Agência de publicidade da Shell comemora que campanha de ‘energia verde’ em novela vendeu mais combustíveis

Propaganda fóssil

Agência de publicidade da Shell comemora que campanha de ‘energia verde’ em novela vendeu mais combustíveis


A gigante do petróleo Shell aproveitou o amor dos brasileiros pelas novelas  para fazer uma campanha milionária de marketing em que anunciava ser uma empresa sustentável e líder da transição energética. Mas, segundo um relatório feito pela agência de publicidade responsável pela ação, um dos principais resultados da iniciativa não foi necessariamente sustentável: aumentou a venda de combustíveis da petrolífera no Brasil. 

A agência britânica VML relatou, conforme documentos obtidos pela DeSmog, veículo que investiga desinformação corporativa de grandes empresas do setor de combustíveis fósseis, que a campanha Caminhos do Manhã, que foi ao ar nos intervalos comerciais de novelas do horário nobre e nas redes sociais, fez a venda nos postos da Shell crescer 13%.

Embora a agência não detalhe qual tipo de combustível foi mais vendido, o relatório usa o termo ‘fuel’ (combustível, em tradução livre do inglês) ao citar o resultado das vendas, enquanto em outras partes dos documentos obtidos pela DeSmog escreve biofuel (biocombustível) ao se referir de forma específica a biocombustíveis, que são mais sustentáveis.

O Brasil não tem qualquer regulamentação para esse tipo de propaganda verde, embora projetos de lei tramitem no Congresso. O problema disso é que as campanhas não têm necessidade de comprovar as informações que compartilham – o que abre portas para o greenwashing, quando uma empresa se diz sustentável apenas para enganar os consumidores.

Objetivo da campanha era usar as associações positivas do público com a energia limpa para “fortalecer a confiança na Shell”. (Imagem: Shell/Reprodução do site)

A campanha Caminhos do Amanhã foi dividida em duas etapas. Na primeira, lançada em 2023 no intervalo da então novela das 21h da TV Globo Terra e Paixão, era composta por uma mininovela de cinco capítulos estrelada pelos atores Sophia Abrahão e Sérgio Malheiros. O mote da trama era o futuro da energia a partir da chegada de um bebê na vida do casal. 

Os dois iam descobrindo os pontos de recarga de carros elétricos da Shell enquanto planejavam a vida com seu primeiro bebê. No fim do ano passado, a nova fase da campanha foi ao ar, desta vez protagonizada por influenciadores e seus filhos, como ZANQ, Michele Passa e Gabi de Pretas, além do biólogo Átila Iamarino.

A agência VML revelou no relatório ao qual tivemos acesso que tinha como objetivo usar as associações positivas do público com a energia limpa para “fortalecer a confiança na Shell” e, por sua vez, aumentar as vendas de combustíveis para carros em seus postos. Essa abordagem — conhecida como “efeito halo” na indústria publicitária — permitiu, segundo a agência, o aumento das vendas.

No documento, a agência ainda cita que “os brasileiros ainda associam a Shell ao seu histórico tradicional de combustíveis fósseis” e que isso é uma questão que “precisa ser resolvida”. A questão é que o plano da VML de tornar a Shell “fortemente associada a novas fontes de energia” contrasta com a realidade dos negócios da empresa petrolífera.

A Shell Brasil disponibilizou recarga de carros em menos de 1% de seus postos no Brasil enquanto a campanha foi veiculada, nos últimos dois anos. Em março de 2025, a empresa desistiu de seus planos de energia solar e eólica onshore no Brasil.

A campanha da Shell, entretanto, é mais um indicativo do quanto as empresas do setor de petróleo e gás estão forjando uma imagem de sustentabilidade enquanto continuam lucrando com a degradação do meio ambiente. O abandono do petróleo e a redução no uso de combustíveis fósseis, em especial pelo impacto climático negativo, é um dos temas que estará em debate na COP 30, a conferência do clima da ONU, que começa na próxima semana em Belém, no Pará.

As táticas da agência VML têm suscitado preocupações entre os defensores do clima, que afirmam que as agências de publicidade e relações públicas — muitas vezes pertencentes a conglomerados do Norte Global, como a WPP, proprietária da VML, com sede em Londres, no Reino Unido — estão tornando o caminho mais difícil para os governos e sociedade civil do Sul Global que defendem a transição para longe dos combustíveis fósseis.

Os críticos dizem que as agências que criam essas campanhas ajudam os clientes do setor de petróleo e gás a se apresentarem como grandes investidores em energia limpa enquanto eles dobram a extração de combustíveis fósseis e inundam as negociações climáticas, como as que ocorrem na COP30, com lobistas.

“A VML está ajudando a transformar narrativas enganosas em crenças”, diz o geógrafo e ecologista Adriano Liziero, que administra o canal ambiental Geopanoramas no Instagram. “Isso está confundindo o público e obscurecendo os mecanismos políticos e econômicos que mantêm os combustíveis fósseis em vigor — contrariamente ao que a ciência indica.”

A agência de publicidade afirmou, no documento ao qual tivemos acesso, que a Shell gastou de US$ 5 milhões a US$ 10 milhões na campanha Caminhos do Amanhã. A história de Sophia e Sérgio, que também são um casal na vida real, foi exibida centenas de vezes durante os intervalos de novelas da TV Globo, bem como em cinemas, outdoors e redes sociais.

Nós procuramos a Shell, a VML e a WPP e questionamos sobre a campanha, a estratégia de marketing e o aumento das vendas de combustíveis. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.

Influenciadores também entraram na campanha

A Shell é a segunda maior produtora de petróleo do Brasil, atrás apenas da Petrobras, que é uma empresa estatal. Os planos de exploração combinados das duas empresas estão prestes a elevar o Brasil da sétima para a quarta posição entre os maiores produtores de petróleo e gás do mundo.

Cinco meses após lançar a nova versão da campanha Caminhos do Amanhã, em que enfatiza seu foco em energia limpa, a Shell Brasil aprovou um novo projeto offshore, em março de 2025, que produzirá 120 mil barris de petróleo por dia até 2029 e anunciou planos para outro, na Bacia de Pelotas, para 2028. A empresa também adquiriu novos blocos na Bacia de Santos em junho e começará a analisar o potencial de perfuração em breve.

Influenciadores digitais foram contratados para segunda parte da campanha, veiculada no fim de 2024. (Imagem: Shell/Reprodução das redes sociais)

Vale ressaltar que, na mais recente versão da campanha Caminhos do Amanhã, vídeos no YouTube e Instagram mostravam influenciadores brasileiros das redes sociais contando a seus filhos pequenos como a “inovação e o investimento em tecnologia” da Shell estão criando um mundo mais sustentável.

Também houve outras ações da Shell para reforçar essa ideia. Uma foi com o biólogo que se tornou influenciador Atila Iamarino, que tem mais de 1 milhão de seguidores no Instagram. Ele postou vídeos explicando tópicos técnicos sobre energia, incluindo neutralidade de carbono — quando um setor tenta compensar suas emissões desse gás do efeito estufa de modo que a quantidade de carbono produzida por ele consiga ser capturada na mesma proporção. Outros clipes mostravam os influenciadores experimentando os pontos de recarga e biocombustíveis da Shell.

Segundo a agência de publicidade contratada pela Shell, a campanha Caminhos do Amanhã tornou a empresa a mais confiável e mais associada à energia limpa no Brasil – embora a fonte de uma pesquisa de mercado citada no documento ao qual tivemos acesso não tenha sido informada. O texto, porém, não cita que o modelo de negócios da Shell continua dependendo predominantemente de combustíveis fósseis.

A Shell tem pontos de recarga elétrica em apenas 80 de seus 6.500 postos de combustível, informou a Raízen, subsidiária da Shell para postos de gasolina, ao DeSmog. O biocombustível 100% etanol da Shell, que também aparece com destaque na campanha, está disponível em menos de um em cada seis postos.

A Raízen informou ao DeSmog que a Shell suspendeu a expansão de seu programa de recarga elétrica enquanto a empresa realiza uma “revisão de portfólio”. Globalmente, 0,35% da produção de energia primária da Shell vem de fontes renováveis, de acordo com um estudo publicado este mês na revista Nature.

A Petrobras também enfrentou críticas por veicular campanhas publicitárias enganosamente ecológicas antes da COP30. A empresa contratou um grupo de influenciadores climáticos e científicos para enfatizar sua pesquisa em biocombustíveis, mesmo depois de ter obtido aprovação para iniciar a perfuração de petróleo offshore na bacia amazônica, como mostrou reportagem da Agência Pública e da DeSmog.

Publicidade verde não tem freio no Brasil

Em 2023, o órgão regulador da publicidade do Reino Unido, a Advertising Standards Authority, proibiu uma campanha publicitária da Shell, também feita pela VML, por exagerar as iniciativas de energia limpa da empresa petrolífera. 

No Brasil, ainda não há regulamentação para esse tipo de propaganda verde. Já existe, porém, um projeto de Lei tramitando no Congresso, de autoria da deputada federal deputada Talíria Petrone, do PSOL do Rio de Janeiro, que visa definir como propaganda enganosa o anúncio de práticas sustentáveis relacionadas a produto ou serviço sem a devida comprovação.

De acordo com Debora Salles, coordenadora geral de pesquisa do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, boa parte dos anúncios sobre transição energética veiculados por empresas em redes sociais no Brasil é hoje permeada de greenwashing.

Um levantamento realizado pelo NetLab analisando propagandas feitas no LinkedIn entre 2023 e 2025, publicado em outubro, mostrou que mais da metade dos anúncios (52,7%) apresentam sinais de greenwashing por usarem alegações ambientais vagas, não verificáveis ou enganosas. As empresas do setor energético lideraram o volume de anúncios com greenwashing, seguidas pelos setores de mineração e agronegócio.

“A ausência de uma regulamentação específica para publicidade verde é um problema. Na publicidade verde [no Brasil] você pode dizer qualquer coisa e não tem grandes consequências, depende de você conseguir convencer as pessoas que aquilo é verdade, mas você não precisa provar”, afirma Salles.

Regulamentar, segundo a coordenadora geral de pesquisa do NetLab, não seria proibir, mas criar parâmetros mínimos, como existem hoje para as indústrias do tabaco e farmacêutica. “A gente vê organizações da sociedade civil fazendo anúncios ou campanhas sobre questões climáticas com toda uma preocupação de referenciar, enquanto do outro lado não há essa demanda”, afirma Salles.

Pressão crescente para proibir anúncios

A indústria publicitária está cada vez mais sob pressão por seu papel em retardar as ações climáticas, pois ajuda a criar a impressão de que os principais poluidores estão apresentando alternativas viáveis ao petróleo e ao gás — mesmo que seus clientes continuem, em sua maioria, a fazer negócios como de costume.

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, pediu uma proibição global da publicidade de combustíveis fósseis e disse que os “Mad Men” que dirigem agências de publicidade e relações públicas deveriam abandonar seus clientes poluidores.

“A mensagem é de transição, mas o resultado é o fortalecimento do status quo e nos afasta de um futuro viável”, disse um ex-funcionário de uma agência de publicidade da WPP ao DeSmog que preferiu não se identificar por medo de repercussões profissionais.

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Alguns governos locais e nacionais na Europa introduziram restrições à publicidade de combustíveis fósseis, incluindo França e Espanha, mas até agora nenhum governo sul-americano seguiu o exemplo.

Enquanto isso, um movimento crescente de agências e executivos de publicidade está evitando clientes do setor de petróleo e gás. O grupo de campanha da indústria Clean Creatives afirma que mais de 1.500 agências em todo o mundo se comprometeram a não trabalhar com a indústria de combustíveis fósseis.

No entanto, elas ainda não incluem as maiores agências do setor, como a VML e sua proprietária WPP, onde alguns funcionários dizem que a tática usada em campanhas como a Caminhos do Amanhã raramente é questionada.

“Isso expressa de forma muito clara o quanto as pessoas que estão fazendo esses anúncios e exercícios de branding estão desconectadas dos resultados reais”, disse um ex-funcionário da agência de branding Landor, da WPP, que já trabalhou em projetos para a gigante do petróleo BP e também preferiu não se identificar para evitar represálias.

“Você meio que fica insensível à ideia de que isso é problemático e se acostuma com esse tipo de abordagem”, acrescentou.

Reportagem adicional de Juliana Aguilera e Alice de Souza

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