O texto abaixo foi publicado originalmente na newsletter Cartas Marcadas, enviada aos assinantes na manhã de terça-feira, 4.
A chacina que deixou 117 mortos em comunidades do Rio de Janeiro na última semana foi anunciada como uma demonstração de força do estado contra o crime organizado.
Mas por trás dos corpos empilhados, há uma realidade que o poder público não enfrenta: o arsenal do Comando Vermelho não nasce nos morros, mas em fábricas legalizadas e clubes de tiro licenciados.
É a partir desse ponto cego que a nova edição de Cartas Marcadas tenta avançar, investigando os fluxos financeiros e as pegadas digitais de um homem que está preso por ser, segundo o Ministério Público, um dos principais fornecedores de armas e munições ao Comando Vermelho.
De onde vem o arsenal de armas do CV?
Presidente do Clube Americanense de Tiro e sócio de quase uma dezena de empresas em Americana, no interior de São Paulo, o ex-atirador esportivo Eduardo Bazzana, 69 anos, foi preso em maio deste ano, acusado de fornecer armamentos e munições ao Comando Vermelho.
Uma apuração da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro revelou que, entre fevereiro e março de 2023, ele movimentou cerca de R$ 1,6 milhão em transações ligadas ao comércio ilegal de armamento pesado com destino à maior facção do Rio de Janeiro.
Durante a operação que levou à prisão do empresário, os agentes encontraram 200 armas, 40 mil munições e três carros de luxo, incluindo um Cadillac de mais de R$ 2 milhões.
Eduardo Bazzana segue preso preventivamente. Mas as investigações também apontam que o filho do empresário, Phelipe Bazzana, seguiu com os negócios ilegais após a prisão do pai.
De acordo com o Ministério Público de São Paulo, o filho assumiu as atividades do grupo. Ele foi alvo de uma nova operação realizada em agosto de 2025 pelo Gaeco, em parceria com a Polícia Federal, o Exército e o Baep.
Durante as buscas, foram apreendidas 183 armas, incluindo 20 fuzis. No local, os policiais encontraram um bunker, uma sala secreta acionada por um botão sob uma mesa, com abertura eletrônica.
Até o momento, Phelipe não foi denunciado, mas continua sendo investigado, acusado de dar sequência ao mesmo esquema de fornecimento de armas e munições a criminosos no Rio.
O caminho de Americana a América
Apesar de detalhada, as investigações que correm em São Paulo e no Rio não levaram em conta um conjunto de informações públicas nos Estados Unidos que indicam que a família Bazzana mantém empresa ativa, patrimônio imobiliário e histórico de negócios no estado da Flórida.
Em janeiro de 2025, poucos meses antes da prisão de Eduardo, foi registrada em Kissimmee, na região metropolitana de Orlando, a PH Bazzana Investments LLC, com Eduardo Bazzana como administrador.


Não é o primeiro empreendimento da família nos Estados Unidos. Em 2009, Eduardo abriu a Bazzana Import and Export Corp, registrada em Winter Garden, também na Flórida, e encerrada em 2017.
Registros de Orange County, também na Flórida, vinculam o nome do empresário a um imóvel no condomínio Signature Lakes, em Winter Garden, área nobre da região de Orlando.
Esses vínculos empresariais e patrimoniais, que demonstram capacidade financeira e atuação transnacional, não aparecem nos documentos dos inquéritos conduzidos pelo MP do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Questionei o advogado da família, Rogério Dini Duarte, que confirmou que Eduardo Bazzana possui uma casa na Flórida e uma empresa ativa registrada no estado.
“Ele, de fato, tem [imóvel e empresa nos EUA], só que [essas informações] ainda não vieram aos autos [do processo judicial]. Se você soltar essa matéria no Intercept, o que que vai acontecer? Vai vir à tona esses bens, que são bens de família. Vai dar um rolo do caramba isso daí”, afirmou.
Depois de consultar familiares de Bazzana, o advogado disse: “Essa empresa foi aberta a pedido do próprio banco, serve apenas para fins de administração patrimonial”, argumentou.
Nunca falha
A ausência desses elementos na investigação oficial se soma a outro dado fora do radar judicial: as conexões políticas e ideológicas da família Bazzana. Em 2018, por exemplo, Eduardo doou R$ 510 à campanha de Aloísio Bueno, então candidato a deputado estadual pelo PSL, partido pelo qual Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República.

Em 2023, já sob investigação das autoridades, foi recebido na Câmara Municipal de Americana pelo vereador e pastor evangélico Marcos Caetano, do PL, que publicou nas redes sociais: “Recebendo em nosso gabinete a diretoria do CAT, o Eduardo Bazzana”, escreveu o político.

Após a prisão, o vereador afirmou a um jornal local que “recebe qualquer cidadão” e que não sabia das supostas atividades criminosas de Bazzana.
Uma conta do empresário no Instagram reforça seu perfil ideológico: boa parte dos perfis acompanhados pelo acusado de fornecer armas ao Comando Vermelho são páginas de apoio a Bolsonaro, Nikolas Ferreira e outros políticos e militantes de extrema direita.

A PHVB Armas, empresa da família Bazzana que, segundo a investigação, recebeu parte dos valores transferidos pelo CV, também fazia propaganda política nas redes sociais. A companhia chegou a publicar um vídeo promovendo o aplicativo “Reduto”, que se apresentava como uma plataforma para reunir “pró-armas” e fazia críticas diretas à política anti armamentista do governo Lula.

O que diz a defesa
Em contato telefônico com o Intercept, o advogado Rogério Augusto Dini Duarte afirmou que seus clientes Eduardo e Phelipe Bazzana não têm envolvimento com facções. Ele disse que as empresas da família, acusadas de receber e repassar valores a membros do CV, operam dentro da legalidade e reportam todas as transações aos órgãos competentes.
Duarte também rebateu as informações do MP de São Paulo de que o filho, Phelipe Bazzana, tenha dado continuidade às atividades do pai após a prisão. “O Phelipe é despachante de arma de fogo e trabalha com comércio legal de armamento”, disse.
O advogado também nega a ilegalidade do “bunker” encontrado em uma das lojas: seria um depósito autorizado pelo Exército para armazenar armas de forma segura, já que cofres convencionais não comportariam o volume de armas existente no acervo de Bazzana.
Em relação à atuação política e ideológica de Eduardo Bazzana, o advogado alegou que se trata de uma “questão pessoal, sem relação com o processo criminal”. Ele afirmou que o empresário “nunca expressou apoio a nenhum político, mas sempre defendeu a legalidade”.
Duarte aproveitou para criticar o atual governo federal e ministros do Supremo Tribunal Federal, o STF, como Edson Fachin e Flávio Dino.
“Se formos falar de política, temos que lembrar que quem proibiu operações nos morros do Rio foi o ministro Fachin, e isso gerou a situação atual. O Eduardo Bazana apoia a lei, não a desordem”, disse.
Por que isso importa
Um levantamento do Instituto Sou da Paz, divulgado no ano passado, ajuda a contextualizar o caso Bazzana. Desde 2016, os CACs vêm sendo cada vez mais usados como pontes para o crime organizado acessar armas e munições, tendência que explodiu no governo Bolsonaro.
O estudo mostra que 19 estados brasileiros já registraram casos semelhantes. Segundo a diretora do instituto, Carolina Ricardo, a flexibilização das regras criou “uma nova fonte de migração de armas legais para o mercado criminal”.
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