Governo Bolsonaro deturpou edital de Dilma para fichar 'detratores' na internet

O legado da Secom

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A ascensĂŁo do tecnoautoritarismo

Parte 1


Celso Rodrigo Vieira, de 37 anos, costuma usar seu perfil do Twitter para desabafar sobre os rumos da polĂ­tica nacional. Em setembro do ano passado, resolveu comentar um tuĂ­te de Jair Bolsonaro com crĂ­ticas Ă  imprensa. Terminou bloqueado pelo presidente e listado em um banco de dados de monitoramento de redes sociais do governo federal, com sua postagem catalogada como “negativa”.

Ele nĂŁo tinha ideia de que seu comentĂĄrio estava em um arquivo do governo. Eu o encontrei no enorme banco de dados publicado em um site vinculado Ă  PresidĂȘncia da RepĂșblica e produzido pelo monitoramento de mĂ­dias sociais da Secretaria Especial de Comunicação Social, a Secom. O material reĂșne mais de 20 milhĂ”es de postagens catalogadas por abordarem temas de interesse do prĂłprio governo.

É o mesmo tipo de monitoramento feito pelo MinistĂ©rio da Economia, revelado no ano passado. Por meio de uma anĂĄlise de redes sociais, o governo classificou 77 jornalistas e personalidades pĂșblicas como “detratores”, “neutros informativos” e “favorĂĄveis”.

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O caso repercutiu no Congresso. Parlamentares de oposição viram a iniciativa como mais um rompante autoritårio do governo Bolsonaro. A deputada Jandira Feghali, do PCdoB fluminense, chegou a pedir a abertura de uma CPI para investigar o tal monitoramento digital.

“Era uma coisa absurda. Um relatĂłrio pĂ­fio, que nĂŁo se justificava”, me disse o sociĂłlogo e escritor JessĂ© Souza, cujo nome era o primeiro da lista de “detratores” da pasta comandada por Paulo Guedes.

Os monitoramentos a que foram submetidos Souza e Vieira, no entanto, nĂŁo sĂŁo isolados. SĂŁo parte de uma prĂĄtica corrente em todas as esferas do governo. O Intercept encontrou pelo menos outros 10 projetos de monitoramento semelhantes buscando por editais pĂșblicos de contratação desse tipo de serviço em pĂĄginas de compras de governos.

Em comum, todos analisam redes sociais para classificar postagens como positivas ou negativas – e sĂŁo baseados em um mesmo edital, criado no governo Dilma Rousseff. Este edital foi copiado e replicado em prefeituras, estados, ministĂ©rios e empresas pĂșblicas, e acabou deturpado e transformado em um instrumento de vigilĂąncia polĂ­tica.

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Ex-funcionårios da Secom afirmam que protestos de 2013 chamaram a atenção: era preciso acompanhar o debate político na internet.

Foto: Christophe Simon/AFP via Getty Images

Jornadas de Junho ligam o alerta

Declaradamente “de esquerda”, JessĂ© Souza presidiu o Instituto de Pesquisa EconĂŽmica Aplicada, o Ipea, nomeado pela entĂŁo presidente Dilma Rousseff, do PT, entre 2015 e 2016. Em 2019, seu livro mais famoso, “A elite do atraso”, ganhou uma edição ampliada justamente para que ele  discorresse sobre movimentos polĂ­ticos que culminaram na eleição de Jair Bolsonaro – a quem ele trata como o mais nefasto polĂ­tico que os 500 anos de histĂłria brasileira jĂĄ produziu.

Por tudo isso, para Souza, seria natural que membros do atual governo o tivessem como um crĂ­tico. Ele, contudo, nĂŁo imaginava que um ministĂ©rio de Bolsonaro seria capaz de pagar R$ 2,7 milhĂ”es para que a agĂȘncia BR+ Comunicação produzisse um “Mapa de Influenciadores” com fichamento de cidadĂŁos conforme seus posicionamentos.

“Foi uma tentativa Ăłbvia de quebrar a democracia, de construir artificialmente um ‘inimigo’ com base em convicçÔes polĂ­ticas”, argumentou. “Isso Ă© parte de um movimento milicializante do estado brasileiro, um movimento que tem muito a ver com que foi o facismo”.

O que Souza também não sabia é que essa pråtica que ele considera fascista foi sistematizada e difundida justamente pouco antes de ele trabalhar no governo federal.

Era agosto de 2014 e a Secom, entĂŁo vinculada Ă  PresidĂȘncia da RepĂșblica, lançou um edital de licitação para serviços de comunicação digital. NinguĂ©m se atentou, mas a concorrĂȘncia previa que empresas contratadas elaborassem “fichas individualizadas” dos “principais influenciadores (detratores, evangelistas, etc.)” do governo Dilma Rousseff – serviço semelhante ao prestado pela BR+ Comunicação ao MinistĂ©rio da Economia anos depois, jĂĄ sob Bolsonaro.

Parecia algo natural. Naquela época, as redes sociais ganhavam relevùncia no debate político. Grandes empresas jå acompanhavam postagens no Twitter ou Facebook para saber quem falava bem ou mal de seus produtos. Por que o governo federal não poderia fazer o mesmo?

Segundo dois ex-funcionårios da Secom que tinham acesso ao Planalto e que pediram anonimato, a própria Dilma havia percebido que prestar atenção ao que se falava na internet era importante para o governo. O conjunto de revoltas no Oriente Médio, hoje conhecido como Primavera Árabe, e, principalmente, os protestos massivos realizados no Brasil em junho de 2013 haviam convencido a presidente de que postagens em redes sociais tinham capacidade de mobilizar milhÔes e influenciar a pauta política do país.

Foi por isso que, em 2014, a Secretaria de Comunicação lançou uma concorrĂȘncia focada exclusivamente em serviços de monitoramento “do ambiente digital, redes sociais, blogs, portais e sites especializados”.

Governo Bolsonaro deturpou edital de Dilma para fichar ‘detratores’ na internet

Trecho de edital usado por Bolsonaro usa exatamente os mesmos termos propostos em 2014.

Reprodução

A licitação dos serviços listados foi concluĂ­da em 2015. Com base nela, a Secom fechou contratos com duas empresas: a TV1, que recebeu R$ 34 milhĂ”es, e a AgĂȘncia Click Midia Interativa, que recebeu outros R$ 69 milhĂ”es. Em tese, o monitoramento serviria para captar o sentimento da população a respeito de polĂ­ticas de governo. Na prĂĄtica, porĂ©m, abriu espaço para o fichamento de detratores polĂ­ticos como o criado com Bolsonaro – o que mostra que uma polĂ­tica pĂșblica pode ser deturpada de acordo com o interesse de quem senta na cadeira presidencial.

Os contratos vigoraram de março de 2015 a março de 2020, atravessando os governos Dilma, Michel Temer e Bolsonaro, e o serviço tornou-se referĂȘncia para o setor pĂșblico. Em 2015, a Associação Brasileira dos Agentes Digitais, a Abradi, entidade que congrega empresas desenvolvedoras de serviços digitais no paĂ­s, passou a recomendar que prefeituras, governos estaduais ou estatais que desejassem mapear temas de seus interesses em redes sociais se inspirassem no edital federal para fechar seus contratos.

A partir daquele ano, o que se viu foi a proliferação de licitaçÔes prevendo a produção de “fichas individualizadas dos principais detratores e evangelistas” de governos ou ĂłrgĂŁos pĂșblicos – expressĂ”es idĂȘnticas Ă s usadas no edital da Secom de Dilma.

Encontrei pelo menos 12 editais para contratação desse tipo de serviço por diferentes esferas do serviço pĂșblico: do Banco do Brasil ao Banco Central; da Prefeitura de SĂŁo Paulo Ă  de Salvador; da Assembleia Legislativa de Minas Gerais Ă  AgĂȘncia Nacional de Energia ElĂ©trica, a Aneel. Isso sem contar as licitaçÔes que sĂł quem trabalha oferecendo esse tipo de monitoramento acompanha e que, segundo as prĂłprias empresas, sĂŁo muitas.

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Ilustração: Henri Campeã para o Intercept Brasil

Ninguém tem acesso aos relatórios

Em março de 2015, a Prefeitura de Juiz de Fora, em Minas Gerais, lançou um edital de licitação para acompanhar sua exposição no ambiente virtual. No documento, estava previsto analisar os principais detratores. Jå em outubro, foi a vez da Prefeitura do Rio de Janeiro lançar um edital semelhante.

Em ambos os casos, as licitaçÔes prosperaram, contratos foram firmados e, o monitoramento, realizado. Questionadas sobre os relatórios a respeito de influenciadores por meio de pedidos protocolados com base na Lei de Acesso à Informação, as prefeituras não deram respostas específicas. Só informaram que o material produzido pelas empresas contratadas é enorme e só pode ser consultado pessoalmente.

Em abril de 2016, o governo do EspĂ­rito Santo tambĂ©m lançou uma licitação para, entre outras coisas, identificar quem seriam os seus principais “detratores”. Ela, contudo, foi cancelada por causa de uma reestruturação na Secom do estado.

JĂĄ o governo do estado de SĂŁo Paulo licitou em 2017 e contratou em 2018 a empresa MĂĄquina da NotĂ­cia Comunicação Ltda para monitorar redes sociais. No serviço estava prevista a classificação dos seus principais “detratores e evangelistas”. Respondendo a um outro pedido de informação, o governo informou que nĂŁo foi produzido “qualquer material ou relatĂłrio que diga respeito a detratores, evangelistas, principais influenciadores ou coisas do gĂȘnero” por meio desse contrato. Ressaltou tambĂ©m que o material sĂł poderia ser consultado pessoalmente.

‘Um governo classificar alguĂ©m como detrator por causa de suas opiniĂ”es Ă© algo sensĂ­vel. Qual o prĂłximo passo para isso?’

Eu, aliĂĄs, protocolei dez pedidos de acesso Ă  informação a ĂłrgĂŁos pĂșblicos que lançaram licitação para contratar monitoramento de “detratores” em redes sociais. NĂŁo recebi nenhum relatĂłrio sobre o assunto, mesmo em casos em que o serviço foi contratado. O fichamento dos principais influenciadores estĂĄ padronizado em todos os editais.

Com seu monitoramento contratado e ativo, a Secom, que acompanha e alinha toda a comunicação do governo, chegou a abrir uma consulta pĂșblica justamente para avaliar e repensar como outros ĂłrgĂŁos do governo federal deveriam contratar seus prĂłprios serviços de monitoramento caso achassem necessĂĄrio. Em janeiro de 2018 – jĂĄ durante a gestĂŁo do ex-presidente Michel Temer –, a secretaria lançou uma consulta pĂșblica para elaborar um edital modelo que serviria de referĂȘncia para futuras licitaçÔes federais do serviço. Ou seja, quem quisesse ter um monitoramento deveria contratĂĄ-lo conforme o discutido e recomendado pela Secom atĂ© porque, caso fosse questionado por ĂłrgĂŁos de fiscalização, jĂĄ tinha uma resposta pronta: “sĂł segui o modelo”.

Entidades ligadas a empresas de comunicação se manifestaram na consulta, mas só a Abradi falou sobre o fichamento de influenciadores. E, mesmo assim, manifestou-se sugerindo a manutenção da classificação de “detratores” ou “evangelistas” por governos – o que de fato ocorreu.

“Identificar quem estĂĄ falando bem ou mal de uma ação de um governo, qual o alcance da opiniĂŁo deles, nĂŁo Ă© necessariamente ruim ou invasivo”, justificou a presidente da Abradi, Carolina Morales, numa entrevista concedida ao Intercept em maio. “Agora, Ă© preciso evitar qualquer tipo de desvirtuamento de um monitoramento de rede social. Ele nĂŁo deve servir para perseguir nem desqualificar alguĂ©m”.

Em abril de 2018, a Secom avaliou as contribuiçÔes da consulta e divulgou o tal edital modelo para licitaçÔes de serviços de comunicação digital. Ele prevĂȘ a “anĂĄlise dos principais influenciadores (detratores, evangelistas etc.) em fichas individualizadas” – exatamente os mesmos termos do edital lançado em 2014.

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Ilustração: Henri Campeã para o Intercept Brasil

Montanha de tuĂ­tes

Solicitei Ă  Secom acesso aos relatĂłrios produzidos pelas empresas de monitoramento levando em conta a Lei de Acesso Ă  Informação. O ĂłrgĂŁo informou que parte do que foi produzido jĂĄ estĂĄ disponĂ­vel justamente na pĂĄgina de dados abertos da PresidĂȘncia onde encontrei o tuiteiro Celso Rodrigo Vieira, citado no inĂ­cio do texto.

Nessa pĂĄgina, porĂ©m, sĂł hĂĄ dados de 2019 – primeiro ano de governo Bolsonaro – e nĂŁo hĂĄ qualquer menção a “detratores”, por exemplo. O que hĂĄ Ă© um conjunto de 192 planilhas compilando, cada uma, mais de 100 mil postagens que foram catalogadas por abordarem temas do interesse do governo. Eu perguntei Ă  Secom como a triagem foi feita, mas nĂŁo recebi resposta.

“Uma coisa Ă© vocĂȘ monitorar celebridades, gente que tem muitos seguidores. Agora gente comum, como eu?”, questionou Vieira. Ele acha que muitas pessoas deixariam de criticar o governo em redes sociais se soubessem que isso poderia levĂĄ-las a um banco de dados governamental. “Vai saber no que isso pode dar lĂĄ no futuro”.

Segundo pessoas que trabalham com monitoramento e redes sociais, as planilhas provavelmente foram geradas por ferramentas para acompanhamento de postagens disponĂ­veis no mercado e usadas por empresas de comunicação. As ferramentas computam as postagens na web e geram painĂ©is para checagem em tempo real dos assuntos mais debatidos, postagens mais comentadas, etc. A Secom sĂł disponibilizou publicamente o “monitoramento bruto”, ou seja, sem a anĂĄlise dos posts.

“Um governo nĂŁo pode gastar dinheiro pĂșblico com isso”

Das planilhas, contudo, jĂĄ Ă© possĂ­vel ter uma ideia do interesse do governo federal sobre quem fala em redes sociais sobre ele. As postagens sĂŁo catalogadas pelo link, sexo e nĂșmero de seguidores do autor; nĂșmero de respostas e compartilhamentos; sentimento (neutro, positivo ou negativo); assunto (corrupção, educação, economia, meio ambiente, etc.) e outros quesitos. Como todas as planilhas publicadas sĂŁo referentes a 2019, hĂĄ muitas postagens que tratam do presidente Bolsonaro. Muitas delas, aliĂĄs, sĂŁo mensagens de apoio a ele.

Nos dados nĂŁo constam o nome e o endereço do perfil do autor das postagens, embora quem trabalhe com esse tipo de serviço saiba que essas informaçÔes geralmente tambĂ©m sĂŁo catalogadas e provavelmente estĂŁo em poder da Secom – sĂł nĂŁo foram divulgadas. EstĂŁo nas planilhas, porĂ©m, a foto de perfil da rede social do autor da postagem, assim como o endereço de posts com os quais interagiu. É possĂ­vel, portanto, rastrear uma parte das pessoas incluĂ­das no monitoramento sĂł cruzando dados das planilhas.

Vale lembrar que empresas que monitoraram redes sociais a pedido da Secom de 2015 a 2020 forneceram ao governo mais de 100 gigabytes em informaçÔes. Esse volume equivale Ă  capacidade de armazenamento de um pequeno HD externo ou quase 300 horas de filmes. Segundo a prĂłpria secretaria, Ă© tanto dado que fica inviĂĄvel disponibilizar ao pĂșblico tudo o que foi compilado.

Ilustração: Henri Campeã para o Intercept Brasil

Risco implĂ­cito

Eu conversei com um gestor pĂșblico que, por algum tempo, foi o responsĂĄvel por um desses contratos de monitoramento de redes. Reservadamente, ele reforçou que o acompanhamento de postagens no Twitter ou Facebook Ă© mesmo para saber se uma polĂ­tica pĂșblica estĂĄ dando certo ou nĂŁo. “VocĂȘ estĂĄ em campanha de vacinação. Percebe que tem um monte de gente reclamando de falta de vacina na cidade. Confere e tenta solucionar o problema”, disse, ilustrando seu trabalho com um exemplo hipotĂ©tico. “NĂŁo me interessa o nome de quem reclama”.

Ele ressaltou, entretanto, que a classificação dos principais influenciadores está quase sempre disponível. Basta requisitá-la que o serviço será realizado. Cabe ao gestor, portanto, decidir se quer fichar quem fala bem ou mal do governo. “Há um risco implícito nesse tipo de contrato de monitoramento. Precisaria ser aperfeiçoado”.

Segundo Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, centro de pesquisa sobre direito e tecnologia, esse tipo de monitoramento pĂșblico foi copiado do setor privado. Empresas jĂĄ detectavam “detratores”, ou “amantes” de um determinado produto ou marca. ÓrgĂŁos pĂșblicos resolveram fazer o mesmo e copiaram a classificação de influenciadores.

Isso nĂŁo Ă© necessariamente ilegal – em alguns casos, como acompanhar queixas e monitorar polĂ­ticas pĂșblicas, esse tipo de anĂĄlise pode ser Ăștil. Mas Ă© preciso transparĂȘncia. “Todos precisam saber o que estĂĄ sendo feito, atĂ© para coibir eventuais abusos”.

“Banalizar ou facilitar a contratação de um serviço como esse tipo de monitoramento pelo poder pĂșblico Ă© um risco”, alerta o pesquisador. “Um governo classificar alguĂ©m como detrator por conta de suas opiniĂ”es Ă© algo sensĂ­vel. Qual o prĂłximo passo para isso?”

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Governo Bolsonaro mostrou como um monitoramento de redes considerado banal pode ser usado para perseguiçÔes políticas.

Foto: Danilo Verpa/Folhapress

Ameaça à democracia

Spencer Sydow Ă© advogado e presidente da ComissĂŁo Especial de Direito Digital da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, de SĂŁo Paulo. Ele Ă© radicalmente contra esse tipo de monitoramento e classificação de influenciadores, por ver risco disso Ă  democracia. “O estado deve tratar todos como iguais, independentemente de sua opiniĂŁo. NinguĂ©m pode ser considerado detrator pelo que pensa ou posta numa rede social”, afirmou.

Sydow acrescenta que o “detrator” de um governo pode ser um “evangelista” ou “amante” do governo antecessor. Isso, segundo ele, mostra como essa classificação Ă© politicamente manipulĂĄvel e, portanto, ilegal. “Um governo nĂŁo pode gastar dinheiro pĂșblico com isso”.

Christiany Pegorari Conte, advogada e professora, reforçou que a Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD, em vigor desde setembro do ano passado, estabelece uma sĂ©rie de critĂ©rios para coleta e montagem de banco de dados com informaçÔes de cidadĂŁos expostas na internet. Segundo ela, criar fichas individualizadas, classificar comportamentos, coletar e armazenar dados para finalidade nĂŁo especĂ­fica e sem consentimento do autor pode configurar violação dessa lei – alĂ©m de “dar margem a perseguiçÔes polĂ­ticas”.

O governo do Distrito Federal, por exemplo, contratou duas empresas para monitorar suas redes sociais no ano passado e previu no edital o fichamento de detratores. Isso, porĂ©m, nunca foi feito, considerando a vigĂȘncia da LGPD.

Em SĂŁo Paulo, o governo estadual lançou um novo edital para monitoramento de redes sociais em janeiro de 2020. Novamente, estavam previstas a produção de “fichas individualizadas” de “detratores” e “evangelistas”. Desta vez, porĂ©m, o lançamento da licitação causou protestos nas redes sociais – sim, justamente nas redes sociais. O entĂŁo senador Major OlĂ­mpio enviou uma representação ao Tribunal de Contas do Estado de SĂŁo Paulo apontando ilegalidades no certame. O tribunal recomendou e o governo paulista alterou o edital. Retirou dele qualquer previsĂŁo de fichamento de influenciadores.

“O novo contrato foi adequado para seguir rigorosamente a Lei Geral de Proteção de Dados. NĂŁo hĂĄ fichamento individual de perfis ou pessoas”, complementou a Secretaria Especial de Comunicação do Governo de SĂŁo Paulo. “O edital prevĂȘ relatĂłrios com separação entre crĂ­ticas e apoio, para que sejam identificadas demandas da população e adotadas polĂ­ticas pĂșblicas de comunicação e gestĂŁo pĂșblica”.

No caso do governo federal, eu mandei uma série de questÔes em dois e-mails à Secom, hoje vinculada ao Ministério das ComunicaçÔes, sobre o monitoramento de redes sociais e fichamento de influenciadores. Nunca recebi resposta. O edital modelo elaborado pelo órgão em 2018, muito semelhante ao lançado na gestão Dilma Rousseff, continua acessível no site do órgão.

Procurei o jornalista Thomas Traumann, que era chefe da Secom em 2014, quando o monitoramento de redes sociais foi estruturado pelo ĂłrgĂŁo. Traumann me mandou um e-mail sobre o assunto. Disse que nĂŁo participou ativamente do processo de licitação e que, atualmente, Ă© natural que ĂłrgĂŁo pĂșblico monitore “a reação Ă s polĂ­ticas pĂșblicas” na internet. “Essa Ă© uma forma rĂĄpida de o gestor corrigir seu discurso ou mudar a prĂłpria polĂ­tica. Monitorar as redes ajuda na prestação de contas, que Ă© uma obrigação do gestor pĂșblico”, disse.

Traumann, contudo, ressaltou que foi “simplesmente errado” ter previsto o monitoramento de “detratores” e “evangelistas”. “Lamento que isso tenha ocorrido”, escreveu. “ Espero que esse erro tenha sido corrigido nesses seis anos desde que o contrato foi assinado.”

Não. O “erro” ainda não foi corrigido.

JessĂ© Souza, crĂ­tico desse monitoramento, nĂŁo quis falar sobre os contratos firmados durante o governo Dilma. “NĂŁo conheço”, justificou. “Posso falar sobre o relatĂłrio que eu vi, que me cita”.

Esta reportagem é resultado de uma bolsa para investigaçÔes jornalísticas sobre tecnoautoritarismo, uma iniciativa da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa em parceria com o Intercept.

Temos uma oportunidade, e ela pode ser a Ășltima:

Colocar Bolsonaro e seus comparsas das Forças Armadas atrås das grades.

NinguĂ©m foi punido pela ditadura militar, e isso abriu caminho para uma nova tentativa de golpe em 2023. Agora que os responsĂĄveis por essa trama sĂŁo rĂ©us no STF — pela primeira e Ășnica vez — temos a chance de quebrar esse ciclo de impunidade!

Estamos fazendo nossa parte para mudar a histĂłria, investigando e expondo essa organização criminosa — e seu apoio Ă© essencial durante o julgamento!

Precisamos de 800 novos doadores mensais atĂ© o final de abril para seguir produzindo reportagens decisivas para impedir o domĂ­nio da mĂĄquina bilionĂĄria da extrema direita. É a sua chance de mudar a histĂłria!

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