A OpenAI, criadora do ChatGPT e uma das líderes mundiais em desenvolvimento de inteligência artificial, disse ao governo Lula que tem 5 bilhões de dólares para investir no Brasil, mas suspendeu os planos por causa das leis de direitos autorais – e sinalizou que esse investimento bilionário depende de mudanças na legislação.
O episódio ocorreu durante uma reunião realizada a pedido da OpenAI com o Ministério das Comunicações, em 4 de setembro – e da qual o Intercept Brasil obteve acesso à ata. Embora o governo tenha anunciado recentemente uma política para atrair investimentos em infraestrutura de IA, o secretário de direitos autorais e intelectuais do Ministério da Cultura, Marcos Souza, diz que a postura da OpenAI “pega mal porque soa como uma chantagem”.
O debate sobre remuneração por direitos autorais para os detentores de conteúdo usado para treinar modelos de inteligência artificial, como o ChatGPT, da OpenAI, é central nas discussões da regulamentação de inteligência artificial.
O tema também é chave para as empresas que pretendem investir no Brasil, já que o marco regulatório de IA que está sendo construído prevê que elas devem remunerar artistas, jornalistas, designers e qualquer pessoa ou empresa se seu conteúdo for usado no treinamento de modelos – o processo em que a máquina aprende padrões a partir de uma grande quantidade de dados. Isso, por sua vez, torna o custo para essas empresas de IA operar no Brasil muito mais alto.
A remuneração por direitos autorais é um mecanismo de proteção de trabalhadores, mas também um instrumento de combate à prática extrativista de empresas de tecnologia, que se apropriam indevidamente de conteúdo disponível na internet para treinar modelos que beneficiarão apenas elas financeiramente.
Segundo a ata da reunião, os representantes da OpenAI, incluindo Benjamin Schwartz, diretor global de parcerias e políticas de infraestrutura, disseram aos servidores do governo, dentre eles o ministro de Comunicações, Frederico Siqueira, que a empresa considera que “o Brasil possui condições ideais de infraestrutura, energia e recursos naturais para receber grandes centros de computação, mas que os investimentos dependem da evolução do marco regulatório de IA e da flexibilização das leis de copyright”.

A ata ainda sinaliza que a OpenAI vê como um problema as leis de direitos autorais do Brasil, que “atualmente impedem o uso de dados de empresas locais para treinamento de modelos de IA”.
Pressão se espalha por outros ministérios
Marcos Souza, secretário de direitos autorais e intelectuais do Ministério da Cultura, disse ao Intercept que essa abordagem da OpenAI também chegou até a pasta onde ele atua “exatamente nesses termos” – e se repetiu com outras empresas.
“Eu falo: ‘nós temos uma Constituição, o direito autoral está na Constituição, no artigo 5º, nem emenda constitucional resolve para vocês, teria que fazer uma Constituinte, então I’m sorry [sinto muito]’”, disse Souza. Ou seja, nada feito para as empresas.
Segundo Souza, o discurso das empresas de que deixarão de investir por conta da regulação sempre existiu. O que é diferente neste caso é que há um programa federal de incentivo à instalação de data centers, o ReData, e o Brasil é um mercado digital gigantesco. “Não tem empresa que vai abrir mão do Brasil”, afirmou.
“Do ponto de vista deles [da empresa], fazer esse tipo de blefe, de bravata, não ajuda. Isso pode colar em um país menor, mas, aqui no Brasil, eu conversei com muita gente no governo e não tem ninguém preocupado com isso”, pontuou Souza. “Pega mal porque soa como uma chantagem sobre sua soberania”, complementou.
‘Pega mal porque soa como uma chantagem sobre sua soberania’.
Como desfecho da reunião, de acordo com a ata, ficou definido que a OpenAI apresentaria “propostas formais de investimentos e cooperação, incluindo projetos sociais, ambientais e de infraestrutura tecnológica” e que o Ministério das Comunicações buscaria articulação com outras pastas para “viabilizar a construção de um marco regulatório seguro, moderno e convergente com as demandas do setor privado”.
Procurado, o Ministério das Comunicações disse em nota (leia a íntegra) que destacou, durante a reunião, estar “desenvolvendo a política nacional de data centers para o eixo de infraestrutura e conectividade” e enfatizou que considera o desenvolvimento do setor uma prioridade para a área de telecomunicações nos próximos anos. Sobre direitos autorais, a pasta informou que a empresa “deve procurar os órgãos governamentais que estão avaliando o tema”, sem citar quais são.
Já a OpenAI nos disse, também em nota (leia a íntegra) , que engaja com autoridades e outros atores do ecossistema de IA para compartilhar conhecimento e explorar oportunidades e que, como parte da iniciativa OpenAI for Countries, ajuda países a desenvolver capacidade em IA, o que “inclui discutir implementação de infraestrutura e investimentos”.
A empresa ainda informou que tem sido transparente sobre “a importância de um marco regulatório equilibrado que projeta direitos sem sufocar a inovação e que permita ao Brasil competir em escala global”.
Direitos autorais na mira do Senado
Ainda que não tenha aparecido de maneira tão explícita antes, não é a primeira vez que empresas de tecnologia e desenvolvedores de data centers – a OpenAI faz ambas as coisas – pressionam para uma mudança nas leis que a beneficiem.
Em dezembro de 2024, quando o projeto de lei 2338, que regulamenta a IA no Brasil, estava prestes a ser aprovado na Câmara dos Deputados, presidentes de empresas de data center lançaram uma carta em que pediam a retirada do artigo que prevê a remuneração por direitos autorais.
A proposta do setor, segundo o documento, era de que “o uso de obras publicamente disponíveis na internet para o desenvolvimento e treinamento de sistemas de IA de forma não onerosa deve ser a regra geral para não excluir o Brasil do cenário internacional de desenvolvimento de IA”. Ou seja, queriam usar o conteúdo disponível na internet para treinar sistemas sem ter que pagar por ele.
A OpenAI está sendo processada em alguns países por isso. Nos Estados Unidos, o The New York Times move uma ação contra a empresa e a Microsoft sob a alegação de que seus modelos de IA foram treinados em milhões de artigos do jornal, protegido por direitos autorais, sem permissão.
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Como a maioria das legislações mundiais sobre o tema, a lei brasileira de direitos autorais é anterior ao treinamento de modelos grandes de IA e, portanto, não há um consenso sobre como ela deve ser interpretada para o uso por empresas de IA generativa.
“Apesar de não tratar especificamente do uso de conteúdo protegido para o treinamento de sistemas de IA, a nossa lei atual abrange determinados usos que são necessários a esse processo, como a reprodução e o armazenamento em bases de dados”, disse ao Intercept Luca Schirru, pesquisador de pós-doutorado no IBICT/INCC, coordenador de pesquisa no Centre on Knowledge Governance, Research Fellow no CiTiP – KU Leuven, advogado, professor e consultor em direito da propriedade intelectual.
“Esses usos, caso não estejam amparados por uma limitação ou exceção, sejam realizados sobre conteúdo protegido pela LDA e ainda não integrante do domínio público, podem demandar autorização prévia e expressa e até mesmo remuneração”, explicou.
Segundo o advogado, o grande debate é se esses usos, e outros que sejam necessários para a mineração de textos e dados e no treinamento de sistemas de IA, devem sempre demandar autorização prévia e expressa ou se poderiam haver exceções.
A versão mais recente do projeto de lei 2338, aprovada no Senado em dezembro passado e agora em tramitação na Câmara , tenta corrigir essa lacuna ao obrigar empresas de tecnologia a remunerar os detentores dos direitos autorais. O Ministério da Cultura, inclusive, defende essa versão do texto.
‘Estão usando o patrimônio cultural brasileiro todinho. Sem pedir autorização, sem remunerar’.
“Ela traz uma segurança jurídica para todos porque cria essa remuneração e também traz para a legalidade o que essas empresas fizeram, porque essa situação é ilegal aqui no Brasil e em qualquer país do mundo”, destacou Souza, secretário de direitos autorais e intelectuais do Ministério da Cultura. “A regra no direito autoral é autorização prévia, e essa mineração em larga escala, essa raspagem da internet, não teve autorização prévia”, ressaltou.
Na avaliação de Schirru, o artigo sobre direitos autorais no projeto de lei faz uma “distinção fundamental” ao distinguir usos de interesse público, como pesquisa, educação e preservação, do uso feito por grandes empresas de IA generativa com finalidade comercial.
Souza, que em sua passagem anterior pela pasta da Cultura liderou a área de direitos autorais entre 2004 e 2016, aponta o contraste com o debate que predominava nos anos 2000.
“Ali o que muito se discutia era se a lei de direito autoral era por demais rígida e impedia o acesso à cultura. E isso era expresso em várias discussões que existiam no âmbito do digital, mas também, por exemplo, nos campus universitários, na questão da xerox”, disse.
“Agora, a realidade é que quem está usando são as maiores empresas do mundo. E estão usando o patrimônio cultural brasileiro todinho. Sem pedir autorização, sem remunerar. Esse é o problema”, concluiu.
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