O empresário que intermediou a venda de 200 respiradores ao governo de Santa Catarina por R$ 33 milhões num negócio fraudulento tem contratos com o governo do Pará e prefeituras catarinenses e de Goiás para fornecer vale-alimentação a estudantes das redes públicas durante a pandemia de covid-19.
A fraude em Santa Catarina, denunciada por uma investigação exclusiva do Intercept, detonou uma crise política que derrubou dois dos principais secretários do governo de Carlos Moisés, do PSL, um bombeiro que se elegeu na esteira do bolsonarismo, e faz o próprio governador balançar no cargo.
Como no caso dos respiradores, os contratos de vale-alimentação foram fechados em caráter emergencial – isto é, sem licitação – por causa da crise do novo coronavírus. Apenas no Pará, o negócio deve render R$ 21,5 milhões em três meses.
O empresário é Fabio Guasti, a quem autoridades de Santa Catarina chamam de “um dos principais articuladores do esquema criminoso” do negócio dos respiradores.
O grupo de Guasti tem base em Guarulhos, São Paulo, inclui empresários e políticos do Rio de Janeiro e São Paulo e contou com participação direta de servidores do governo de Santa Catarina. Segundo a investigação, eles pretendiam usar o dinheiro dos respiradores para comprar kits de testes rápidos de covid-19 e revendê-los a outros estados. Seria uma forma de lavar o dinheiro.
A atuação do grupo não está restrita ao Sul do país. A Meu Vale, que pertence a Guasti, acertou em abril um contrato para fornecer cartões de alimentação para estudantes da rede pública do Pará por R$ 21,5 milhões. O negócio foi feito com dispensa de licitação e terá três meses de vigência.
Pedimos ao gabinete do governador Helder Barbalho, do MDB, cópia do contrato com a Meu Vale e os nomes das empresas que também disputaram o negócio. O pedido não foi atendido. Em vez disso, recebemos uma nota em que a secretaria da Educação do Pará informa que o edital aberto em 3 de abril teve a participação de oito empresas. Sobre a participação de Guasti no esquema investigado em Santa Catarina, o governo Barbalho disse simplesmente “que a empresa [Meu Vale] não é considerada inidônea e os preços são adequados à realidade de mercado”. “Portanto”, justificou, “não pode ser impedida de disputar licitações”.
As fraudes no contrato dos 200 respiradores pulmonares foram reveladas pelo Intercept em 28 de abril. A vendedora é uma empresa chamada Veigamed, com sede em Nilópolis, na Baixada Fluminense, que não tem estrutura para atender um contrato de R$ 33 milhões.
Os respiradores foram comprados por R$ 165 mil cada. Em média, o equipamento usado no tratamento de casos graves de covid-19 custou de R$ 60 mil a R$ 100 mil em outras compras feitas por governos. Os 200 aparelhos deveriam ter sido entregues no início de abril, mas ainda não chegaram.
A reportagem deu origem a uma série de investigações que reúnem polícia, Ministério Público e Tribunal de Contas de Santa Catarina e já custaram o emprego dos secretários estaduais Helton Zeferino, da Saúde, e Douglas Borba, da Casa Civil. Além disso, três pedidos de impeachment contra Moisés apresentados na Assembleia Legislativa de Santa Catarina citam o escândalo dos respiradores.
Para o MP, há indícios de crimes depeculato, corrupção ativa e passiva e, possivelmente, lavagem de dinheiro. Uma comissão parlamentar de inquérito foi criada para analisar a compra dos respiradores. O Ministério Público de Contas chegou a pedir o cancelamento da aquisição e também investiga o caso.
Mais negócios sem licitação
Em 24 de março, a prefeitura de Florianópolis anunciou contrato com a Meu Vale para o mesmo serviço prometido ao Pará. O ex-jogador André Santos, que passou por Corinthians, Flamengo e Seleção Brasileira, serviu de garoto-propaganda. Apesar da publicação no Diário Oficial descrever o acordo, sem licitação, como “sem custas ao município”, o portal da transparência aponta repasses à Meu Vale de R$ 400 mil em menos de dois meses.
Na segunda-feira, dia 11, após vir à tona que a Meu Vale pertence aos suspeitos do negócio fraudulento dos respiradores, a prefeitura comandada por Gean Loureiro, do DEM, recuou e mandou avisar que rompeu o contrato com a Meu Vale por causa do envolvimento da empresa em “supostas irregularidades”.
A prefeitura de Florianópolis também não forneceu cópia do contrato e detalhes sobre a atuação da Meu Vale. Em nota, o município voltou a afirmar que o fornecimento do serviço contratado por dispensa de licitação não terá custos à administração. O município ainda diz que não realizou pagamentos para a Meu Vale operar o serviço e que os R$ 398,3 mil empenhados e informados no Portal da Transparência seriam referentes aos créditos destinados aos beneficiários.
“A contrapartida da Meu Vale se dá através da porcentagem de cada compra feita”, afirmou a prefeitura, na nota. Antes deste contrato, a Meu Vale já vinha operando o cartão de benefícios dos servidores municipais, serviço que não foi cancelado.
André Santos admitiu para nós, por telefone, ser amigo de Guasti. Disse, também, que foi apresentado à Meu Vale pelo compadre Gilliard Gerent, um dos suspeitos investigados pelas autoridades catarinenses pela compra dos respiradores e apontado por testemunhas como representante da Veigamed em reunião realizada no dia 4 de abril, logo após o pagamento dos R$ 33 milhões, na sede da Defesa Civil de SC. O ex-jogador confirmou ter atuado como uma espécie de cartão de visitas para a empresa de Guasti, intermediando negociações para adesão do cartão nas cidades de Blumenau e Tubarão – administradas respectivamente por Mario Hildebrandt, do Podemos, e Joares Ponticelli, do PP.
Apesar disso, Santos garantiu que não sabe se o amigo Guasti participou da venda dos respiradores ao governo de Santa Catarina. “Nossa ligação era somente para o cartão de benefícios. Eu não sabia sobre os respiradores e nada disso foi feito através da Meu Vale”, garantiu. “Como tenho contatos de prefeituras e de bastante gente, eu faço as conexões. Foi o que fiz com o cartão merenda aqui em Santa Catarina. Eu conhecia a secretária, conheço prefeitos”, afirmou o ex-jogador, que foi criado e mora em Florianópolis.
Com a Federação Goiana de Municípios, a Meu Vale anunciou também em março um acordo para fornecer cartões de alimentação a prefeituras interessadas. O prefeito de Campos Verdes, Haroldo Naves, do MDB, também presidente da federação, usou a pandemia para incentivar o uso do serviço. Mas, após ser procurada pela reportagem, a entidade retirou do ar a notícia que anunciava a parceria com a Meu Vale, e não respondeu aos questionamentos sobre o contrato.
Empresa em nome de laranja
Principal executivo da Meu Vale e de outras seis empresas, Fabio Guasti é médico e vive em Guarulhos. Seus negócios estão espalhados por São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Santa Catarina.
Além do serviço de cartões de benefício, Guasti tem uma empresa que aluga ambulâncias aos setores público e privado, chamada Remocenter, que se anuncia como “a principal fornecedora de serviços de emergências médicas do setor público do país”. Apesar de se apresentar como diretor da empresa e aparecer em ações judiciais como responsável legal, Guasti não está no quadro societário da Remocenter. O serviço de transporte de emergência faz parte da gama de “benefícios” ofertados nos cartões da Meu Vale. Ainda em Guarulhos, Guasti ergueu e administra um shopping center.
Oficialmente, o médico também não é dono da Veigamed. Mas depoimentos de testemunhas inclúdos no inquérito o apontam como elo entre corruptores e políticos em Santa Catarina e no Rio de Janeiro no caso dos respiradores.
Procuramos Guasti na sexta-feira passada, 8 de maio. Por telefone, ele nos disse que não tinha envolvimento com a Veigamed e que sequer sabia da compra dos 200 respiradores pelo governo catarinense.
“Eu não conheço a empresa e não tenho ligação nenhuma com isso. Não sei porque estão citando meu nome”, falou Guasti, antes de desligar o telefone sem dar tempo para outras perguntas. No dia seguinte, foi um dos 35 alvos de mandados de busca e apreensão da operação que investiga o caso.
Guasti foi responsável direto pela chegada da Veigamed a Santa Catarina. O contador Leandro Alair de Liz, que tem escritório em Biguaçu, município da Grande Florianópolis, nos explicou por telefone que foi contratado para abrir a filial da Meu Vale em Florianópolis em setembro de 2019.
Meses depois, em abril de 2020, disse ter sido procurado “por um preposto, um funcionário da Meu Vale” para fazer o mesmo tipo de serviço para a Veigamed. O contador não quis revelar o nome do funcionário, disse que nunca falou diretamente com Guasti e que possui documentos dos serviços prestados. Liz também nos falou que, após ver matérias na imprensa relacionando a empresa ao escândalo dos respiradores, encerrou o serviço sem concluir a criação da filial catarinense. Mas, agora, a própria Veigamed reconhece que Guasti atuou em nome dela em Santa Catarina.
Apresentado na proposta de venda dos respiradores como administrador da Veigamed, Pedro Nascimento Araújo afirmou, ainda em abril, que não conhecia Guasti. À época, em contato por telefone, sugeriu que ele fosse um “consultor do governo”. Em novo pedido de resposta, nesta terça-feira, 12, a Veigamed admitiu a atuação de Guasti na compra dos respiradores. Em nota, a empresa se referiu a ele como “médico renomado”, contratado “pontualmente neste negócio com a sua experiência profissional por meio de consultoria”. Ainda na resposta, a empresa prometeu que vai entregar os respiradores.
Na Receita Federal, a Veigamed aparece como propriedade de Rosemary Neves de Araújo. É provavelmente uma laranja: segundo relatório do Tribunal de Contas de Santa Catarina publicado no final de abril, trata-se de uma ex-motorista de ônibus que “não tem perfil” para ser dona de uma empresa com capital informado de R$ 1,6 milhão. Apesar disso, ela é listada como sócia de Pedro Nascimento Araújo, administrador da Veigamed, numa outra empresa de consultoria empresarial.
Uma ajuda do secretário
As investigações das autoridades catarinenses reforçam a suspeita de que Guasti atuou como representante da Veigamed na venda dos respiradores. Segundo o inquérito, ele foi indicado ao setor de compras da secretaria de Saúde pelo então secretário da Casa Civil Douglas Borba. Um assessor de confiança de Borba, Leandro Adriano de Barros, supervisionou a negociação.
Borba e Barros têm uma longa relação pessoal e política, segundo a investigação. Em março deste ano, uma empresa que Barros presta “assessoria jurídica” ganhou a disputa sem licitação para erguer um hospital de campanha em Itajaí, uma das principais cidades do estado, por R$ 76,9 milhões. No entanto, o projeto acabou suspenso após o Tribunal de Contas apontar favorecimento.
Os investigadores já sabem que, um dia antes do edital para compra dos respiradores ser publicado, em 25 de março, Guasti recebeu uma cópia de proposta de venda de respiradores, encaminhada por um empresário chamado Rafael Wekerlin, da catarinense Brazilian International Business.
À polícia, Wekerlin disse que foi procurado por um “intermediador” interessado em vender os respiradores ao governo, que também lhe disse para encaminhar a proposta com Guasti em cópia. Um grupo de WhatsApp chegou a ser criado para acertar os detalhes da negociação.
Segundo o empresário disse aos investigadores, a Veigamed iria garantir a compra por parte do governo catarinense e ele cuidaria da área internacional do negócio, como desembaraço aduaneiro e contato com os fornecedores chineses. Wekerlin disse que deixou o negócio após perceber que o intermediador – a quem não nomeou – e os demais participantes ligados à Veigamed negociavam propina de R$ 3 milhões.
A proposta preparada por ele, com cotações internacionais e detalhes dos equipamentos e do fornecedor, nunca foi apresentada. Nas mãos de Guasti, o documento ganhou outros nomes e acabou incluído na disputa como sendo da Veigamed. Foi, aliás, a única proposta oficialmente apresentada no sistema de gerenciamento de processos do governo até o então secretário de Saúde, Helton Zeferino, bater o martelo e fechar a compra em apenas cinco horas.
Após o negócio fechado, outras propostas com fortes indícios de fraudes entraram no processo, provavelmente para legitimar a oferta da Veigamed. Uma das empresas que ofereceram propostas, JE Comercio, é fantasma – sequer tem CNPJ.
O vereador lobista
A reportagem publicada pelo Intercept em 28 de abril também levou a polícia à casa do presidente da Câmara de Vereadores de São João de Meriti, interior do Rio. Davi Perini Vermelho, do PSD, é mais conhecido na cidade como Didê. Em 9 de maio, investigadores apreenderam R$ 300 mil em espécie na casa dele. Dias antes, no começo de abril, Didê entrara em contato com uma empresa de Joinville, se apresentando como representante da Veigamed, para formalizar a compra de 110 mil kits para teste de covid-19 por R$ 11,1 milhões.
A compra, segundo o inquérito policial, seria uma forma da Veigamed “pulverizar os recursos provenientes do estado, afastando o dinheiro de si e dificultando eventual ressarcimento ao erário, clara hipótese de lavagem de dinheiro”.
Didê pediu que os kits fossem entregues num galpão em Vargem Pequena, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, que também foi alvo de buscas pela polícia. A entrega dos kits no Rio indica que o objetivo do grupo era vender o material fora de Santa Catarina. A empresa contratada não chegou a entregar os kits no Rio e depositou o pagamento de R$ 11,1 milhões em uma conta da justiça catarinense após ser notificada no processo dos respiradores.
Não foi a primeira vez que o vereador Didê atuou como representante da Veigamed. De acordo com Mauricio Miranda de Mello, sócio da MMJS, empresa do Mato Grosso que apresentou uma das propostas de fachada derrotadas na compra de respiradores, ele se reuniu com Didê em 8 de abril em um escritório de Guarulhos que é endereço fiscal de três empresas de Guasti, incluindo a Meu Vale. Ali, trataram da compra dos testes. Mello afirma que Didê se apresentou, na ocasião, como representante da Veigamed.
O inquérito que investiga a compra dos respiradores cita um outro, aberto pela Delegacia da Polícia Federal no Aeroporto de Guarulhos e que apura o roubo de testes de covid-19. Por causa dessa outra investigação, Mello apresentou um pedido dehabeas corpus preventivo para não ser preso. No pedido, curiosamente, a defesa dele cita a reunião com Didê na sede da Meu Vale. O inquérito em Guarulhos está sob sigilo.
A Veigamed afirmou que o presidente da Câmara de São João de Meriti presta “serviços ocasionais de consultoria de segurança”, mas jurou que eles não têm relações com os contratos que a empresa mantém com a prefeitura.
Em 2018, segundo o Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, a Veigamed recebeu R$ 1 milhão do município de São João de Meriti em troca do fornecimento de produtos médico-hospitalares. O dinheiro saiu do Fundo Municipal de Saúde.
Apesar da MMJS ser responsável por uma das propostas de venda de respiradores derrotadas pela Veigamed, um assessor da empresa negou, na terça-feira, 12, que ela tenha participado da disputa em Santa Catarina. Em 2017, a MMJS, que à época se chamava Bau Holdings, foi alvo de uma investigação aberta pela justiça do Mato Grosso por suspeita de venda ilegal de criptomoeda e formação de esquema de pirâmide.
Enviamos e-mails para a assessoria do vereador Didê e a Câmara de Vereadores de São João do Meriti. Nenhuma resposta foi enviada até a publicação desta reportagem. O espaço está aberto para comentários.
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