Em Belém, países do mundo todo estão reunidos na COP30 para selar metas globais para lidar com a crise climática. No centro das discussões, estão os compromissos de redução de emissões de carbono e a transição para além dos combustíveis fósseis.
Embora o holofote esteja sobre as empresas do agronegócio, mineradoras e petroleiras, há mais empresas que também têm contribuído para as emissões. E elas merecem ser tão escrutinadas quanto.
Microsoft, Google e Amazon Web Services. Três das maiores empresas de tecnologia do mundo têm metas próprias de reduzir a zero suas emissões de carbono na próxima década ou até 2040. O que não aparece nos relatórios de sustentabilidade dessas empresas, no entanto, é o papel que elas desempenham, através de suas tecnologias, em ajudar que a indústria global de petróleo produza cada vez mais, na contramão das metas climáticas.
E esse é um papel central que precisa ser escrutinado, defendem dois ex-funcionários da Microsoft, Holly e Will Alpine. À frente da campanha pública Enabled Emissions (em português, emissões viabilizadas), eles estão jogando luz sobre como tecnologias de IA e computação em nuvem desenvolvidas pelas maiores empresas de tecnologia do mundo estão contribuindo para o aumento da produção de petróleo.
Um exemplo didático do que a campanha combate ocorreu em solo brasileiro às vésperas da COP. Segundo reportagem do site DeSmog, antes de partir para Belém, executivos da Nvidia, gigante global que produz chips para IA, marcaram presença na Offshore Technology Conference, um evento da indústria do petróleo no Rio de Janeiro, para promover como suas tecnologias podem ajudar a extrair ainda mais petróleo.
É um ciclo vicioso: como maiores clientes das big techs, a indústria petrolífera também está viabilizando que as gigantes da tecnologia, por sua vez, sigam neste caminho de desenvolvimento de IA que ignora as questões socioambientais.
As chamadas emissões viabilizadas não aparecem em relatórios e não são contabilizadas nas métricas, mas podem representar três vezes toda a pegada ambiental da Microsoft – inclusive seus data centers. O que está em risco, para além das emissões continuadas, é que se mude o incentivo para a transição energética.
“A IA é, na verdade, apenas um amplificador do nosso sistema atual. E o nosso sistema atual ainda depende principalmente de combustíveis fósseis, mesmo que muita da nova energia gerada no ano passado seja renovável e isso é fantástico”, disse Holly Alpine, em entrevista ao Intercept Brasil.
“Mas se continuarmos a aumentar o consumo de combustíveis fósseis e, ao mesmo tempo, torná-los mais baratos, o que altera a curva de adoção de energias renováveis, muda também a viabilidade econômica da transição”, explicou Alpine.
Leia a entrevista na íntegra abaixo:
Intercept Brasil – O que vocês definem como emissões ‘viabilizadas’ e por que escolheram esse nome para a campanha?
Holly Alpine – Emissões viabilizadas são as emissões que não ocorreriam se não fosse pela tecnologia avançada que as torna possíveis. Escolhemos esse nome para a nossa campanha porque acreditamos que essas emissões são extremamente importantes e fazem parte da pegada ambiental das grandes empresas de tecnologia, mas não são contabilizadas nos cálculos de emissões que elas utilizam.
Portanto, são emissões praticamente invisíveis aos olhos do público, pois não são contabilizadas em nenhum relatório. Não os estamos contabilizando quantitativamente e eles também não estão sendo incluídos qualitativamente, nem mesmo na forma como relatamos, falamos ou até mesmo pensamos sobre as emissões.
E agora, a narrativa mais ampla em torno da IA e do clima se concentra nas emissões para operar a tecnologia. Ou seja, na energia usada para alimentar a tecnologia, e praticamente ignora como a tecnologia é usada e essas vastas emissões que são geradas quando se aplica tecnologia a esses projetos.
Quais são as principais formas em que a IA é usada na extração de petróleo? Também vi que a Microsoft é a principal “viabilizadora”. Vocês têm dados sobre a participação das empresas petrolíferas no rol de clientes das big techs?
Vimos que a Microsoft tem grandes contratos com empresas petrolíferas. Percebemos que eles eram alguns dos principais clientes da Microsoft, e que o setor de petróleo e gás era um dos três principais segmentos da empresa.
Além disso, relatórios do setor [de tecnologia] mostram que a Microsoft detém mais contratos do que todos os outros fornecedores juntos. Ela possui cerca de 60% do mercado. E muitos desses acordos são caracterizados como otimização ou eficiência. Assim, eles são vistos como uma aposta na transição energética. O site da Microsoft, inclusive, aborda bastante o trabalho da empresa com petróleo e gás, falando sobre transição e eficiência.
Mas quando analisamos os objetivos reais dos acordos, ficou muito claro que era para ajudar essas empresas a produzir mais petróleo. Quer dizer, claro, talvez estejam produzindo de forma mais eficiente, mas estão produzindo de forma mais eficiente para aumentar a produção. E, portanto, o impacto líquido é um aumento nas emissões globais.
O objetivo desses projetos é permitir que a tecnologia avançada ajude essas empresas a encontrar novas reservas de petróleo e gás mais rapidamente. As empresas de petróleo e gás coletam enormes quantidades de dados geoespaciais e sísmicos e conseguem criar mapas subterrâneos. A IA ajuda a analisar esses dados muito mais rapidamente do que os humanos.
É possível identificar locais com potencial para a existência de novas reservas de petróleo e gás. Isso torna a exploração mais barata, rápida e eficaz, resultando na descoberta e extração de mais combustíveis fósseis.
E, uma vez escolhido o local, a IA ajuda a planejar e automatizar a perfuração. Assim, ela consegue determinar a maneira mais rápida de perfurar, prever problemas com os equipamentos antes que eles aconteçam e reduzir o número de pessoas necessárias nas plataformas. Dessa forma, os custos diminuem drasticamente e a produção é acelerada.
Resumindo, isso significa que as empresas podem extrair mais petróleo e gás do solo. E esses são apenas alguns exemplos: encontrar gás mais rapidamente, otimizar a perfuração e a extração e, em seguida, aumentar a recuperação de poços existentes.
Um novo estudo da Wood Mackenzie mostrou que estamos falando sobre como a IA pode ser usada para ajudar a produzir um trilhão de barris de petróleo adicionais apenas a partir de poços existentes. Isso sem nem mesmo encontrar novos poços. É a partir dos poços que já temos.
Isso é significativo. Quer dizer, nossos cálculos mostram que são cerca de 400 gigatons. O que significa que, se produzirmos mais 400 gigatons, isso ameaça toda a vida na Terra.
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Vocês usam a expressão “dar uma boia de sobrevivência à indústria petrolífera”. Isso se deve ao fato de que a IA ajudará elas a encontrar petróleo onde, provavelmente, sem esse tipo de inteligência, elas não conseguiriam?
Exatamente. Houve relatos muito claros dessas empresas de energia afirmando que, não fosse por essa tecnologia, elas não teriam conseguido realizar esses projetos. Elas teriam abandonado esses projetos e tentado outra coisa. Mas, graças a essa tecnologia, e grande parte dela vem de grandes empresas de tecnologia, principalmente da Microsoft, esses projetos se tornaram viáveis novamente.
Há um artigo fantástico da Reuters, uma reportagem sobre a CERAWeek, a maior conferência de petróleo e gás do mundo, que aconteceu em março passado. E era tudo sobre IA. E, quer dizer, o artigo inteiro é simplesmente horrível. Fica muito, muito claro que essas empresas estão muito entusiasmadas com o fato de serem algumas das maiores usuárias, algumas das pioneiras. E vou me adiantar um pouco aqui para uma pergunta posterior sobre energias renováveis.
Eles estão muito atrasados. E a IA é, na verdade, apenas um amplificador do nosso sistema atual. E o nosso sistema atual ainda depende principalmente de combustíveis fósseis, mesmo que muita da nova energia gerada no ano passado seja renovável e isso é fantástico. Mas se continuarmos a aumentar o consumo de combustíveis fósseis e, ao mesmo tempo, torná-los mais baratos, o que altera a curva de adoção de energias renováveis, muda também a viabilidade econômica da transição.
É interessante como, sendo os maiores clientes das big techs, as empresas de petróleo e gás também estão viabilizando que a indústria de tecnologia persiga esse tipo de desenvolvimento de IA que, no caminho atual, não considera questões socioambientais.
Sim. É como um ciclo vicioso em que um se retroalimenta.
Algo que vocês destacam no site é que as tecnologias de IA que viabilizam a extração de petróleo devem ser consideradas tecnologias de alto risco, especialmente na União Europeia. Mas essa é uma conversa que estamos tendo no Brasil também, já que o nosso projeto de lei também busca classificar as tecnologias de acordo com o risco. Vocês têm avançado nessa frente?
Sim, eu diria que ainda estamos nos estágios iniciais, mas as primeiras conversas foram bastante promissoras. Acho que quando você conversa com políticos que atuam na área de responsabilidade, seja em IA ou clima, as pessoas estão começando a entender.
Isso definitivamente faz parte desse sistema, e uma parte importante, e é uma lacuna. Eles estão começando a reconhecer essa lacuna, o que já é um grande passo para nós. Quer dizer, se tudo o que nossa campanha fizer for mudar a narrativa para incluir essas emissões na conversa e na reflexão sobre o assunto, já será uma grande vitória, porque é por aí que precisamos começar.
Acreditamos que existe potencial para influenciar políticas e alterar o AI Act [legislação europeia sobre IA que entrou em vigor em 2024], por exemplo. Eu não sabia disso sobre o Brasil, então vou pesquisar. Nos Estados Unidos, nos reunimos com vários políticos, assessores e equipes, e eles estão começando a entender o impacto, o que é ótimo. Acho que ainda é algo novo para todos, então leva tempo. É claro que, nos Estados Unidos, nos próximos anos, será muito, muito difícil, mas isso não significa que não devamos, pelo menos, colocar o assunto em pauta para pelo menos obter o máximo de compreensão possível e entender o que seria possível para realmente começar com o pé direito na próxima vez que estivermos em um ambiente político que permita a democracia.
Muito do debate em torno da pegada ambiental das empresas de tecnologia gira em torno dos data centers, mas você tem dito que isso é apenas a ponta do iceberg. Existe algum número que nos ajude a ter ideia da dimensão das emissões viabilizadas sobre as quais estamos falando?
Sim, posso citar dois acordos que vimos entre a Microsoft e a Exxon e a Chevron, que quantificaram o aumento de barris de petróleo por dia. Quantificamos as emissões apenas desses dois acordos e isso representou mais de três vezes as emissões anuais totais da Microsoft, incluindo as de data centers. E existem dezenas desses acordos.
Eu não quero colocar essas questões umas contra as outras. Tudo faz parte de um sistema. Mas é importante entender a escala de que estamos falando aqui para que possamos abordar ambos os aspectos. Quer dizer, é por isso que gostamos da metáfora de que é apenas a ponta do iceberg.
Outra metáfora que usamos é a de que estamos preocupados com os impactos ambientais de um robô e estamos olhando para os detalhes, como o aço que compõe o robô. Sim, devemos abordar essa questão. É importante. Mas mesmo que esse robô fosse feito de ótimos materiais e funcionasse com energias renováveis, se ele estiver destruindo a floresta amazônica ou derramando petróleo diretamente, se estiver prejudicando o meio ambiente, precisamos nos concentrar também no que ele está fazendo de fato. Então, essa é mais ou menos a nossa analogia.
Quanto, na sua visão de quem teve uma perspectiva de dentro, desse discurso pró-meio ambiente das empresas é puro cinismo ou uma jogada de relações públicas. Quero dizer, as empresas realmente acreditam que estão fazendo algo bom?
Eu diria que a Microsoft, como a maioria das empresas, não é um bloco monolítico. Há muitas pessoas e ideias diferentes dentro da empresa. Trabalhei com milhares de funcionários incríveis que realmente se importam. Fiz parte da equipe de energia da Microsoft por vários anos e depois trabalhei na nossa equipe de desenvolvimento comunitário.
E todos que trabalham nessas equipes são apaixonados, inteligentes e empenhados em fazer a diferença. Há também as pessoas que operam os data centers, constroem os data centers e pensam em seus projetos. E há ainda uma parte da empresa que lucra muito com esses contratos com empresas de combustíveis fósseis.
E a liderança da empresa, eu realmente acreditei por muito tempo que eles tinham boas intenções e queriam fazer a coisa certa. Tivemos reuniões com eles onde discutimos esses problemas e os levamos ao seu conhecimento. E como se eles já não soubessem disso, sendo que se tratava de alguns dos seus maiores clientes.
Mas eles realmente pareciam querer fazer a coisa certa. Fizeram muitas promessas para nós. Nos anos seguintes, quase nenhuma dessas promessas foi cumprida.
Houve muita enrolação e, no fim, o completo descumprimento das promessas feitas. E agora tenho menos confiança de que eles farão a coisa certa sem intervenção.
É um incentivo realmente complexo, não é? É muito dinheiro envolvido que está impulsionando os lucros das empresas.
Que, por sua vez, impulsionam toda a economia americana.
É muito complicado. Não invejo as pessoas no poder. Mas a questão é que não se trata de combustíveis fósseis, pois nossa economia não pode se basear neles a longo prazo. Simplesmente não sobreviveremos.
Essas empresas precisam pensar a longo prazo e estruturar seus negócios de forma que, primeiro, nos leve a um planeta habitável e, segundo, que suas empresas ainda sobrevivam nesse novo mundo.
Porque, se você só está estruturado para ganhar dinheiro com esse sistema antigo, o mundo eventualmente vai mudar. E aí, onde estará o seu valor para os acionistas? Felizmente, isso está começando a fazer parte da discussão sobre dever fiduciário e valor para o acionista nesse horizonte de longo prazo.
Tenho certeza de que ele estava dizendo isso para o próprio benefício, mas nisso eu concordo com Donald Trump que é a transição dos relatórios de lucros trimestrais para, como ele disse, semestrais. Eu até acho que deveríamos passar para anuais. Não entendo muito bem desse assunto.
Mas me parece uma visão tão míope ter esses lucros trimestrais, onde somos incentivados a ganhar dinheiro o mais rápido e facilmente possível. Não somos incentivados a pensar a longo prazo e investir em áreas mais promissoras.
Sim, porque é uma situação de codependência, certo? As grandes empresas de tecnologia também dependem muito desses contratos atualmente.
Sim, sim. E quero salientar, porque este é um equívoco comum, que nunca defendemos e nunca defenderemos uma moratória total nos contratos com a indústria dos combustíveis fósseis. Sabemos que grande parte do nosso mundo depende do petróleo e que isso continuará por muito tempo.
E existe uma certa quantidade de petróleo que podemos usar para sobreviver e que precisaremos usar por muito tempo. Mas isso não significa que não deva haver nenhum tipo de salvaguarda. Usamos petróleo para tudo e absolutamente tudo, e aumentamos a produção drasticamente.
É uma falsa dicotomia dizer que precisamos ou parar completamente a produção de petróleo, ou usá-la para aumentar a produção mais do que nunca. Há um amplo espectro entre esses dois extremos. E acreditamos que devem existir salvaguardas razoáveis.
E a Microsoft concordou quase inteiramente conosco em relação às salvaguardas que propusemos. Só não as implementou.
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