Donald Trump quer guerra na América Latina

América Latina precisa se preparar: Trump quer guerra

Os EUA avançam com os ataques a barcos no Caribe, e Trump mostra que quer intimidar América Latina pela força.

Donald Trump quer guerra na América Latina

Em 16 de outubro, um aviso incomum foi transmitido pelas ondas de rádio em Trinidad. “Pescadores estão sendo alertados para reduzirem a velocidade e ficarem perto da costa, com medo de serem bombardeados pelos militares dos Estados Unidos”, começou o âncora da rede CNC3, “que continuam suas operações antinarcóticos no Mar do Caribe”. Dois pescadores de Trinidad, Chad Joseph e Richie Samaroo, haviam sido mortos em um ataque aéreo da Marinha dos EUA, que atingiu seu barco quando iam da Venezuela para Trindad, uma curta viagem de 10 km que Joseph havia mencionado para sua família.

O presidente dos EUA, Donald Trump, afirmou que o barco era uma “embarcação vinculada a uma organização terrorista designada”, sem mencionar o cartel de drogas a que estariam vinculados, e que “a inteligência confirmou que a embarcação estava traficando narcóticos”, em uma conhecida “rota de organizações terroristas”.

O assassinato de cidadãos de um país aliado, no quintal dos EUA, em um ataque aéreo estadunidense direcionado, já seria notícia por si só. Mas foi apenas uma gota no oceano de uma guerra que está sendo construída no sul do Caribe, de forma ao mesmo tempo ostensiva e preocupantemente oculta.

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No momento da escrita deste texto, oito navios de guerra americanos, tripulados por mais de 4.500 fuzileiros navais e marinheiros, foram estacionados bem no limite das águas venezuelanas. O New York Times já identificou o movimento de cruzadores de mísseis teleguiados perto da costa da Venezuela, além de drones Reaper posicionados nas proximidades de Porto Rico, ao lado de vários caças furtivos.

Na quarta-feira, Pete Hegseth, secretário de Guerra, confirmou na rede X que os militares escalaram a campanha com a realização de uma ataque letal a uma embarcação no Oceano Pacífico pela primeira vez, perto das águas colombianas, poucos dias depois de Trump acusar o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, de ser um “traficante de drogas”, porque Petro criticou a campanha dos EUA no Caribe. 

Alguns dos navios identificados pela CNN, como o USS Sant Antonio e o USS Gravely, ganharam experiência combatendo o movimento dos houthis no Iêmen, tentando romper seu bloqueio no Mar Vermelho contra os navios de carga com destino a Israel. Agora, esses recursos militares estadunidenses foram transferidos para o Caribe, para lidar com o próximo inimigo dos EUA.

O alvo é claro: Nicolás Maduro, presidente da República Bolivariana da Venezuela. Mas o governo dos Estados Unidos não diz isso, pelo menos, abertamente.

Desde o começo de setembros, os militares dos EUA começaram a atacar supostos “barcos de drogas” no Caribe, executando extrajudicialmente os acusados de tráfico, após declarar uma série de cartéis de drogas como organizações terroristas, lado a lado com o Estado Islâmico. O tráfico de drogas não é um crime com pena de morte nos EUA, mas ao classificá-los como terroristas e alegar, segundo Trump, que “25 mil pessoas” estariam sendo salvas a cada barco afundado, tudo poderia ser justificado.

Isso se tornou ainda mais relevante com a declaração de que os Estados Unidos estão em um “conflito armado não internacional” com os cartéis de drogas, a mesma declaração que foi dada em relação à guerra no Afeganistão; e os membros dos cartéis foram classificados como “combatentes ilegais“, a mesma classificação dada aos da Al Qaeda.

O nome de Maduro, e a acusação espúria de que ele seria um chefão das drogas, foram mencionados pelo Departamento de Justiça (que se juntou ao Departamento de Estado para colocar uma recompensa de 50 milhões de dólares, ou 270 milhões de reais, por sua cabeça). A Venezuela está na boca do presidente sempre que responde perguntas, e ele chegou a dizer abertamente que havia autorizado a ação secreta da CIA na Venezuela, e possivelmente até ataques terrestres dentro do país.

Mas as notícias sobre o clima de guerra em potencial com a Venezuela ficaram em segundo plano diante das notícias dos ataques esporádicos contra os barcos no Caribe, que se tornaram tão comuns nos últimos dois meses que mal são registrados. Ainda são surpreendentes, claro, mas estão a caminho de se tornarem tão irrelevantes quando os ataques individuais no Iêmen no começo do ano; e suas implicações jurídicas, tão desimportantes quanto os ataques na década de 2010 que mataram jovens cidadãos dos EUA sob a a justificativa de que seriam filhos de terroristas, e por isso era permitido derramar seu sangue.

Os veículos de imprensa tradicionais estão cobrindo os ataques e a enorme concentração militar perto da fronteira da Venezuela. Mas a gravidade da situação, com a dubiedade das acusações levantadas e a possibilidade de uma grande invasão ao país com as maiores reservas de petróleo do mundo, não parece estar sendo sentida, principalmente pelo governo que está no comando.

A principal etapa da preparação para a Guerra do Iraque foi um processo que levou mais de um ano, com autorizações de uso da força no Congresso dos EUA, discursos na ONU, e extensa higienização de dados falsos de inteligência por inúmeras organizações de mídia nos mais altos níveis, com matérias sobre vazamentos, delatores, armas de destruição em massa e uma crescente ameaça em Bagdá, não apenas contra o Kuwait, mas contra o mundo inteiro. Os principais veículos de notícias mostraram cronômetros de contagem regressiva para a invasão, e colocaram o Iraque inteiro na mira de seus infográficos. Enormes protestos com milhões de pessoas antecederam a invasão, tentando em vão deter sua marcha, mas ainda mostrando em grande escala que a oposição à guerra não aceitaria calada. Em contrapartida, uma possível invasão à Venezuela está sendo tratada como uma conclusão praticamente inevitável.

A Venezuela vem sendo demonizada pela imprensa há anos, e se tornou um dos vilões favoritos dos filmes de suspense político nos EUA, despertando o interesse das pessoas sempre que protestos contra o governo abalam o país. Mas a Venezuela não ameaça militarmente os interesses dos EUA, não tem programa de mísseis balísticos que possa atingir o centro dos EUA, e não tem um programa de armas de destruição em massa, e nem sequer acusações de tê-lo. Praticamente não há delatores, nenhuma alegação de ameaça global, nem sanitização de informações de inteligência. Mas a narrativa está inscrita na pedra desde o começo – e sem uma forte oposição a ela, não houve necessidade de justificativas.

‘Uma possível invasão à Venezuela está sendo tratada como uma conclusão praticamente inevitável.’

Maduro e seu governo foram classificados retroativamente como terroristas: uma imensidade de cartéis de droga foram classificados como organizações terroristas, os EUA traçaram ligações entre esses cartéis e o estado venezuelano, e Maduro foi então designado como chefe de cartel. Ao chamá-los de terroristas, a forma mais violenta de carnificina pode ser empregada contra a Venezuela e seu povo, e inversamente, não é preciso prestar muita atenção a isso, porque atacar “terroristas” se tornou banal, tanto para o governo dos EUA, quanto para a imprensa.

Já sabemos que uma potencial invasão da Venezuela seria um desastre. Estimativas de 2019 previam que seriam necessários até 200 mil soldados dos EUA para manter a ordem, sem falar no terreno montanhoso que eles precisariam atravessar, e na insurgência assustadora que faria o Iraque parecer um passeio no parque.

Mas os possíveis riscos de uma intervenção já não são mais uma questão para o governo, e a construção de estados, a estabilização e a produção de uma democracia funcional já não são prioridade declaradas, como foram para presidentes anteriores. A doutrina militar de Trump se concentra exclusivamente na morte, na destruição, no terror e na desestabilização como objetivos –– sem preocupação com as consequências, indiferente às justificativas, e desesperada para criar estados fracassados onde havia estados funcionais. Essa atitude arrogante em relação ao futuro pode ser percebida nas declarações públicas de autoridades do governo. Um assessor não identificado chegou a dizer ao site Axios que “deixar Maduro no poder na Venezuela é como colocar Jeffrey Epstein como diretor de uma creche”.

A guerra no exterior por razões absurdas existe desde tempos imemoriais, mas a era da guerra justificada –– uma guerra que o governo leva tempo justificando para a população, independentemente de se basear em verdades ou mentiras –– está chegando ao fim. Joe Biden justificou para a população o bombardeio no Iêmen dizendo que era preciso proteger o “prazo de envio dos produtos”. Trump justifica o bombardeio da Venezuela dizendo que “300 milhões de pessoas morreram de overdose de drogas no ano passado”, um número que ninguém acha possível, mas que dá na mesma, uma afirmação descaradamente falsa que não incomoda mais a ninguém.

Um repórter perguntou a Trump em 15 de outubro se a CIA será autorizada a “remover” Maduro, e o presidente dos EUA deu uma resposta que resumiu involuntariamente o absurdo da guerra a que o país está sendo lentamente conduzido: “é uma pergunta ridícula. Não é realmente uma pergunta ridícula, mas não seria uma pergunta ridícula para eu responder?”

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