Fabio de Sa e Silva

Chacina atiça extrema direita, mas o povo não é fascista nem burro

Pesquisas de opinião são só um mapa do momento, e a esquerda precisa disputar o debate sobre segurança com argumento e ação.

Chacina atiça extrema direita, mas o povo não é fascista nem burro

A operação policial que deixou mais de 120 mortos na última semana no Rio de Janeiro teve impacto direto nas dinâmicas políticas do Brasil. Além de recolocar o governo federal na defensiva, criou oportunidade para a reorganização da extrema direita, mesmo diante de uma sequência de reveses — a condenação e iminente prisão de Jair Bolsonaro, a bem-sucedida reunião entre Lula e Trump e o avanço de pautas de interesse do governo no Congresso.

Objetivamente, a Operação Contenção exibiu marcadores evidentes de ineficiência e violação de direitos: o número de mortes superou a chacina do Carandiru e outros episódios pelos quais o Brasil já foi condenado internacionalmente, como o caso dos Jovens de Acari. Nenhuma das lideranças do Comando Vermelho previamente indicadas pela polícia do RJ foi capturada. Moradores foram aterrorizados. E a cidade parou.

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Ainda assim, pesquisas de opinião feitas nos dias seguintes mostraram forte aprovação da população à operação. Em alguns levantamentos, a aprovação era ainda maior entre os “moradores de favelas”. Em rodas de acadêmicos, analistas e ativistas, foi um barata voa só.

Alguns passaram a questionar a metodologia dos levantamentos e a forma de identificar quem é “morador de favela”. Vez ou outra iam longe demais e eram alertados a não “pagar de bolsonarista”, inventando conspirações para se proteger do desconforto com a realidade.

Legenda: RIO DE JANEIRO, RJ, 29.10.2025 - PROTESTO-RJ - Familiares dos mortos durante a Operação Contenção, que prendeu 113 criminosos e apreendeu 118 armas nos complexos do Alemão e da Penha, protestam em frente ao Palácio Guanabara, nesta quarta-feira, 29. (Foto Charles Sholl/Brazil Photo Press/Folhapress)
Familiares dos mortos durante a operação sangrenta do governo de Cláudio Castro protestaram em frente ao Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro (Foto Charles Sholl/Brazil Photo Press/Folhapress)

Outros ficaram paralisados diante de uma aparente descoberta de que o “povo é fascista” e pode ser que não haja muito a fazer. Se Manuel Bandeira estivesse na roda, talvez completasse: “apenas dançar um tango argentino”.

Toda pesquisa de opinião tem limitações. Perguntar diretamente se alguém é morador de favela pode gerar sub-representação por vergonha ou medo. E perguntas sobre a atuação da polícia tendem ao viés da resposta correta: se a polícia está “combatendo o crime”, então deve estar fazendo o que é certo.

Ainda assim, diante da restrição cotidiana de direitos pelo crime organizado, é previsível que as pessoas apoiem medidas mais duras do estado. O medo é um vetor poderoso.

Mas o ponto central é outro: esses dados não dizem nada sobre a essência das pessoas. Preferências políticas são voláteis. Mudam ao sabor do contexto, da informação, das alternativas que lhes são oferecidas.

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Por isso, não é hora de imobilização, mas sim de disputa. 

De reconhecer que violência urbana e criminalidade organizada são feridas abertas da nossa vida democrática, para as quais sucessivos governos progressistas no âmbito federal não conseguiram dar resposta. Mas de lembrar que os estados onde as facções se consolidaram foram governados historicamente pela direita e a extrema direita.

De insistir que operações violentas e episódicas em comunidades não resolvem o problema — e os próprios dados mostram isso. Na pesquisa Quaest feita em 30 e 31 de outubro, 52% dos entrevistados disseram se sentir menos seguros após a operação e 74% afirmaram temer retaliações do crime.

De lembrar que as grandes facções são produto da ação violenta do estado: no Rio de Janeiro, o Comando Vermelho nasceu da repressão da ditadura; em São Paulo, o Primeiro Comando da Capital, PCC, surgiu do massacre do Carandiru.

‘O povo sente medo e reage às soluções que lhe são apresentadas’.

De denunciar a hipocrisia de governadores que pedem mais apoio de Brasília para combater o crime, mas rejeitam mudanças constitucionais que ampliariam a responsabilidade federal sobre segurança pública. Assim como de deputados que falam em lei e ordem, mas bloquearam mudanças que ajudariam a asfixiar financeiramente o crime organizado, como o monitoramento de fintechs, comprovadamente usadas para lavar dinheiro de organizações como o PCC.

De recordar que os bolsonaristas até ontem garantiam que armar a população reduziria a violência. Não reduziu, mas permitiu que colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, os CACs, legalizassem muitos dos fuzis que hoje estão com traficantes no RJ.

O povo não é fascista nem burro. O povo sente medo e reage às soluções que lhe são apresentadas. Mas alguém precisa apresentá-las.

Se deixarmos que violência e ressentimento ocupem esse espaço sozinhos, alguém o ocupará — e não será em nome da democracia.

É hora de disputar. Disputar as ideias. Disputar as soluções. Disputar a esperança.

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