estresse. Temos que esperar para saber o que vai acontecer no futuro”, comentou. 

O funeral dos irmĂŁos mortos, que contou com homenagem dos colegas do time de futebol de Hassan Fadlallah, apresentação da banda de escoteiros e caminhada pelas ruas, dĂĄ pistas de que o prĂ©dio alvejado guarda mais histĂłrias e nomes do que a pecha de “escritĂłrio do Hezbollah” pode sugerir. 

Escalada para guerra regional Ă© mais provĂĄvel, dizem analistas

A escalada na regiĂŁo ganhou novos desdobramentos tambĂ©m no IrĂŁ e no Iraque nos Ășltimos dias. Ismail Haniyeh, lĂ­der polĂ­tico do Hamas, foi morto por um ataque israelense na quarta-feira em TeerĂŁ, capital do IrĂŁ, durante visita para a posse do novo presidente do paĂ­s. Apontado pelo Hamas como responsĂĄvel pelo ataque, Israel nĂŁo confirmou a autoria.

No dia anterior, praticamente no mesmo horårio do bombardeio a Beirute, um terceiro episódio: os Estados Unidos conduziram um ataque no Iraque contra as Forças de Mobilização Popular, um grupo paramilitar majoritariamente composto por xiitas.

“HĂĄ um elemento importante a destacar: Benjamin Netanyahu acabou de voltar dos EUA, conduzindo os ataques a Beirute e TeerĂŁ logo apĂłs o seu retorno a Israel. É preciso perguntar se ele recebeu algum tipo de sinalização positiva dos EUA para a escalada”, pontua Salem Nasser, professor de direito internacional da FGV-SĂŁo Paulo e especialista em Oriente MĂ©dio. 

Na avaliação de Nasser, o encadeamento dos acontecimentos parece sugerir mais fortemente a hipĂłtese de uma ação coordenada. “É importante destacar que os EUA nĂŁo sĂŁo um observador externo ou apenas um aliado de Israel no Oriente MĂ©dio. Eles sĂŁo um ator presente na regiĂŁo, com interesses e estratĂ©gias prĂłprias”, explica Nasser.

Os EUA invadiram e ocuparam o Iraque em 2003 – resultando em 300.000 mortes de civis, de acordo com algumas estimativas – e só se retiraram em 2011. No entanto, as tropas americanas retornaram em 2014. Apesar do fim formal da missão de combate dos EUA em 2021, milhares de soldados americanos permanecem no país, com milhares de outros em dezenas de bases militares espalhadas na região.

“A ação dos EUA no Iraque nĂŁo Ă© apenas um recado ao grupo da ‘resistĂȘncia islĂąmica’, mas uma sinalização de que sua presença na regiĂŁo nĂŁo se encerrarĂĄ tĂŁo cedo. HĂĄ uma negociação em andamento sobre a retirada dos EUA do Iraque, e esse ataque indica o sentido contrĂĄrio”, avalia Nasser. 

Em abril, o IrĂŁ respondeu a um bombardeio israelense contra sua embaixada alvejando bases militares israelenses com centenas de drones e mĂ­sseis em um ataque que parecia calculado para evitar mortes de civis.

Nas Ășltimas semanas, Israel tambĂ©m bombardeou a infraestrutura iemenita em resposta aos ataques do governo Houthi do IĂȘmen, que apoia a causa palestina, que tĂȘm paralisado os portos do sul de Israel.

Respostas do Hezbollah e IrĂŁ

As expectativas, agora, se direcionam para as respostas que, necessariamente, virĂŁo, tanto do Hezbollah como do IrĂŁ. “NĂŁo hĂĄ dĂșvidas de que haverĂĄ resposta. A questĂŁo Ă© saber a força e a natureza dessa resposta”, disse Nasser.

Na tarde desta quinta-feira, o secretĂĄrio-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, discursou apĂłs o funeral do comandante morto em Beirute. Ele subiu o tom em relação Ă s suas Ășltimas declaraçÔes e afirmou que a guerra entrou em uma “nova fase”, anunciando uma “resposta sĂłlida, e nĂŁo apenas formal”. 

O lĂ­der do Hezbollah afirmou que o momento Ă© uma batalha aberta em todas as frentes, e nĂŁo mais uma “frente de apoio” limitada ao norte de Israel. “O ataque ao subĂșrbio ao sul de Beirute nĂŁo foi uma resposta ao ataque em Majdal Shams [Colinas de GolĂŁ]. É parte da guerra e uma resposta Ă  frente de apoio libanesa. Estamos pagando o preço pelo nosso apoio a Gaza e ao povo palestino”, disse. 

Na avaliação de Salem Nasser, hĂĄ um impasse da situação de Israel, que aprofunda o genocĂ­dio em Gaza sem desenhar um caminho de saĂ­da da guerra. Para o professor, Ă© possĂ­vel que haja uma sequĂȘncia de ataques encadeados de parte a parte, sem que isso signifique uma guerra aberta na regiĂŁo. “Mas, nesse caso, nĂŁo hĂĄ garantia que isso nĂŁo saia de controle e que se chegue a uma guerra total. Ficamos um pouco por conta dos balanços de poder, das leituras sobre o potencial militar de cada parte”, conclui. 

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