A cobertura da grande mídia sobre o clima tem rabo preso.

A grande mídia é cúmplice da desinformação sobre o clima

Atuação da grande mídia favorece discurso das empresas de combustíveis fósseis, abre espaço para negacionismo climático, e dificulta a mobilização na luta contra a crise climática.

A cobertura da grande mídia sobre o clima tem rabo preso.

A grande maioria da população mundial quer que seus governos tomem medidas climáticas – mas a maioria supõe, enganosamente, que faz parte da minoria. Parte da culpa é da imprensa.

Várias pesquisas de opinião, enquetes e estudos realizados nos últimos cinco anos – por organizações como Yale, Gallup, Nature, Oxford e a Comissão Europeia – sinalizam um apoio internacional esmagador  a medidas climáticas mais fortes. Cerca de 80 a 89% da população mundial quer que seus governos “façam mais” para enfrentar as mudanças climáticas, e quase dois terços concordam que essas medidas podem ter algum custo. No entanto, a maior parte das pessoas que constituem essa esmagadora maioria climática considera que é minoria, e diz aos entrevistadores acreditar que apenas 30% dos seus semelhantes também querem medidas climáticas mais fortes. Os pesquisadores definem esse tipo de mal-entendido sistêmico sobre o pensamento das outras pessoas como uma lacuna de percepção, e um dos resultados é que os políticos calculam que podem continuar atendendo aos interesses corporativos e preservando a situação dos combustíveis fósseis.

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Agora, novas pesquisas estão destacando o papel da mídia na perpetuação dessa lacuna. A mais recente pesquisa de opinião climática da universidade de Yale mostra que, embora mais de dois terços dos estadunidenses queiram uma política climática mais forte, menos de um terço deles diz ver cobertura do tema na mídia pelo menos uma vez por semana. Isso é uma pena, segundo Max Boykoff, que coordena o Observatório de Mídia e Mudanças Climáticas na Universidade do Colorado, Boulder, porque a cobertura inconsistente do assunto pode levar a falhas na compreensão do público sobre ele. “O jornalismo climático é propenso a um modelo de cobertura baseada em eventos que frequentemente descontextualiza a crise climática”, diz. “Calor extremo, enchentes e tempestades tendem a ser noticiados como eventos únicos, não como parte de uma crise de longo prazo em desenvolvimento, o que impede uma compreensão mais completa do tema.”

‘A imprensa, especialmente a mídia corporativa, continua a legitimar o negacionismo climático ao permitir às empresas de combustíveis fósseis o acesso às principais plataformas.’

Esse e outros problemas são explorados em pesquisa da rede internacional de pesquisa Climate Social Science Network, publicada em outubro no livro Climate Obstruction: A Global Assessment (Obstrução Climática: Uma Avaliação Mundial), O livro inclui um capítulo sobre o papel da imprensa na perpetuação de narrativas enganosas. Boykoff e a pesquisadora Melissa Aronczyk, da Universidade Rutgers, foram os principais autores do capítulo, que conclui que embora a falsa equivalência – a prática de associar qualquer declaração científica sobre as mudanças climáticas com uma afirmação contrária a ela – tenha diminuído, “a imprensa, especialmente a mídia corporativa, continua a legitimar o negacionismo climático ao permitir às empresas de combustíveis fósseis o acesso às principais plataformas”.

Além disso, as pesquisas com revisão por pares que constam do livro apontam para o surgimento de uma nova e insidiosa abordagem por aqueles que pretendem bloquear a política climática Aronczyk e Boykoff escrevem: “políticos e influenciadores associados à circulação de desinformação tentam enquadrar como censura iniciativas como verificação de fatos, rotulação de conteúdo, e a aplicação de políticas de moderação de conteúdo nas plataformas”.

Por sua vez, o livro Content Confusion (Confusão de Conteúdo), da pesquisadora Michelle Amazeen, da Universidade de Boston, que será lançado em breve, desvenda como os principais veículos de comunicação estão cada vez mais confundindo os limites dos publieditoriais. Uma pesquisa anterior de Amazeen mostrou que, na melhor das hipóteses, pouco mais de um terço dos leitores consegue identificar a diferença entre conteúdo editorial – uma matéria jornalística legítima – e conteúdo publicitário, um publieditorial que é pensado para se parecer com o conteúdo editorial.

No estudo que estabeleceu essa descoberta, Amazeen usou dois publieditoriais diferentes com voluntários de pesquisa. Um deles era para a marca de sapatos Cole haan, e o outro, para a empresa de petróleo e gás Chevron. “Quando percebi como era difícil para as pessoas perceber que se tratava de conteúdo comercial e não de jornalismo genuíno, comecei a pensar: qual o verdadeiro perigo de uma empresa de moda confundir as pessoas dessa forma, em comparação com a Chevron e outras empresas de combustíveis fósseis que empregam essa estratégia?”, conta Amazeen.

Isso motivou mais experimentos, que culminaram em um livro onde Amazeen critica a imprensa por permitir que a raposa entrasse no galinheiro. Em um dos estudos ela analisou como os anúncios nativos ganham uma segunda vida nas redes sociais, onde os veículos são obrigados a compartilhá-los e amplificá-los, e onde “frequentemente as divulgações exigidas pela Comissão Federal de Comércio, que as identificam como conteúdo comercial, desaparecem”. Quando Amazeen compartilhou no Facebook um publieditorial da TotalEnergies na CNBC, por exemplo, naão apareceu o rótulo de “conteúdo patrocinado” na publicação. Portanto, as pessoas que clicaram para ler o artigo podem identificar o aviso no site, mas se passaram pela manchete enquanto desciam o feed, presumiriam que era uma matéria jornalística.

Captura de tela de um anúncio nativo da TotalEnergies na emissora CNBC, que foi compartilhado no Facebook como parte da pesquisa de Amazeen, em 26 de janeiro de 2023. 

Para seu livro, Amazeen conversou com repórteres do clima e pessoas da área de marketing de conteúdo em veículos que produzem publieditoriais para empresas de combustíveis fósseis. “Muitos dos [repórteres] estão horrorizados com o que está acontecendo. Alguns largaram seus empregos por causa disso”, ela conta. E embora os próprios veículos sempre sustentem que há uma barreira entre os estúdios internos da marca e a equipe editorial, todas as pessoas com quem Amazeen conversou disseram que os limites costumam ser confusos.

Em seu livro, Amazeen relata que uma campanha de anúncios nativos pode custar entre 200 mil e 750 mil dólares (1 milhão e 4 milhões de reais), em média, mas “que essa pode ser uma estimativa conservadora, uma vez que descobrimos, em uma investigação parlamentar, que o New York Times recebeu 5 milhões de dólares (26 milhões de reais) por uma campanha nativa” que criou para a ExxonMobil.

“Em alguns casos, os jornalistas acompanham os estrategistas e os vendedores nas visitas aos clientes”, escreve Amazeen, referindo-se aos exemplos da The Atlantic e do New York Times. “Em outros casos, os jornalistas escrevem tanto para a redação quanto para o estúdio de conteúdo, o que é fácil de esconder porque os anúncios nativos normalmente não mostram a assinatura do autor.” Em uma reviravolta distópica, Amazeen também descobriu que os candidatos preferindos para os cargos de marketing de produto e estratégia nos estúdios de conteúdo de mídia são jornalistas expulsos do setor pelas incessantes demissões e pelos salários em queda livre.

Enquanto isso, os publieditoriais se tornam cada vez mais populares entre os anunciantes, em parte porque – como se misturam aos editoriais – eles conseguem driblar os bloqueadores de anúncios.

Os Estados Unidos lideram tanto os publieditoriais quanto a adesão ao negacionismo climático, e as duas coisas estão ligadas. Embora os dados de opinião mostrem que, em todo o mundo, 80 a 89% das pessoas querem que seus governos tomem medidas climáticas mais enérgicas, e nos EUA esse número é de 74%. Ainda é uma maioria esmagadora, mas atrás do resto do mundo. A imprensa não é a única culpada, claro, mas tem sido um dos canais pelos quais a desinformação climática flui há décadas como parte de campanhas coordenadas e bem financiadas pelos setores, empresas e indivíduos que mais perderiam se os governos mundiais regulassem as emissões.

Em sua análise das pesquisas com revisão por pares sobre o clima e a mídia, Aronczyk e Boykoff descobriram que a imprensa dos EUA e do Reino Unido estavam fora da curva em relação ao resto do mundo por sua disposição para abrir espaço para os argumentos corporativos e as visões negacionistas sobre o clima. De fato, quando os pesquisadores analisaram a cobertura de imprensa no Brasil, na Índia, na China, na França, no Reino Unido e nos Estados Unidos, descobriram que “a cobertura jornalística do ceticismo [climático] se limita principalmente aos dois últimos países”. Talvez não surpreenda que a pesquisa também mostra que “países com relações mais fortes entre a ideologia de centro-direita e o negacionismo climático tendem a ter economias com dependência relativamente alta dos setores de combustíveis fósseis”.

Aronczyk diz que parte das razões pelas quais os veículos dos EUA e do Reino Unido são mais abertos a dar espaço para o negacionismo climático tem a ver com “a estrutura de propriedade de tantos meios de comunicação nos EUA e no Reino Unido, então a questão de quem é dono da imprensa se torna muito relevante aqui”.  Muitos veículos estadunidenses e britânicos operam com fins lucrativos, cada vez mais dependentes da receita de anúncios e se tornando propriedade de empresários ou empresas com suas próprias preferências políticas – de Jeff Bezos no Washington Post a Axel Springer nos sites Politico e Politico Europe – e as matérias sobre os benefícios de qualquer tipo de regulação acabam tendo dificuldade de encontrar um lugar para chamar de seu.

Como tanto dinheiro é gasto nos Estados Unidos para disseminar os argumentos negacionistas, não apenas nos meios de comunicação, mas também nas redes sociais e até em escolas, as redações costumam ouvir mais sobre aqueles que duvidam da ciência, o que leva muitos a acreditarem que o negacionismo climático é mais prevalente do que de fato é.

“Toda vez que publico uma matéria sobre mudanças climáticas, vem alguém que acredita na teoria dos rastros de avião escrever para o jornal me recriminando por ignorar a influência dos rastros de avião”, diz Kit Stolz, repórter local no condado de Ventura, estado da Califórnia, nos EUA. Essa resposta comum a suas matérias sobre o clima fez parecer que havia “muitos negacionistas climáticos por aí, até nas cidades progressistas da Califórnia”, diz Stolz, embora as pesquisas revelem consistentemente que apenas cerca de 15% dos estadunidenses são negacionistas climáticos.

Não é uma experiência isolada. Embora exista um volume impressionante de provas de que a maioria absoluta da população nos Estados Unidos e em todo o mundo está profundamente preocupada com o clima, as redações muitas vezes presumem que “ninguém se importa” com as matérias sobre o assunto, considerando que os negacionistas são uma minoria tão barulhenta.

Kirsty Johnston, repórter investigativa da Nova Zelândia, recentemente comentou sobre o assunto no Bluesky. “Sabe, há essa visão generalizada de que as pessoas não se importam com as mudanças climáticas / estão cansadas disso / acham insuportável, mas escrevi uma matéria essa semana [sobre o governo eliminando a política climática] e as redes sociais ficaram alucinadas com ela. As pessoas se importam!!!!! Elas realmente se importam e precisam de uma forma de canalizar isso.”

As empresas de combustíveis fósseis, por sua vez, sabem muito bem o quanto as pessoas se importam com as mudanças climáticas, e é por isso que gastam milhões tentando convencer o público de que estão tomando medidas sobre o assunto. Na maioria dos publieditoriais financiados pelos combustíveis fósseis nos últimos cinco anos, as empresas tentaram usar o espaço para se apresentarem como boazinhas na luta climática, promovendo saídas tecnológicas que os especialistas independentes criticam como falsas soluções.

‘Grandes marcas e outros grupos empresariais minimizam seu papel na contribuição para as mudanças climáticas, e o fazem promovendo a ideia de que estão conosco na mesa de negociação.’

Alguns publieditoriais, por exemplo, exageram no potencial dos biocombustíveis de algas ou na captura de carbono para limitar significativamente o aumento da temperatura mundial. Outros fazem afirmações que contradizem frontalmente as próprias matérias de um mesmo jornal, como aconteceu com um publieditorial que o estúdio interno do Washington Post criou para o Instituto Americano do Petróleo em 2021. O artigo defendia que os combustíveis fósseis continuam sendo uma importante fonte de energia porque as energias renováveis não são confiáveis, uma vez que o sol nem sempre brilha e o vento nem sempre sopra – uma afirmação que o próprio jornalismo climático do Postdesmentiu repetidamente.

Aronczyk e Boykoff destacam o papel da imprensa na normalização das “soluções” mais do mesmo para o clima na cobertura regular, também. “Grandes marcas e outros grupos empresariais minimizam seu papel na contribuição para as mudanças climáticas, e o fazem promovendo a ideia de que estão conosco na mesa de negociação, são colaboradores, estão em busca de consenso, ou estão dispostos a ceder”, diz Aronczyk

“Também já vimos como as empresas de petróleo e gás oferecem fontes para os jornalistas, com o objetivo de promover o ponto de vista e a cobertura de imprensa do setor”, continua Aronczyk. E para que essas relações rendam dividendos, Aronczyk afirma que as empresas de combustíveis fósseis também trabalham com agências de relações públicas para produzir relatórios verossímeis e aparentemente independentes que ajudam a promover suas perspectivas na mídia. “Agências de relações públicas fazem pesquisas favoráveis ao setor que ajudam seus clientes a promoverem suas perspectivas na mídia. Assim, há uma imensa produção de material científico, material jurídico e material técnico para distribuir nos veículos de comunicação.”

Tudo isso gera confusão para o público em geral, que depende dos meios de comunicação para traduzir a ciência sobre as mudanças climáticas e suas soluções, segundo Boykoff, o pesquisador da Universidade do Colorado, Boulder que incluiu os estudos sobre imprensa e meios de comunicação no sexto relatório de avaliação de mitigação do Painel Intergovernamental, em 2022 (a primeira vez que esse relatórios científicos de alto padrão incluíram tais informações). “Pessoas [comuns] não acessam a literatura científica revisada por pares, e o público em geral não lê relatórios do IPCC para aprender sobre mudanças climáticas”, diz Boykoff. “Elas dependem da cobertura de imprensa para entender o que está acontecendo em seu entorno. E assim a imprensa se torna essa ponte importante e esse poderoso motor do debate público.”

Os meios de comunicação desempenham um enorme papel na formação da opinião pública, o que por sua vez influencia na vontade política em torno da ação climática.

Em sua análise da pesquisas científica sobre o papel da mídia em moldar atitudes sobre o clima, Aronczyk e Boykoff não encontraram apenas problemas; encontraram também potenciais soluções, especialmente a forma como o conceito de “atribuição rápida” está sendo aplicado aos “eventos” de desinformação. Ao atribuir rapidamente as informações enganosas aos agentes do setor, os jornalistas podem ajudar a “diminuir a confiança nas fontes transgressoras, além de reduzir o consumo e a crença em seus produtos de imprensa”, escrevem Aronzyk e Boykoff.

Eles apontam como respostas eficazes exemplos de alertas diários, resumos mensais ou semanais, e explicações e relatórios sobre desinformação climática.

“Isso tem a ver com a incrível velocidade do ciclo de notícias atualmente, e o fato de que a nossa atenção está sendo constantemente empurrada em um milhão de direções diferentes na internet. E se você compara isso com o ciclo de pesquisa e publicação da academia, quer dizer, não tem como competir”, diz Aronczyk. “Nosso ciclo de pesquisa e publicação é incrivelmente lento. Trabalhamos em ciclos de anos, não em ciclos de minutos. Assim, o que alguns pesquisadores estão propondo é um serviço de monitoramento e resposta rápida para fornecer fatos, informações precisas à população enquanto ela está pensando sobre o assunto, não um ou dois anos depois.”

Fazer como que os governos tomem as medidas climáticas que os cidadãos desejam exige fechar a lacuna de percepção, que a imprensa ajudou a criar originalmente, mas que também está em posição privilegiada para corrigir.

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