Como armas e equipamentos de Israel turbinam a repressão na América Latina

Como armas e equipamentos de Israel turbinam a repressão na América Latina

Mesmo contrários às políticas genocidas de Israel, países latino-americanos compram armas e spyware israelenses.

Como armas e equipamentos de Israel turbinam a repressão na América Latina

Enquanto a guerra israelense em seis frentes continua, com pelo menos 65.000 palestinos mortos, a maioria mulheres e crianças, a América Latina emerge como um dos principais blocos geopolíticos que se opõem publicamente à campanha de Israel. Governos em toda a região continuam a adotar medidas sem precedentes para defender o estado de Direito e princípios humanitários em um momento em que países ocidentais os estão abandonando.

A Colômbia fundou o Grupo de Haia, a Bolívia cortou relações diplomáticas, o México pediu uma intervenção contra o que chamou de “genocídio” de Israel na Faixa de Gaza, e o Brasil não só chamou seu embaixador de volta, como denunciou os massacres no Conselho de Segurança da ONU. Outros reconheceram a Palestina, impuseram sanções às autoridades israelenses e apoiaram negociações de paz. A posição pró-Palestina agora é dominante na região.

Ainda assim, enquanto os governos latino-americanos projetam uma postura ruidosa anti-Israel, muitos desses mesmos países estão aprofundando laços com a indústria de defesa e vigilância israelense, uma das mais poderosas e de mais rápido crescimento no mundo, com desempenho muito relevante em fabricação de armas, tecnologia de drones, defesa antimísseis e spyware.

E são essas mesmas armas, tecnologias e spyware israelenses que estão no centro da repressão política em toda a região, uma vez que ajudam a alimentar um ciclo permanente de violência à medida que a democracia e os direitos humanos continuam a regredir.

Na América Latina inteira, empresas israelenses entraram nas infraestruturas de segurança nacional, policiamento e vigilância, em todo o espectro político. Tanto a esquerda quanto a direita compram o que Israel está vendendo.

Na SITDEF, feira de defesa do que acontece em Lima, no Peru, Israel e suas empresas montam um grande estande todos os anos. Suas companhias costumam ser estrelas do evento, garantindo contratos de muitos milhões de dólares ao alardear sua superioridade “testada em combate”. Uma delas, a Plasan Sasa Ltd., vendeu centenas de veículos blindados da marca Plasan Guarder para as Polícias Militares do Brasil, incluindo as tropas de choque.

A Elbit Systems, maior empresa de defesa de Israel e principal fabricante de drones usados em Gaza, continua operando um laboratório de defesa e inteligência no lado mexicano da fronteira México–Estados Unidos, inclusive com isenções fiscais por estar em uma zona de “livre comércio”. O laboratório é altamente desregulado e trabalha diretamente com as Forças Armadas e agências de inteligência do México.

A Elbit também recebeu um contrato de artilharia de US$ 60 milhões das Forças Armadas do Peru em junho, sob o governo de Dina Boluarte, que não condenou Israel nem uma vez, ao contrário de todos os seus vizinhos andinos.

No Equador, veículos blindados israelenses como o MDT David estão agora implantados na “guerra interna” às facções do presidente Daniel Noboa, marcada por vítimas civis, estados de exceção e retrocessos autoritários. Noboa é aliado próximo de Netanyahu

Foram esses mesmos veículos fornecidos por Israel que foram usados para arrombar a Embaixada do México em Quito e prender o ex-vice-presidente Jorge Glas, que estava sob proteção de asilado na embaixada (violação do direito interno e internacional). A invasão levou o México a romper relações diplomáticas com o Equador.

Na Argentina, um dos primeiros atos de Javier Milei como presidente, em 2024, foi viajar a Israel, sua primeira visita ao exterior, na qual prometeu aprofundar a cooperação em defesa, inteligência e segurança. Ele se reuniu com altas lideranças políticas, religiosas e militares enquanto cogitava abertamente converter-se ao judaísmo. Milei é hoje um dos poucos aliados inequívocos que restam ao governo israelense de extrema direita.

Mesmo o governo de esquerda de Lula em Brasília, que tem sido voz importante na oposição às guerras de Israel, não está imune. A Elbit Systems venceu em 2024 uma licitação de US$ 190 milhões (equivalente a mais de 1 bilhão de reais do Ministério da Defesa para 36 caminhões blindados com metralhadoras montadas. O acordo foi adiado em meio à indignação pública sobre o papel da Elbit em Gaza, mas fontes do setor de defesa esperam que seja levado adiante quando os ânimos políticos das guerras se acalmarem.

Honduras, sob o governo considerado socialista da presidente Xiomara Castro, também vem travando uma guerra brutal, ineficaz e autoritária contra as gangues. Lá empresas israelenses têm sido fornecedoras-chave na modernização militar. Honduras é um dos poucos países no mundo que ainda mantém sua embaixada em Jerusalém, e não em Tel Aviv.

No Brasil, policiais da tropa de choque utilizando veículos blindados da Plasan Sasa têm feito incursões nas favelas. Polícias militares em todo o país — incluindo Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Santa Catarina — agora também usam fuzis de assalto Arad e rifles de precisão israelenses, incluindo armas da IWI, com contratos assinados com contratos assinados recentemente quanto o fim de 2024. 

São essas as armas usadas para matar centenas de crianças pelas mãos da polícia todos os anos. 

José Múcio, ministro da Defesa, e Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro: poder público no Brasil adquite ferramentas de espionagem de Israel

Tecnologias de Israel invadem América Latina

Uma das principais (e mais perigosas) exportações militares de Israel tem sido seu spyware. O Pegasus, do NSO Group, permite que governos copiem todos os arquivos do telefone de um alvo, ativem remotamente câmeras e microfones e colham pegadas digitais quase sem deixar rastro. Ele já foi vendido a numerosos governos autoritários, incluindo Arábia Saudita, Hungria, Índia e Emirados Árabes Unidos, para reprimir oposição, jornalistas e ativistas.

O México pagou pelo menos US$ 61 milhões (equivalente a R$325.000.000) desde 2011 para usar o Pegasus, e os militares já o empregaram para atacar jornalistas, opositores e ativistas. Em El Salvador, fontes locais alegam que o presidente Nayib Bukele usou o Pegasus contra vozes da oposição e o veículo investigativo El Faro, que desde então se realocou para o exterior. 

Na Colômbia, governos de direita teriam usado o Pegasus para vigiar jornalistas e opositores. O governo Petro abriu investigações sobre o assunto, mas nenhuma ação concreta se seguiu. Relatos sugerem que a compra de US$ 11 milhões do Pegasus pelo governo autoritário de direita de Iván Duque foi financiada pela Casa Branca.

Além do spyware, armas israelenses moldam a repressão em toda a América Latina. Em El Salvador, Bukele, que se identifica abertamente como sionista cristão apesar de sua herança palestina, importou pelo menos US$ 13 milhões em armas israelenses (com crescimento ano a ano).

Essas importações coincidiram com sua repressão autoritária via mega-presídio, que encarcerou mais de 85.000 pessoas sem o devido processo legal, conferindo a El Salvador a maior taxa de encarceramento do mundo.

A maior parte dos presos não tem acesso a advogado, julgamento ou necessidades básicas, com milhares de inocentes atrás das grades aguardando liberdade. Enquanto isso, Bukele — ou, como ele se autodenomina, o “ditador mais cool do mundo” — emprega spyware israelense contra seus opositores e segue desmontando salvaguardas democráticas.

Até a República Dominicana foi vinculada ao uso do Pegasus contra jornalistas e dissidentes.

Jornalistas investigativos de 30 veículos, incluindo The Guardian e Der Spiegel, também descobriram que empresas de tecnologia israelenses, dirigidas por ex-militares e ex-agentes de inteligência, desempenharam um papel obscuro em eleições latino-americanas, empregando bots, campanhas de desinformação e manipulação online no Equador, México e Venezuela, potencialmente ajudando a influenciar eleições.

Tudo isso toca o cerne da hipocrisia do apoio performático de governos latino-americanos à Palestina e da oposição a Israel, e indica que eles parecem mais comprometidos em manter políticas repressivas e guerras contra “criminosos” — e contra a própria democracia — do que em governar por princípios humanitários genuínos.

À medida que movimentos de extrema direita avançam no continente, alimentados por bases evangélicas, aval irrestrito ao militarismo e admiração pelo estado de segurança etnonacionalista de Netanyahu, essa contradição pode desaparecer em breve. A próxima onda de governos de direita não se dará ao trabalho do discurso anti-Israel; abraçará abertamente o militarismo israelense.

No Chile, o favorito José Antonio Kast, filho de um oficial da SS que fugiu de processos por crimes nazistas, repetidamente expressou apoio incondicional a Israel (e à ditadura de Pinochet). Sua proposta de deportação em massa de migrantes indocumentados pode facilmente abrir caminho a sistemas de vigilância da Elbit, já testados por governos europeus em campanhas anti-imigração.

Com eleições se aproximando no Equador, no Brasil, no Peru e no Chile, o futuro da democracia e das liberdades civis na região permanece perigosamente em jogo. Quanto mais Israel vende seu modelo de repressão, mais os estados latino-americanos correm o risco de importar não apenas armas, mas também a lógica autoritária que as acompanha.


Joseph Bouchard é jornalista e pesquisador especializado em segurança e geopolítica na América Latina. Seus artigos já foram publicados em Reason, The Diplomat, Responsible Statecraft, Le Devoir e RealClearPolitics, entre outros. É doutorando em Política na Universidade da Virgínia e pesquisador do Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá (SSHRC), com foco em política latino-americana.

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