O Brasil quer se tornar uma liderança mundial dos combustíveis sustentáveis, mas na ânsia de assumir o posto pode estar caindo em uma grande armadilha do agro. O país está destinando bilhões em dinheiro público para a produção de etanol de milho – e quem está levando essa grana bilionária são empresas com histórico de infrações ambientais e trabalhistas.
Um levantamento do Intercept Brasil mostra que seis de sete empresas contempladas em projetos relacionados ao etanol de milho, ou suas subsidiárias, tinham registro por infrações ambientais ou questões trabalhistas e fundiárias em órgãos federais ou estaduais quando solicitaram financiamento ao BNDES. A única empresa que não tinha passou a ter logo depois de ter o recurso aprovado. As infrações evidenciam as contradições das promessas do setor, que vende a imagem de sustentável e recebe investimentos bilionários como solução climática.
O BNDES garante que “todos os financiamentos aprovados estão em conformidade com as normas em vigor, inclusive do ponto de vista socioambiental, trabalhista e da redução da emissão de CO2”. Mas, para especialistas ouvidos pelo Intercept, a atuação do banco público é incoerente, “imprudente e potencialmente irregular”, como definiu o advogado e consultor jurídico em integridade socioambiental e climática Bruno Teixeira Peixoto.
“Muitas vezes o viés econômico e político acaba sobressaindo em cima dessas avaliações. Às vezes, algumas agendas se tornam mais prioritárias”, afirma Fábio Ishisaki, assessor de políticas públicas do Observatório do Clima. O BNDES afirmou que os financiamentos “ao setor de biocombustíveis fazem parte da estratégia do governo federal de apoio à transição energética e à descarbonização”.

O setor de etanol de milho diz que é sustentável porque promete expandir a produção do grão que abastece as usinas de etanol sem desmatar, e assim ajudar a conter a crise climática com a substituição de combustíveis fósseis pelo biocombustível feito do milho. A ideia tem apoio de governos estaduais, do governo federal e de políticos da extrema direita – e foi levada à COP30 pelo agro e o governo como uma solução “sustentável e escalável” para enfrentar a crise climática.
Mas, segundo análise do Observatório do Clima e de pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso, a UFMT, o crescimento descontrolado da produção de etanol de milho pode provocar desmatamento, ampliar as emissões de gases de efeito estufa – durante a sua produção e escoamento –, levar ao aumento do uso de agrotóxicos e expandir as fronteiras agrícolas.
Ainda assim, o setor tem recebido uma quantia considerável de verba pública, turbinado pela sanção da lei Combustível do Futuro, a principal política do país para promover a descarbonização no setor de transportes e estimular o uso de combustíveis sustentáveis pelo governo Lula.
Desde 2020, sete empresas solicitaram e tiveram financiamentos aprovados do Banco Nacional de Desenvolvimento, o BNDES. No total, foram solicitados R$ 3,31 bilhões somente para etanol de milho.
A maior parte desse montante, R$ 2,5 bilhões, teve como instrumento de financiamento o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, conhecido como Fundo Clima, integrante da Política Nacional sobre Mudança do Clima, que deve ser destinado a projetos de mitigação e adaptação ao colapso do planeta. Pelo menos R$ 644 milhões já foram pagos pelo BNDES até 31 de agosto deste ano.
Desde sua criação, o Fundo Clima foi utilizado em 177 contratos para diversos setores, que somam R$ 12,66 bilhões. Os seis projetos vinculados ao etanol de milho concentram 19,7% de todo o valor já destinado pelo banco por meio desse instrumento financeiro. Estes estão muito acima da média dos demais realizados com recursos do fundo.
Entre todas as operações do Fundo Clima, apenas 21 contratos superam R$ 100 milhões, dos quais seis são voltados ao etanol de milho. Quatro desses financiamentos, celebrados com as empresas 3Tentos Agroindustrial, Coamo Agroindustrial Cooperativa, FS I Indústria de Etanol S.A. e São Martinho, figuram entre as maiores operações já aprovadas pelo Fundo Clima. Cada uma delas contratou financiamento de R$ 500 milhões.
Mas o grupo de usineiros do etanol não abocanhou recursos só com projetos vendidos como sustentáveis. Eles acumulam aproximadamente R$ 10,14 bilhões em financiamentos contratados pelo BNDES em 22 anos – incluindo os do Fundo Clima. Dessa quantia, R$ 7,49 bilhões já foram liberados às empresas.
Embora os primeiros contratos datem de 2003, o maior volume de recursos – cerca de R$ 6,29 bilhões – está concentrado em projetos assinados a partir de 2017, mesmo ano em que a lei do Renovabio foi instituída. Desse montante mais recente, R$ 4,02 bilhões já foram efetivamente liberados pelo BNDES.

O Brasil vive atualmente um boom de construção de usinas de etanol de milho, com 24 usinas em operação, 16 já autorizadas e 16 anunciadas pelos investidores, segundo a União Nacional do Etanol de Milho, a Unem, entidade que representa o setor. Ele não é à toa.
O país lidera, junto com Itália e Japão, esforços para estabelecer um compromisso que visa quadruplicar a produção e o uso de combustíveis sustentáveis até 2035. Segundo fontes do Ministério das Relações Exteriores, há um interesse de abrir mercados e se posicionar como produtor dos combustíveis sustentáveis e não apenas provedor de matéria-prima para produção deles em mercados que estão surgindo, como o de combustíveis sustentáveis de aviação (SAF, na sigla em inglês).
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No compromisso que levou à COP30, o Brasil propõe que os demais signatários adotem políticas nacionais ambiciosas para combustíveis sustentáveis e cooperem para, entre outras ações, acelerar o licenciamento de projetos de combustíveis sustentáveis e infraestruturas relacionadas. Até o momento, 19 países endossaram o documento.
O etanol de milho se posiciona nesse cenário, sobretudo, porque há um decreto no país, o 6961 de 2009, que vetou a expansão do cultivo da cana-de-açúcar e novas instalações de produção de etanol de cana na Amazônia, no Pantanal e na Bacia do Alto Paraguai, considerados ecossistemas sensíveis. Não há veto para o milho.
Desde 2017, as usinas de etanol de milho estão concentradas no centro-oeste do país, principalmente no Cerrado mato-grossense. Mas, com o lobby do setor abrindo as torneiras do financiamento público, as plantas industriais e os monocultivos estão subindo para o Matopiba, fronteira agrícola formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Entre as 16 novas usinas de etanol de milho cuja construção foi autorizada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, a ANP, há duas na Bahia, uma no Tocantins e outra em Rondônia. Das anunciadas, mais duas na Bahia, uma no Tocantins, uma no Piauí e duas no Pará, na Amazônia.
Financiamento ignora passado de infrações ambientais
Entre os requisitos mínimos para quem quer pedir financiamento do BNDES, segundo o próprio site do banco, estão o cumprimento da legislação ambiental e de obrigações fiscais, tributárias e sociais. Mas um levantamento feito pelo Intercept, a partir de dados ambientais disponíveis na plataforma Cruzagrafos, no site de infrações do Ibama e por meio da Lei de Acesso à Informação, LAI, revela que há empresas contempladas com histórico de infrações ambientais.
A Coamo Agroindustrial teve apoio de R$ 500 milhões aprovados para a construção de uma planta de etanol de milho em Campo Mourão, no Paraná. Em 2018, no mesmo estado, a empresa foi multada em mais de meio milhão de reais pelo Ibama por infrações contra a flora na Mata Atlântica em Coronel Domingos Soares. A multa consta como quitada no site do instituto.

Já a Cerradinho Bioenergia teve acesso a R$ 5 milhões do BNDES em 2024 para cultivar eucalipto que servirá para abastecer uma usina de etanol de milho em Chapadão do Céu, Goiás. Neste mesmo município, a empresa foi autuada em 2009 pelo Ibama por desmatamento. A multa de mais de R$ 1,3 milhão ainda consta como aguardando pagamento ou recurso no sistema do órgão federal.
A São Martinho, outra empresa na lista das sete beneficiadas com recursos públicos do BNDES, contratou financiamentos no valor de R$ 1,24 bilhão apenas com operações relacionadas ao etanol de milho – sendo R$ 500 milhões do Fundo Clima – para a construção de uma planta de etanol de milho e um silo em Quirinópolis, Goiás, e para investir em inovações em outras usinas.
A empresa tem longo histórico de infrações ambientais e trabalhistas. Entre 2007 e 2008, foi fiscalizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que constatou irregularidades que afetavam os cortadores de cana no ambiente de trabalho, como local inadequado para as refeições, falta de utilização de equipamentos de proteção e ausência de exames médicos periódicos.
Mesmo após várias autuações, a São Martinho seguia descumprindo normas trabalhistas, e por isso foi acionada judicialmente pelo Ministério Público do Trabalho. Em 2017, foi autuada por danos ambientais decorrentes da queima de palha de cana entre 2007 e 2011 em Piracicaba, interior de São Paulo. Em janeiro deste ano, foi multada em R$ 5 milhões por demissão compulsória de trabalhadores idosos.
A FS, com capital estadunidense e brasileiro e a primeira no país a ter planta de produção de etanol 100% de milho, teve aprovado financiamento de R$ 500 milhões pelo Fundo Clima para construir sua quinta usina no Mato Grosso, no município de Querência.
A quarta já tinha sido anunciada em 2025 na cidade de Campo Novo do Parecis, e as três primeiras foram instaladas a partir de 2017 em Lucas do Rio Verde, Sorriso e Primavera do Leste.
Marino José Franz, um dos sócios da FS, e Miguel Vaz Ribeiro, atual prefeito de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, e também sócio da empresa, têm fazendas sobrepostas à Terra Indígena Batelão, na Amazônia mato-grossense. O caso está em disputa judicial no âmbito federal.
Em 2020, a própria FS foi autuada pela Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso por inserir dados falsos em guias florestais no Sisflora, Sistema de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais estadual, segundo documentos obtidos pela reportagem na SEMA. As guias florestais são documentos que registram a origem, destino e outras informações sobre a madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal. Os dados falsos eram placas de caminhões que não existiam.

O relatório técnico da autuação ressaltou que este tipo de comercialização possibilita que os empreendimentos “legalizem” ou “esquentem” produtos e subprodutos de origem ilegal.
A FS inseriu 15 placas veiculares falsas no sistema oficial do órgão ambiental do estado, e foi multada em R$ 11,5 mil. A empresa não apresentou defesa. Como pagou a multa à vista, teve desconto de 30%, desembolsando menos de R$ 10 mil.
Uma reportagem recente da Reuters informa que promotores brasileiros estão investigando o uso ilegal de madeira nativa para abastecer usinas de produção de etanol de milho. A FS foi ouvida e afirmou que seus 87 mil hectares de floresta plantada, incluindo eucalipto e bambu, podem abastecer todas as suas operações e planos de expansão.
A 3Tentos Agroindustrial, a única que não tinha registro de autuação ambiental na lista das sete empresas, foi flagrada em julho deste ano empregando mão de obra análoga à de escravo nas obras da sua nova usina de etanol de milho em Porto Alegre do Norte, no Mato Grosso. Para essa usina, a empresa solicitou R$ 500 milhões do Fundo Clima. Nessa operação, já foram desembolsados R$ 200 milhões.
A operação de fiscalização, como evidencia reportagem da Repórter Brasil, resgatou 563 trabalhadores do canteiro de obras da empresa, o maior resgate feito em 2025 até o momento. O dinheiro para o combate à emergência climática foi usado pela 3Tentos em uma obra com alojamentos insalubres, sem água, sem energia, com alimentação precária e ainda servidão por dívida “com fortes indícios de tráfico de pessoas”, segundo a reportagem da Repórter Brasil. Após o caso vir à tona, o BNDES decidiu suspender a verba destinada à 3Tentos.
‘As respostas concedidas por e-mail [para o Intercept] até aqui possibilitam, sim, constatar uma atuação, no mínimo, imprudente e potencialmente irregular do BNDES’.
O BNDES afirmou em nota que, no momento, avalia os esclarecimentos prestados pela 3Tentos, o que poderá resultar em pedido de devolução dos valores já repassados à empresa.
O banco não deixou claro, porém, se o histórico de infrações é um impeditivo para receber recursos. Disse apenas que todas as empresas citadas na reportagem “passaram por minuciosa análise cadastral e não foram encontrados processos transitados em julgado decorrentes de infrações ambientais e/ou trabalhistas que impedissem a concessão de financiamento”.
Essa análise inclui uma avaliação de riscos sociais e ambientais, conforme Regulamento de Gestão Socioambiental e Climática de Operações. Para o Fundo Clima, o banco diz que solicita também o cálculo de emissões de CO2 evitadas com a implantação do projeto financiado. “Aplica-se ainda ao setor de biocombustíveis a Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática do BNDES”, conclui a nota.
De acordo com o advogado Bruno Teixeira Peixoto, o BNDES possui deveres de diligência prévia, avaliação e monitoramento continuado sobre os riscos socioambientais e climáticos por normas e regulamentos do Banco Central do Brasil, o Bacen, e pelo Conselho Monetário Nacional, o CMN.
Embora para o BNDES um histórico de multas, autuações ou processos judiciais em recurso não seja um impeditivo legal para o financiamento, Peixoto considera que esse é um ponto grave de exposição de risco ao qual o banco se submete. “Não é prudente se basear apenas na existência de trânsito em julgado nas infrações e condenações”, afirma.
Financiar empresas com histórico de infrações ambientais, explica Ishisaki, do Observatório do Clima, pode trazer riscos ao banco, embora não seja impeditivo para concessão de crédito. “Os riscos ambientais e climáticos não são só riscos de dano, mas também reputacionais. Se for visto que o negócio tem um risco reputacional, isso também tem que ser considerado na carteira”, explica.
Ishisaki pontua que o banco pode ser responsabilizado por financiar uma atividade que causa dano ambiental, mas que há hoje uma lacuna nesse processo devido ao tempo em que as ações que analisam a culpa das empresas passam tramitando.
Para Peixoto, o banco deveria explicar como o histórico de multas ambientais impacta na classificação de risco dos projetos e das empresas a serem financiados. “Esse histórico das empresas elevou a classificação de risco do projeto? Se sim, que medidas e contrapartidas concretas foram exigidas e inclusive atendidas pelas referidas empresas beneficiadas?”, questiona o consultor. O BNDES não nos respondeu quais documentos exigiu.
O caso da 3Tentos, para Peixoto, é uma evidência de que os mecanismos de monitoramento e acompanhamento próprios do BNDES são falhos, já que o caso chegou ao conhecimento do banco via imprensa.
“As respostas concedidas por e-mail [para o Intercept] até aqui possibilitam, sim, constatar uma atuação, no mínimo, imprudente e potencialmente irregular do BNDES”, diz Peixoto. No caso dos financiamentos via Fundo Clima, o consultor ressalta que “há uma incoerência” do BNDES na liberação de altas quantias sem um monitoramento claro dos benefícios diretos e indiretos em termos de metas climáticas.
Também procuramos as empresas mencionadas. A São Martinho afirmou que “os financiamentos obtidos junto ao BNDES seguem rigorosamente os critérios e exigências legais e regulatórias aplicáveis a cada operação”.

A Cerradinho Bioenergia esclareceu que enviou ao BNDES toda a documentação necessária solicitada para análise de habilitação ao recebimento de recursos do banco. Ainda informou que a multa imposta à companhia está sendo contestada em processo administrativo junto ao Ibama desde 2009. O local em questão permanece embargado.
Já a 3Tentos afirmou que o caso não ocorreu nas instalações da empresa, “mas em um alojamento externo sob responsabilidade da construtora contratada para executar parte da obra”, e que não teria sido autuada.
A FS e a Coamo não responderam aos nossos questionamentos.
A nova Arábia Saudita e suas contradições
Antes da COP30, os usineiros ajudaram a construir um discurso para posicionar o Brasil como a Arábia Saudita dos biocombustíveis. E vender o etanol brasileiro como sustentável é fundamental para essa narrativa.
O principal argumento do agro sobre a sustentabilidade do etanol de milho é que o grão usado na fabricação do biocombustível é o de segunda safra, ou seja, plantado na mesma área em que a soja foi colhida. Isso, em tese, evitaria novos desmatamentos para abrir áreas de cultivo, uma das principais causas de emissão de gases de efeito estufa.
Dados da Companhia Nacional de Abastecimento, a Conab, mostram que o Brasil alcançou um recorde histórico de produção de milho na safra 2024/2025, com 141,1 milhões de toneladas, 27% a mais do que na safra 2023/2024, impulsionada pelo aumento da área plantada com milho de segunda safra. Para a safra 2025/26, as projeções apontam expansão da área cultivada tanto na primeira (+6,1%) quanto na segunda safra de milho (+3,8%), diz o órgão.
Em 2024, 20% do etanol brasileiro já foi feito com milho, equivalente a 7,55 bilhões de litros – a cana-de-açúcar, principal matéria-prima para esse tipo de biocombustível no Brasil, gerou 29,7 bilhões de litros, segundo dados do Balanço Energético Nacional de 2025.
A questão é que a Política Nacional de Biocombustíveis, a Renovabio, criada para expandir os biocombustíveis na matriz energética, não qualifica esses produtores de milho – apenas os usineiros que usam o grão para produzir o etanol.
A ANP tem um informe técnico com procedimentos para rastrear a procedência das matérias-primas dos combustíveis. Mas a inserção de informações é feita pelo produtor do biocombustível e pelo intermediário que fornece os grãos – como um armazém, trading ou cerealista. Eles podem ser auditados, mas têm que garantir a origem da matéria-prima, ou seja, na prática o governo fica dependente das informações que o próprio mercado fornece.
Dessa forma, não há como atestar, de forma independente, que todo o milho destinado às usinas é de segunda safra, principal argumento do agro para garantir que o etanol produzido é livre de desmatamento.

Mas essa é só a ponta do iceberg. Ainda que o etanol de milho seja um biocombustível que emite menos gases de efeito estufa em relação aos combustíveis à base de petróleo, o agro exclui do debate como essa produção pode levar ao aumento do uso de terras para o plantio.
Embora o milho renda mais litros de etanol do que a cana – uma tonelada de milho produz entre 370 e 460 litros de etanol e uma tonelada de cana produz 70 a 80 litros de etanol –, o grão precisa de muito mais área para ser cultivado – 1 hectare de cultivo de cana produz 6,8 mil litros de etanol, enquanto o mesmo espaço de terra com milho produz entre 2,3 mil a 2,5 mil litros do biocombustível.
Um estudo do Instituto de Energia e Meio Ambiente, o Iema, em parceria com o Observatório do Clima, mostra que é possível expandir a produção de biocombustíveis no Brasil sem desmatar.
Tendo em vista a quantidade adicional de biocombustíveis para atender o mercado doméstico em 2050, no âmbito de uma economia que elimina mais carbono do que emite – ou seja, uma economia negativa em carbono –, o estudo projetou o aumento da produção de etanol, biodiesel, diesel verde e combustível de aviação sustentável, e o quanto de terra adicional seria necessário para produzir suas matérias-primas: cana-de-açúcar, macaúba, soja e milho de segunda safra.
O estudo considera apenas o uso de um total de 100 milhões de hectares de áreas já ocupadas por pastos degradados identificados pelo MapBiomas, “sem a necessidade de qualquer desmatamento adicional ou competição com a produção de alimentos”.
Para ficar apenas no etanol de milho e cana, o estudo prevê um total de 53,8 bilhões de litros desse biocombustível adicionais aos 37,3 bilhões de litros produzidos em 2024 para abastecer o mercado doméstico em 2050.
Para chegar a essa quantidade, usando 100% de milho de segunda safra – plantado na área onde a soja foi colhida –, serão necessários 53 milhões de hectares de terra adicionais aos 3 milhões usados em 2024.
Isso representa quase a totalidade dos 56 milhões de hectares de pastos degradados que o estudo identificou como disponíveis para a agricultura em geral, o que inclui a produção das matérias-primas dos biocombustíveis, a produção de florestas plantadas, como o eucalipto, usado na geração de energia, e a produção de alimentos. Os demais 44 milhões de hectares seriam para recuperação de mata nativa e para recuperação do pasto degradado em pasto produtivo para a pecuária. Para acomodar todas as demandas da agricultura neste cenário, de acordo com o estudo, o desmatamento seria necessário – o que desmonta a narrativa do agro de que o milho de segunda safra não terá de desmatar áreas para atender à demanda do etanol.
“O milho aparece como um certo lobby de quem já produz soja para ter uma nova demanda: produz soja, farelo, o óleo, e agora tem o milho também”, afirma Felipe Barcellos e Silva, pesquisador do Iema e um dos autores da pesquisa.
“Na perspectiva socioambiental, o incremento do uso de biocombustíveis é avaliado com cautela, já que sua produção em larga escala depende de extensas áreas de monocultura de cana-de-açúcar, milho, soja, entre outros cultivos”, alerta o estudo do Iema e Observatório do Clima.
A expansão do plantio de milho para a produção de etanol levaria, também, ao aumento da quantidade de agrotóxicos nas lavouras, dizem pesquisadores da UFMT. O Brasil já é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, e o Mato Grosso, epicentro da produção de etanol de milho no Brasil e que concentra três biomas de fundamental importância para o planeta – Amazônia, Pantanal e Cerrado –, é o maior consumidor de agrotóxicos do país.
Ao analisar o uso contínuo de agrotóxicos no caso do plantio do milho de segunda safra, a pesquisadora Márcia Montanari, do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador, o Neast da UFMT, afirma que essa prática vai empobrecendo o solo do ponto de vista mineral e biológico.
‘O processo produtivo [do etanol de milho e cana] é bastante sujo, e o pessoal fala que é uma energia limpa. É limpa no final da cadeia’.
“O fertilizante tem muito produto químico de metal pesado, como cádmio e chumbo, que são contaminantes do solo e dos lençóis freáticos. Você amplifica a sobrecarga desse solo e aumenta a necessidade de usar mais e mais insumos químicos. Isso promove a ampliação das contaminações”, explica a pesquisadora.
Há ainda outro problema elencado pelos pesquisadores, que também não cabe nas narrativas do agro sobre a expansão do etanol de milho de segunda safra: a expansão dos monocultivos de eucalipto.
Os plantios de eucalipto são conhecidos por usarem muita água, podendo causar a diminuição do fluxo de rios e córregos, como mostrou estudo da Repórter Brasil, e também pelo uso intensivo de agrotóxicos nos primeiros anos, principalmente herbicida e inseticida, segundo o professor e também pesquisador do Neast da UFMT Wanderlei Pignati.
Embora o agro alegue que os monocultivos seriam menos danosos para o meio ambiente que o petróleo, ainda assim eles geram problemas, lembra Pignati.
“O processo produtivo [do etanol de milho e cana] é bastante sujo, e o pessoal fala que é uma energia limpa. É limpa no final da cadeia”, diz.
“Se contabilizados o desmatamento, o plantio com uso intensivo de agrotóxicos, de fertilizante químico, que também contamina a água, o ar, a chuva, os animais, o leite materno, o sangue, a urina, e que traz uma série de doenças, desde a intoxicação aguda às intoxicações crônicas, tanto o álcool produzido com a cana quanto o produzido com o milho, é uma das energias mais sujas que têm”, garante Pignati.
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