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O apagão da nuvem global: como a pane da AWS expôs o colonialismo digital da Amazon 

A AWS não é apenas um serviço de hospedagem de dados; ela é o sistema circulatório do capitalismo digital.

O apagão da nuvem global: como a pane da AWS expôs o colonialismo digital da Amazon 

A queda recente da Amazon Web Services, a AWS, que paralisou parte da internet global e afetou redes sociais, plataformas financeiras e sistemas de e-commerce, revelou com brutal clareza o que até então parecia uma abstração: a dependência estrutural da vida social contemporânea em relação a um punhado de corporações que controlam a infraestrutura técnica do mundo. 

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O que à primeira vista se apresentou como uma “pane na nuvem” foi, de fato, a revelação de uma assimetria sistêmica: um tipo de poder que se exerce não apenas sobre o mercado, mas sobre as condições de existência digital. A AWS não é apenas um serviço de hospedagem de dados; ela é o sistema circulatório do capitalismo digital, a base sobre a qual repousam os fluxos de informação, consumo, vigilância e controle que definem a vida social no século 21.

Criada em 2006 pela Amazon, a AWS é a maior provedora de serviços de computação em nuvem do planeta, responsável por cerca de um terço de todo o mercado global de infraestrutura digital. Ela oferece uma imensa variedade de serviços (servidores virtuais, armazenamento de dados, redes, inteligência artificial, machine learning, bancos de dados e segurança) utilizados por governos, empresas e plataformas em quase todos os setores da economia. 

Sua lógica é a da terceirização da infraestrutura: em vez de manter servidores próprios, organizações alugam poder computacional “como serviço” da Amazon. Isso permite escalabilidade e flexibilidade, mas cria uma dependência estrutural: milhares de empresas, de bancos e universidades até aplicativos de entrega e redes sociais, repousam sobre os mesmos data centers da AWS. 

Esses data centers, concentrados em regiões estratégicas como Virgínia, Ohio, Dublin, Frankfurt e São Paulo, constituem os verdadeiros pilares físicos da internet global. Assim, quando uma única região da AWS apresenta falhas, como ocorreu na de Virgínia agora, parte significativa da economia mundial é atingida — demonstrando que o “mundo digital” não é etéreo, mas profundamente material, centralizado e vulnerável. 

A concentração dessa infraestrutura em poucas mãos (Amazon, Microsoft e Google controlam juntas mais de dois terços da nuvem mundial) materializa uma forma renovada de colonialismo: o colonialismo de dados. No passado, o domínio imperial operava pela posse de territórios e corpos; hoje, exerce-se pela posse de dados, cabos e servidores. O dado é o novo recurso primário, extraído, processado e mercantilizado com a mesma lógica de expropriação que outrora recaiu sobre o ouro, o petróleo ou o trabalho escravizado. 

O Norte global concentra a inteligência de projeto enquanto o Sul fornece os recursos.

A “nuvem”, termo etéreo, quase espiritual, é, na verdade, uma geopolítica concreta de energia, aço e algoritmos. Os imensos data centers da AWS são as novas minas da base informacional do capitalismo. Desses centros, o capital extrai e processa o valor oculto nas atividades cotidianas de bilhões de pessoas: o clique, o trajeto, a compra, a emoção. É a transformação da vida em dado e do dado em lucro. 

A dependência latino-americana desse sistema é flagrante.​ Mesmo governos e empresas que se anunciam como “autônomos” do ponto de vista digital (bancos, universidades, plataformas de e-commerce, startups) têm sua infraestrutura fundamental ancorada em servidores estrangeiros.​

Quando a AWS falha, o Brasil para. Não porque lhe falte competência técnica, mas porque a base material de sua digitalização é exógena. A autonomia nacional dissolve-se nas lógicas da terceirização global da infraestrutura. 

Assim, o “colonialismo de dados” não é uma metáfora; é uma condição material da dependência informacional: os países periféricos tornam-se consumidores de nuvem, não produtores; dependem de plataformas externas para armazenar, processar e proteger suas próprias informações. 

Essa estrutura repete, em chave tecnológica, a divisão internacional do trabalho.​ O Norte global concentra a inteligência de projeto (engenheiros, algoritmos,  patentes) enquanto o Sul fornece os recursos: energia barata, mão de obra precarizada e uma massa de dados gerada por populações conectadas, mas sem soberania.​

É o espelho digital da velha dependência: em vez de exportarmos commodities agrícolas ou minerais, exportamos comportamentos, emoções e padrões de consumo.​E, como nas antigas colônias, o excedente produzido aqui é capturado lá — onde o valor é convertido em inovação, vigilância e poder. As grandes nuvens funcionam, portanto, como máquinas extrativas do presente: transformam o cotidiano global em matéria-prima para o capital informacional, e, ao fazê-lo, reconfiguram o espaço da dominação. 

Mas o poder da AWS vai além da economia. Ele é, sobretudo, um poder infraestrutural; um poder que opera nas camadas invisíveis da sociedade, moldando o que é possível, o que é permitido e o que é pensável. Sua arquitetura técnica é também uma arquitetura política: decide onde os dados vivem, como circulam, quem pode acessá-los e sob quais condições. 

Essa governança invisível é a forma contemporânea de um poder que regula a vida, não mais pela coerção direta, mas pela administração de fluxos. A AWS, nesse sentido, é uma máquina de governo planetário — um dispositivo que define os ritmos e as possibilidades da existência digital. 

Quando essa máquina falha, como vimos agora, o mundo descobre sua própria vulnerabilidade. O colapso temporário de uma região de servidores na Virgínia bastou para derrubar redes sociais, interromper sistemas de pagamento, travar jogos e bloquear aplicativos de comunicação. Foi como um apagão elétrico global: não de luz, mas de informação. 

Quem controla a infraestrutura controla o mundo.

A vida social tornou-se contingente à estabilidade de uma empresa privada localizada em outro continente. Essa é a imagem mais clara da alienação algorítmica: a humanidade, hiperconectada e tecnicamente sofisticada, depende de um único nó de rede que, ao cair, revela o abismo da nossa impotência coletiva. 

O episódio da AWS é, portanto, mais que um acidente técnico: é uma alegoria do nosso tempo. Mostra que o capitalismo contemporâneo, ao mesmo tempo em que promete descentralização e liberdade, produz uma concentração sem precedentes. 

Promete autonomia, mas entrega servidão técnica. Promete conectividade, mas cria vulnerabilidade. Promete o “mundo aberto da informação”, mas fecha o espaço social dentro de infraestruturas privadas. 

O sonho “libertário” da internet (comunal, horizontal, autônoma) foi colonizado pela lógica corporativa da nuvem. Essa colonização se sustenta em três pilares: a opacidade, o monopólio e a dependência. A opacidade se manifesta na invisibilidade da infraestrutura, Ninguém vê a AWS, apenas sente seus efeitos. O monopólio se traduz na concentração de poder técnico e econômico em poucas corporações que definem os padrões de interoperabilidade e segurança. E a dependência é o resultado inevitável: estados, empresas e cidadãos tornam-se reféns de um sistema cujo funcionamento lhes é inacessível. 

A questão, então, não é apenas tecnológica, mas política e filosófica:​ quem controla a infraestrutura controla o mundo. A soberania do século 21 não se mede mais apenas em território ou exército, mas também em nuvens e cabos. Os impérios contemporâneos não precisam de colônias geográficas; bastam-lhes colônias de dados – territórios informacionais de onde extraem, em silêncio, o valor vital do planeta digital. 

O desafio para as sociedades periféricas, e em especial para a América Latina, é conceber um projeto de descolonização digital. Isso significa pensar em infraestrutura como bem comum, não como serviço mercantil; significa questionar a naturalização da dependência tecnológica e reivindicar a construção de sistemas públicos e autogestionários de armazenamento, processamento e soberania de dados. 

Significa, sobretudo, compreender que a técnica é também campo de luta e que a emancipação social do século 21 passará necessariamente pela emancipação infraestrutural. 

A pane da AWS foi uma janela, uma fenda momentânea na maquinaria global.​Por ela, pudemos ver, por um breve instante, a face oculta do capitalismo digital: um sistema que se sustenta sobre a captura da vida e a precariedade da interdependência.​

Mas também pudemos entrever, nesse colapso, a urgência de um outro horizonte: o de uma infraestrutura comum, aberta, governada coletivamente de forma autorganizada.​ 

Um mundo em que a nuvem não pertença a ninguém, porque pertence a todos.​ Um mundo onde a técnica, liberta da lógica da acumulação, possa finalmente servir à liberdade humana e não o contrário.

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