'Frouxos não são bem-vindos': como é a rotina de trabalho na G4 Educação

Cultura do medo

'Frouxos não são bem-vindos': como é a rotina de trabalho na G4 Educação


Há cerca de um mês, o empresário Tallis Gomes, conhecido pela frase  “Deus me livre de mulher CEO”, voltou aos holofotes nacionais. Ao lado do deputado federal Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, o fundador da G4 Educação impulsionou a campanha “demita extremistas”, uma caça às bruxas contra aqueles que, em sua visão, “celebraram” a morte do extremista estadunidense Charlie Kirk. 

A retórica intimidatória, no entanto, não está restrita ao discurso nas redes sociais, e afeta diretamente os funcionários de sua empresa, de acordo com depoimentos cohidos pelo Intercept Brasil e informações de processos judiciais obtidos na Justiça do Trabalho.

Fundada em 2019, a G4 é uma empresa que vende cursos para empresários brasileiros. No dia 26 de setembro deste ano, atingiu a marca de R$ 1 bilhão em faturamento acumulado. Neste dia, Tallis, um dos fundadores da G4, convocou uma reunião com todos os funcionários  para anunciar o resultado. “R$ 1 bilhão de reais faturados na história da companhia”, celebrou, com um largo sorriso no rosto, e logo foi interrompido por aplausos e buzinas. 

Durante o anúncio, ele também aproveitou a oportunidade para reafirmar sua posição na cruzada que trava contra a ideia de Estado. “O Estado gera dinheiro? Não, né. O Estado consome o dinheiro que vocês geram aqui trabalhando, e que eu gero dando emprego para vocês. A gente tem que lembrar sempre que tem um inimigo, que é o Estado, os oligarcas que vivem do nosso sustento. Então, o G4 só existe por causa do trabalho de vocês.”

O que Tallis não disse é que alguns dos profissionais responsáveis por gerar o primeiro bilhão da companhia dizem ter feito isso em meio a intimidações, jornadas extenuantes e até mesmo a situações humilhantes.

G4 Valley: ápice do sofrimento

No fim do ano passado, a G4 se preparava para um de seus principais eventos do ano, o G4 Valley, definido pela própria empresa como “uma experiência de três dias imersos com alguns dos maiores empresários do Brasil para te mostrar como gerar riqueza e prosperar de verdade.” O evento ocorreu entre os dias 22 e 24 de novembro – de sexta a domingo – na São Paulo Expo, um centro de eventos localizado na zona sul da capital paulista. 

O G4 Valley é também um dos períodos em que os profissionais mais são exigidos. O Intercept Brasil conversou com uma ex-funcionária que fez, por conta própria, o controle das horas na semana em que o evento ocorreu. Ela conta que trabalhou, entre os dias 18 e 23 de novembro, exatas 77 horas e 47 minutos.

Meses antes, Tallis foi alvo de denúncias apresentadas ao Ministério Público do Trabalho de São Paulo justamente por enaltecer uma jornada semanal de 80 horas. “Se você não fizer 70 horas ou 80 horas por semana na empresa, você não vira nada na vida”, disse, em entrevista ao podcast Café com Ferri. 

Às vésperas do evento, alguns trabalhadores da empresa alegaram dificuldade de comparecimento por conta de problemas pessoais. Segundo o relato de uma ex-funcionária, havia casos de pessoas que precisavam cuidar de familiares doentes naquele final de semana.

A resposta veio no dia 14 de novembro, quando Tallis convocou uma “all-hands” – como são chamadas internamente as reuniões que envolvem toda a equipe. O recado foi claro: todos tinham que trabalhar no evento, independentemente de problemas ou compromissos pessoais. 

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Segundo o relato de um processo trabalhista movido contra a G4 que corre no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, o TRT 2, nesta reunião, Tallis ainda afirmou que na empresa não havia espaço para “frouxos”, que os trabalhadores deveriam “esquecer” suas famílias, e disse que quem não estivesse de acordo poderia pedir demissão. A autora do processo pediu demissão neste dia. Procurada, ela não retornou o contato da reportagem.

O relato que consta nos autos foi corroborado por outros dois ex-funcionários que conversaram com o Intercept Brasil, sob condição de anonimato. 

“Frouxos não são bem-vindos”, diz inscrição em sala aquário onde trabalhadores são demitidos

Os pedidos de demissão tinham de ser direcionados para a “Sala 4”, uma sala aquário, usada inicialmente para conversas rápidas e reservadas, e que se tornou o local onde os pedidos de desligamento deveriam ser feitos. Depois do discurso inflamado da estrela da companhia, a parte externa do vidro foi “decorada” com a seguinte frase: “frouxos não são bem-vindos.”

A reportagem conversou com quatro ex-funcionários da empresa, que trabalharam na G4 em diferentes períodos. Eles foram unânimes ao afirmar que os profissionais que não faziam hora extra eram desvalorizados por quem ocupava cargo de chefia. 

O relato de outra ação trabalhista, que também corre no TRT 2, afirma que o aborrecimento dos chefes com a questão da jornada de trabalho era explícito e, por vezes, resultava em situações vexatórias. “Se alguém cumprisse seu horário de trabalho de 8h diárias, ao levantarem, os gestores batiam palmas”, diz um trecho do processo aberto em abril deste ano. Ainda de acordo com o documento, os profissionais da empresa também eram submetidos a castigos físicos. “Se [os funcionários] chegassem minutos atrasados, tinham que fazer flexão de braço em meio a Reclamada [G4 Educação].”

Se os funcionários chegassem minutos atrasados, tinham que fazer flexão de braço

Mesmo quem desejasse sair da empresa não tinha vida fácil. O Intercept teve acesso a um vídeo de uma outra reunião “all-hands”, que ocorreu no dia 7 de março de 2024. Neste dia, segundo uma das pessoas presentes, Tallis estava bastante irritado com um ex-funcionário da empresa que tentava contratar funcionários empregados na G4. Em tom ameaçador, ele afirmou que usaria de sua influência para barrar esse tipo de contratação.

“A mentalidade que vocês tem que ter é de entender que o mercado é muito curto, galera. ‘Ah, mas São Paulo é grande pra caralho.’ É porra nenhuma, todo mundo se conhece aqui. A galera que importa mesmo, todo mundo se conhece, vai para o mesmos restaurantes. Então, pensem nisso quando vocês forem sair de qualquer empresa”, diz Tallis.

“Vocês querem sair com as portas abertas, ou com as portas fechadas? Então, cuidado com as suas ações, pô. ‘Ah, então eu vou sair do G4 e vou tentar recrutar quem é do G4 pra levar pra outra empresa.’ Você é muito burro, porque aí eu vou ligar pro cara e vou falar: ‘mano, se você contratar os caras, acabou. Você não vai ter relação com a gente’”, conclui o empresário.

Em nota enviada ao Intercept, Tallis alega que o uso da expressão “sair com as portas fechadas” se aplica apenas a casos de justa causa envolvendo fraude, assédio ou violação ética, negando qualquer retaliação a ex-funcionários.

‘Retórica é vinculada à ideia da força’

Sávio Cavalcante, professor de sociologia da Unicamp que há anos pesquisa o comportamento político do empresariado brasileiro, entende que o discurso intimidatório de Tallis — tanto no ambiente de trabalho quanto diante da plateia que o acompanha nas redes sociais — é parte de uma persona construída pelo diretor-executivo da G4 Educação.

“A retórica dele é totalmente vinculada à ideia da força. Me parece um sintoma muito particular do mundo empresarial da atualidade, em que você tem que vender, além de um produto, uma imagem. Talvez traga, sim, um maior comprometimento dos funcionários, mas, mesmo que isso não aconteça, a retórica vai resultar na construção de um tipo de imagem que, talvez, seja o mais decisivo para o mundo que ele circula”, diz Cavalcante. 

Após a participação de Tallis no podcast Café com Ferri, em junho de 2024, a G4 foi alvo de uma enxurrada de denúncias apresentadas ao Ministério Público do Trabalho de São Paulo. Além da fala sobre a jornada de 80 horas semanais, ele afirmou não contratar “esquerdistas” e disse que “levou a igreja para dentro da empresa.” 

As denúncias resultaram na abertura de três inquéritos. Um deles ainda está em aberto. Os outros dois foram convertidos em um Termo de Ajustamento de Conduta, um acordo entre a empresa e o Ministério Público. 

Para firmar o acordo e encerrar parte das investigações, a G4 teve de desembolsar R$ 200 mil como pagamento indenizatório. Além disso, a empresa se comprometeu a fazer uma série de ajustes para adequar a jornada de trabalho de seus funcionários. 

O acordo foi firmado no dia 29 de novembro de 2024 e prevê que as mudanças deveriam ser implementadas imediatamente. Mas nem todos os pontos desse acordo foram plenamente cumpridos, de acordo com depoimentos de trabalhadores que continuaram na empresa após a assinatura do TAC.

Entre outras diretrizes, o acordo estipula que a empresa passe a controlar o horário de entrada e saída dos funcionários – o que não ocorria antes – e estabeleça um limite de duas horas extras diárias. 

Funcionária: jornadas extenuantes continuam

Valendo-se de uma brecha aberta após a aprovação da MP da Liberdade Econômica, elaborada em 2019 pelo governo Jair Bolsonaro, a G4 implementou o controle de ponto por exceção. Ou seja, os trabalhadores deveriam marcar apenas horas extras, não os horários de entrada e saída, de acordo com um profissional que trabalhou na empresa em 2025. O texto da lei alterou o artigo 74 da CLT, de forma a permitir esse tipo de controle.

Apesar de a G4 ter se comprometido a realizar “o fidedigno controle da jornada de trabalho”, o ex-funcionário da empresa afirmou que os trabalhadores que marcavam as horas extras eram “mal vistos” pelos seus chefes.

Uma outra profissional afirmou que, mesmo após a assinatura do TAC, as jornadas extenuantes continuaram a ocorrer, sobretudo entre os trabalhadores do setor de eventos. Ainda de acordo com esse relato, os gestores da empresa alegaram que os trabalhadores dessa área não poderiam realizar o controle de horas, porque trabalhavam, na maior parte do tempo, fora do escritório. 

A advogada trabalhista Isabel Tormes explica que a legislação define como regra a anotação da jornada, mesmo que exercida em ambiente externo. No entanto, prevê a possibilidade de exceções: “De forma excepcional é possível que a atividade exercida externamente não possibilite, efetivamente, a utilização de qualquer sistema de controle de jornada. Logo, nessa situação não é obrigatório o controle de jornada.” Tormes, no entanto, afirma que a falta de controle não pode ser implementada de maneira rotineira. 

Outro lado: o que diz a G4 Educação

Em nota, a G4 afirma ter uma cultura baseada em meritocracia, alto desempenho e colaboração, e credita a seus programas a criação de mais de 756 mil empregos no país. A empresa diz que o ambiente valoriza responsabilidade individual e resultados, não “narrativas vazias”.

A G4 afirma ainda que cumpre integralmente o TAC firmado com o Ministério Público do Trabalho em novembro de 2024, com adoção de ponto eletrônico também no setor de eventos e limite diário de duas horas extras, corrigindo “falhas pontuais” quando detectadas. Por fim, diz manter diálogo com o MPT e reafirma compromisso com conformidade e ambiente de alta performance. Clique aqui para ler a íntegra do posicionamento.

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