Quem disse que Donald Trump não cumpre suas promessas? Durante a campanha presidencial, o astro de reality show prometeu “bombardear loucamente” o Estado Islâmico (EI). E é exatamente o que ele vem fazendo desde que assumiu a presidência: em agosto, por exemplo, a coalizão liderada pelos Estados Unidos lançou mais de 5 mil bombas sobre posições do EI. Foi o mês com o maior número de bombardeios nos três anos da campanha para derrotar o EI, de acordo com o Comando Central da Força Aérea dos EUA.
Bombardear loucamente o EI se tornou a marca registrada de Trump. “O que estamos fazendo é que, cada vez que somos atacados (…), contra-atacamos com uma força dez vezes maior”, declarou o presidente a repórteres na sexta-feira, após o último ataque terrorista inspirado pelo EI em Nova York. Prometeu ainda que os EUA iriam “atacar [o EI] de um jeito que vocês nem vão acreditar”.
Aí está o problema, no entanto: embora o objetivo de Trump seja soar forte e durão, sua estratégia — se é que uma resposta que se resume a bombas e mais bombas pode ser chamada de “estratégia” — serve apenas para tornar os Estados Unidos um alvo ainda maior do EI e colocar em risco muito mais vidas inocentes de americanos.
E não sou só eu quem digo. Tomem como exemplo a denúncia contra Sayfullo Saipov, o imigrante uzbeque acusado de usar um caminhão para assassinar oito pessoas em Manhattan semana passada, em nome do EI. Ele teria começado a planejar o ataque, descreve a denúncia, “aproximadamente um ano atrás”. Saipov, ainda de acordo com o documento, “ficou motivado a cometer o ataque depois de assistir a um vídeo em que [o líder do EI] Abu Bakr al-Bahgdadi […] indagava o que os muçulmanos nos Estados Unidos e em outros lugares estavam fazendo para responder à matança de muçulmanos no Iraque.”
Soa familiar? Bem, Saipov obviamente não é o primeiro terrorista da Al Qaeda ou do EI a fazer referência às mortes de civis muçulmanos no exterior como motivação para praticar atos de extrema violência nos EUA. Faisal Shahzad, responsável pelo atentado a bomba em Time Square, contou a um juiz federal em 2010 que sua intenção era se vingar dos ataques de drones norte-americanos no Paquistão, sua terra natal — ataques que “matam mulheres, crianças, matam todos”.
O atirador de Fort Hood, major Nidal Malik Hasan,”estava insatisfeito com a política externa dos EUA e tinha feito vários comentários de que os EUA não deveriam estar no Iraque e no Afeganistão”, nas palavras de um ex-colega. Dzhokar Tsarnaev, um dos dois responsáveis pelo atentado a bomba na Maratona de Boston, teria dito aos interrogadores, de acordo com o Washington Post, que “as guerras norte-americanas no Iraque e no Afeganistão haviam motivado ele e seu irmão a realizar o ataque”. Testemunhas oculares relatam que o atirador de Orlando teria contado ao operador da linha de emergência 911 que havia atacado a casa noturna Pulse em 2016 “porque queria que os Estados Unidos parassem de bombardear” o Afeganistão.
Como certa vez indagou Marc Sageman, o grande especialista em terrorismo e ex-funcionário da CIA: “Em que momento vocês pretendem começar a escutar os relatos de agressores sobre os motivos dos ataques?”
Políticos e peritos, porém, não escutam as palavras “Iraque”, “Afeganistão” ou “drones”, porque estão ocupados demais com sua obsessão pela frase “Allahu Akbar” ou com a análise do comprimento da barba de um terrorista. E assim perdura um dos maiores tabus de todos: levar em consideração o papel que a política externa beligerante dos EUA parece desempenhar na incitação aos ataques terroristas contra o país.
No dia seguinte ao ataque de caminhão em Manhattan, recebi Sageman na Universidade de Georgetown em Washington D.C., onde ministro uma aula semanal sobre “Terror, Islã e Mídia”.
Psiquiatra forense destacado para a base da CIA em Islamabad, no Paquistão, durante a jihad afegã nos anos 1980, Sageman desde então estuda as biografias de centenas de extremistas e atua como perito técnico em inúmeros julgamentos de terroristas nos EUA. Ele não tem tempo para tabus. “A violência política é, em primeiro lugar, política”, disse ele aos meus alunos, explicando como os “neo-jihadistas” tendem a ser movidos por uma mistura de “desilusão” com as manifestações pacíficas e “indignação moral” com os ataques aos companheiros muçulmanos no exterior.
“Não teriam ocorrido ataques [do EI]” dentro dos EUA, defende Sageman, se os Estados Unidos tivessem se mantido fora do Iraque e da Síria. Ele lembrou à turma que o primeiro ataque inspirado pelo EI em solo norte-americano ocorreu em Garland, no Texas, em maio de 2015, nove meses depois de o governo Obama dar início os bombardeios ao EI em agosto de 2014.
O ex-funcionário da CIA explicou como ele entende que a “violência política” — termo que prefere a “terrorismo” — pode ser compreendida por um processo bastante direto e newtoniano de “ação e reação”. Nós bombardeamos, eles bombardeiam. Eles bombardeiam, nós bombardeamos. Sageman escreve em seu recente livro “Misunderstanding Terrorism” (“Entendendo errado o terrorismo”, em tradução livre, sem edição no Brasil) que a situação se tornou “um ciclo de violência mútua sempre crescente”.
Não faltam relatórios oficiais e estudos com conclusões semelhantes. O Conselho de Ciências da Defesa, ligado ao Pentágono, observou em 1997, quatro anos antes dos atentados de 11 de Setembro: “Dados históricos mostram uma forte correlação entre o envolvimento dos EUA em situações internacionais e um aumento dos ataques terroristas contra os Estados Unidos.” Em 2004, três anos depois dos ataques às Torres Gêmeas, outro estudo feito pelo mesmo Conselho afirmou: “Os muçulmanos não “odeiam nossa liberdade”, eles odeiam nossas políticas.” Um dos presidentes da Comissão do 11/09, o ex-congressista Lee Hamilton, tentou incluir no relatório final da comissão um “reconhecimento” de que “a presença das forças norte-americanas no Oriente Médio era uma importante motivação para os atos da Al Qaeda.”
Mas qualquer menção a esses vereditos é recebida com escárnio, desprezo e zombaria, sem contar as acusações de “apologia” e “negacionismo”. A verdadeira negação, no entanto, diz respeito ao claro papel desempenhado pelas ofensas da política externa no assim chamado processo de “radicalização”.
Enquanto isso, o presidente dos Estados Unidos da América se gabe de planejar responder a um ataque contra civis norte-americanos, que teria sido motivado pela “matança de muçulmanos” no Oriente Médio, por uma matança ainda maior de muçulmanos no Oriente Médio. É uma insanidade. Para ser mais claro: ataques aéreos lançados desde 2014 pela coalizão liderada pelos EUA podem até ter removido mais de 60 mil soldados do EI do campo de batalha, mas também resultaram na morte de milhares de civis inocentes. De acordo com uma investigação da Airwars para The Daily Beast, “aparentemente mais de 2.200 civis adicionais podem ter sido mortos em investidas da coalizão desde que Trump foi empossado”; “em todos os meses de 2017, foi atribuído à coalizão liderada pelos EUA um número maior de supostas vítimas civis do que à Rússia.” Em maio, por exemplo, um ataque aéreo promovido pelos EUA num subúrbio ocidental de Mosul, no Iraque, matou mais de cem pessoas, incluindo mulheres e crianças.
Espera-se mesmo que acreditemos que esses ataques letais não têm consequências? Que não receberão resposta? Que nenhum tiro vai sair pela culatra?
Se Trump não quer escutar nem a mim, nem a Marc Sageman, nem ao Conselho de Ciências da Defesa, nem ao presidente da Comissão do 11/09, talvez ele escute seu ex-conselheiro de segurança nacional, o general reformado Michael Flynn. Diante de proximidade de um possível indiciamento por Robert Mueller, talvez poucos se lembrem que, em meados de 2015, dezoito meses antes de deixar o governo Trump em desgraça por supostos contatos com a Rússia, Flynn admitiu para mim, no meu programa em inglês na Al Jazeera, que “quanto mais bombas nós lançamos, mais isso (…) alimenta o conflito.”
Nós bombardeamos, eles bombardeiam; eles bombardeiam, nós bombardeamos. Será que isso um dia terá fim?
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