Agro fez campanha de guerra para manipular a opinião pública às vésperas da COP30

Agro fez campanha de guerra para manipular a opinião pública às vésperas da COP30

Relatório mostra como o agro brasileiro agiu para enganar a opinião pública e controlar a narrativa em torno da COP30.

Agro fez campanha de guerra para manipular a opinião pública às vésperas da COP30

Para muitos, a COP é a chance de reunir esforços para tentar salvar o planeta do colapso climático. Para outros, uma oportunidade de fazer negócios. E é dessa segunda forma que a COP30, a principal conferência do mundo sobre mudanças climáticas, que acontece no Brasil a partir do próximo dia 10 de novembro, é vista pelo agronegócio. 

O novo relatório “A agenda da carne – Excepcionalismo Agrícola e Greenwashing no Brasil”, da Fundação Changing Markets, entidade que investiga práticas corporativas irresponsáveis, ao qual o Intercept Brasil teve acesso com exclusividade, mostra que o agronegócio brasileiro trabalhou horas extras ao longo deste ano para moldar a opinião pública sobre o setor antes da COP30.

“A indústria [da carne e de laticínios] está se preparando para usar a COP30 como uma oportunidade para mostrar suas credenciais como líder climática”, diz Maddy Haughton-Boakes, assessora de campanhas sênior da Changing Markets e uma das responsáveis pelo relatório.

Entre março e outubro, segundo o levantamento, entidades que representam a indústria da carne ou as próprias empresas do setor no Brasil, entre elas a JBS e a Marfrig, intensificaram suas ações de lobby. Nesse período, realizaram, participaram ou anunciaram quase 20 eventos e atividades com o objetivo de ampliar sua influência de se apresentar como parte da solução para a crise climática.

Uma das maiores responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa no Brasil, a indústria da carne brasileira esteve em conferências do setor, fez intervenções políticas e alianças estratégicas com a mídia para alinhar o debate climático global aos seus interesses. 

“O agronegócio tem trabalhado intensamente para tentar controlar a narrativa, incluindo patrocínio corporativo de reportagens na mídia e campanhas em massa nas redes sociais”, afirma Haughton-Boakes. De acordo com ela, esses eventos realizados permitiram que a indústria ajustasse as mensagens, fizesse networking e coordenasse ações visando a COP.

Por meio deles, o agro disseminou apelos para “desbloquear” financiamento público para a transição energética e mensagens para minar as formas como o metano, a maior emissão de gases de efeito estufa do setor, é medido. 

Além disso, tentou vender soluções como “agricultura tropical sustentável”, “agricultura regenerativa” e “agricultura climaticamente inteligente” – termos que vêm sendo criticados por cientistas e ativistas por serem vagos e não levarem a uma mudança nos métodos de produção.

“O objetivo parece ser construir uma mensagem consistente e unificada de que eles já fazem parte da solução, uma tática para desviar a atenção de sua obstrução ativa”, alerta Haughton-Boakes.

Atualmente, o agronegócio responde por até três quartos das emissões de metano, um dos principais gases do efeito estufa, no país, sendo o rebanho bovino o maior causador da liberação desse gás pelo Brasil, segundo o Observatório do Clima. O país tem o segundo maior rebanho bovino do mundo e lidera as exportações de carne global. 

Para a Changing Markets, as narrativas apresentadas pelo agro ao longo do ano são frutos de um lobby que já conseguiu eliminar das metas climáticas apresentadas pelo Brasil no ano passado qualquer menção às emissões de metano pelo setor. 

A entidade afirma que o agro usará a COP30 com quatro principais objetivos: consolidar sua imagem como líderes globais “sustentáveis” e “parte da solução”, enquadrando a agricultura brasileira como crucial para os sistemas/segurança alimentar sustentáveis globais; sabotar ações reais; fazer lobby por financiamentos; moldar ativamente o debate climático global de forma a alinhá-lo com seus interesses.

“Isso corre o risco de minar o progresso genuíno em direção à redução de emissões e à transformação ecológica que os compromissos do Brasil e do mundo exigem”, alerta a fundação em seu relatório. 

A agenda do agro antes da COP30

As entidades e empresas do setor da carne plantaram, nos últimos sete meses, as sementes para construir e ganhar adesão pública à narrativa que levarão à COP.

De acordo com a Changing Markets, uma das primeiras ações do agro nessa direção foi um evento da Amcham Brasil, realizado no dia 28 de março, no qual foi apresentado o documento “Ambição Empresarial COP30”. 

Estavam presentes no evento representantes de 190 empresas, entre elas gigantes do agro, como a JBS e Cargill, e petroleiras, como a ExxonMobil. No documento apresentado, os empresários posicionam a COP30 como um momento de oportunidade para ganhos “sociais e econômicos” para o Brasil.  

Já no dia 23 de abril ocorreu o fórum “Rumo à COP30: O Agronegócio e as Mudanças Climáticas”, realizado pela Associação Brasileira do Agronegócio, a Abag, uma das principais entidades de lobby do setor. Com a presença de representantes do governo, empresas e instituições acadêmicas, o órgão definiu o posicionamento estratégico da entidade, divulgado em um relatório em agosto.

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No posicionamento, a Abag deixou claro que propõe formas de fazer o agro ter acesso a mais dinheiro, com sugestão de estratégias para “destravar o financiamento vital para o setor, explorando soluções que facilitem o acesso a recursos financeiros e impulsionem a inovação sustentável”. Embora a Abag não divulgue publicamente seus membros, a Cargill e a JBS estão entre seus associados.

O relatório cita ainda outros 17 eventos que reuniram setores do agro para discutir a COP30, como a World Agri-Tech South America Summit (Cúpula Mundial de Agrotecnologia da América do Sul, em português). Patrocinada por empresas como Bayer, Syngenta e Marfrig, além de ter tido a participação de Cargill e JBS, a cúpula explorou “tecnologias e inovações climaticamente inteligentes” e quis mostrar como a América Latina pode ser uma “força motriz nos esforços globais de resiliência climática”. 

“Nossa hora chegou. Podemos oferecer uma nova imagem do setor agrícola nas Américas”, disse Manuel Otero, diretor-geral do  Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, durante a Conferência Mundial Anual da Associação Internacional de Gestão de Alimentos e Agronegócios, que aconteceu em junho em Ribeirão Preto. 

Segundo Otero, seria a hora de “deixar para trás as velhas narrativas que certos setores insistem em apresentar, que associam a agricultura à pobreza e à poluição”.

“É um exemplo clássico da abordagem do agronegócio no Brasil. Não reconheça que você é uma grande parte do problema, mas apenas se apresenta como parte da solução. Use esse greenwashing para distrair do fato de que, nos bastidores, está fazendo lobby para enfraquecer regulamentações significativas”, afirma Eloisa Artuso, uma das pesquisadoras responsáveis pelo relatório.

Lobby do agro impacta metas do clima brasileiras

Além de querer sequestrar a narrativa e a agenda da COP30, o lobby do agro brasileiro rumo ao evento também tem uma missão específica, diz a Changing Markets: manter seu impacto nas emissões de gases do efeito estufa fora do radar dos compromissos climáticos assumidos pelo Brasil. E os esforços têm dado resultado.

A COP30 brasileira acontece uma década depois do Acordo de Paris, o tratado internacional assinado em 2015 no qual 196 países se comprometeram a estabelecer e implementar metas, chamadas de Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês), para reduzir emissões de gases de efeito estufa. A conferência deste ano é um marco, pois é quando as nações precisam apresentar novas metas, mais ambiciosas que as anteriores.

Como anfitrião da conferência, o Brasil apresentou as suas em novembro do ano passado, mas, de acordo com uma análise da Changing Markets, as metas brasileiras não apresentam sequer uma menção ao metano emitido pela agricultura. 

Além disso, segundo a ONG, muitas das medidas legislativas e políticas citadas na NDC brasileira como essenciais para reduzir emissões são excessivamente brandas quando se trata do setor agropecuário.

“Embora não possamos apontar casos diretos em que o lobby agrícola tenha influenciado a nova NDC, o que fica claro é que as fraquezas estruturais [das metas brasileiras] resultam dos esforços contínuos do lobby para minar uma regulamentação significativa do setor [do agro]”, diz a pesquisadora da Changing Markets. 

A primeira NDC do Brasil, feita após o Acordo de Paris, se comprometeu a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% até 2030. A atual estabelece uma nova meta de redução das emissões entre 59% a 67% até 2035, em comparação com os níveis de 2005. 

Um levantamento feito por pesquisadoras do Laboratório de Economia, Saúde e Poluição Ambiental, o Lespa, da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, mostrou que a pecuária brasileira emite mais do que o dobro de carbono do limite necessário para que o país possa cumprir suas novas metas.

Outro problema identificado pela Changing Markets é a ausência de uma abordagem adequada sobre as emissões de metano pelo setor.. O metano é o calcanhar de Aquiles do agro, já que pecuária e agricultura juntas são as maiores produtoras desse gás de efeito estufa no mundo. 

O metano é produzido pela fermentação de alimentos no estômago dos bois, e expelido por meio do arroto e do peido dos animais. No Brasil, a maior parcela do metano emitido em 2023 veio justamente desse processo, segundo o Observatório do Clima.

As emissões de metano da agricultura, que representam cerca de 75% de todas as emissões de metano do Brasil, estão completamente ausentes da NDC atualizada do Brasil, diz a Changing Markets. O metano, segundo a organização, é mencionado apenas duas vezes no documento. A primeira delas em relação ao setor de resíduos, e a segunda no capítulo sobre transição energética. 

“Não há nenhuma referência explícita às emissões de metano da agricultura, nem ao papel significativo das emissões do agronegócio e das empresas de carne e laticínios”, diz o relatório da ONG. 

O problema, segundo a organização, é que como o metano não é tratado como um problema do sistema alimentar ou da produção de commodities, as estratégias para redução das suas emissões não são claras. 

“A omissão total do metano agrícola é sintomática do vasto poder e influência que a indústria da carne tem no Brasil. As grandes empresas de carne do Brasil, voltadas para a exportação, sabem exatamente quais cadeias de abastecimento estariam em foco se o metano agrícola fosse citado como uma área onde seria necessário agir”, alerta Maddy Haughton-Boakes.

Como o Intercept Brasil mostrou, há um movimento do agro realizado pelo menos desde 2022 na América do Sul para orientar a posição dos governos e a tomada de decisão pública na forma de calcular as emissões de metano da pecuária. No Brasil, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, principal referência em pesquisa agropecuária no país, engajou na campanha para a adoção do novo método de cálculo do metano que o agro quer. 

Para a Changing Markets, outro problema é que as políticas e ferramentas fiscais que o Brasil pretende usar para reduzir suas emissões agrícolas estão repletas de contradições e lacunas. 

“Está bem documentado que o lobby [do agro], apoiado pela posição de poder esmagadora que detém no Congresso e no Senado, está obstruindo tudo o que considera uma ameaça à sua continuidade de ‘negócios como de costume’ ou mesmo à sua expansão. Isso inclui o Plano Clima, o Código Florestal, a Reforma Tributária e outras disposições fundamentais que são centrais para a NDC”, acrescenta Maddy Haughton-Boakes.

O poder político do agronegócio no Brasil

O relatório da entidade cita, por exemplo, que o Plano Clima – o guia do Brasil para o enfrentamento às mudanças climáticas até 2035 – vem sofrendo críticas e gerando pressão por parte do agro. A Frente Parlamentar Agropecuária, a bancada ruralista no Congresso Nacional, instou o Ministério da Agricultura e Pecuária, o Mapa, a garantir que o plano não prejudique a imagem internacional dos produtos brasileiros. 

Segundo os ruralistas, o Plano Clima traz “regras desproporcionais que mancham a imagem dos produtos brasileiros lá fora e travam negociações”.

O Brasil também apontam a reforma tributária como mecanismo para alcançar as metas climáticas. A reforma é mencionada na NDC atual como um instrumento financeiro para apoiar a transição ecológica, mas a Changing Markets ressalta que o lobby do agronegócio tem enfraquecido sistematicamente as medidas implementadas na reforma. 

Segundo a entidade, com privilégios fiscais para pesticidas, proteína animal e commodities de exportação em grande escala, a reforma consolida uma estrutura tributária que recompensa sistemas de alta emissão. Como mostrou reportagem da Sumaúma, o governo brasileiro deixa de receber R$ 158 bilhões por ano em impostos federais do agronegócio.

A entidade aponta ainda problemas no Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões, que estabeleceu o marco regulatório do mercado de carbono. Atualmente, esse sistema só pode regular cerca de 30% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil.

Diante de todos esses exemplos e da caminhada do agro rumo à COP30, o relatório da fundação alerta que o agronegócio não é apenas um setor econômico no Brasil, mas também um setor político, e que é preciso lidar com essa realidade se o país quiser, de fato, alcançar suas metas climáticas.

Isso significaria incluir planos de redução das emissões de metano na pecuária, responsabilizar as empresas pelos abusos em direitos humanos e ao meio ambiente, taxar adequadamente o setor agropecuário e também implementar medidas de regulamentação contra o greenwashing.

Caso contrário, “em vez de liderança climática, o risco é que a COP30 se transforme em uma plataforma que legitima níveis crescentes de agricultura industrial e consumo excessivo de carne. Isso ameaça não apenas as metas climáticas, mas também o futuro agrícola do Brasil”, conclui o relatório da Changing Markets.

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