Lobby armamentista usa a justiça para intimidar jornalistas e críticos, diz estudo

Em Nome da Liberdade

Lobby armamentista usa a justiça para intimidar jornalistas e críticos, diz estudo

Cartas Marcadas

Parte 17

Cartas Marcadas é uma newsletter semanal que investiga a ascensão da extrema direita, as ameaças à democracia e os bastidores do poder em Brasília.


Em julho, o deputado federal Marcos Pollon, do PL de Mato Grosso do Sul, apresentou uma proposta de emenda à Constituição para transformar a liberdade de expressão em um direito absoluto — sem limites, sem responsabilidades, sem consequências.

Pollon é o mesmo que responde no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados por participar do motim bolsonarista que tentou paralisar o Congresso após a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal.

A reportagem desta semana, assinada pelo repórter Thalys Alcântara, se debruça sobre uma das mais evidentes contradições da extrema direita brasileira, que se diz defensora da liberdade de expressão, mas não perde a oportunidade de usar a Justiça para silenciar seus críticos.

O fato é que, em um país onde decisões judiciais ainda censuram reportagens — como aconteceu com uma edição de Cartas Marcadas, retirada do ar por ordem de um juiz de Santa Catarina —, a retórica da liberdade aparece justamente na boca de quem tenta sufocá-la.

Vamos aos fatos.

Liberdade de expressão pero no mucho

Uma das principais entidades do lobby armamentista no Brasil vem usando o sistema de justiça para intimidar jornalistas e organizações da sociedade civil, na tentativa de silenciar críticas. É o que demonstra um levantamento inédito da Rede Liberdade, que atua em casos de violação de direitos e liberdades individuais.

Nos últimos cinco anos, a Associação Nacional Movimento Proarmas abriu 27 ações no judiciário contra jornalistas e entidades que fizeram algum tipo de publicação crítica à organização – o equivalente a uma média de um processo judicial a cada dois meses. Só em 2021 foram 20 processos contra veículos da imprensa.

O Proarmas foi criado por Marcos Pollon inspirado na organização estadunidense National Rifle Association, a Associação Nacional do Rifle, que utiliza o mesmo lema da entidade brasileira: “não é sobre armas, é sobre liberdade”.

Para defender a possibilidade de proliferação de fuzis no país, a entidade usa o eufemismo de que luta pela “restauração do direito fundamental de permanecer vivo por meio do acesso à legítima defesa”.

Uma das autoras do levantamento sobre a controversa estratégia judicial do Proarmas, a advogada Amarílis Costa, diretora executiva da Rede Liberdade, diz que a entidade instrumentaliza o Poder Judiciário como uma arena política.

“Esse tipo de ação temática tem uma finalidade envolta na intimidação da imprensa, na corrosão da esfera pública, e principalmente na criação de uma atmosfera predatória em relação à Justiça”, diz.

A maior parte dos processos abertos pelo Proarmas são por “obrigação de fazer” e “danos morais” de matérias jornalísticas, geralmente por publicações que relacionam entidade com o aumento de circulação de armas ilegais.

A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, diz que as ações judiciais da entidade ligada a Pollon são uma tentativa de intimidar a sociedade civil e a imprensa que publica pautas críticas sobre armas e CACs, que é a categoria de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores.

“Isso demonstra um jogo muito pesado e antidemocrático – a gente viu lá atrás o dono da Havan e a própria Universal – essa é uma estratégia para você calar a voz de jornalistas e organizações que se opõem”, afirma Ricardo.

A entidade abandonou 14 processos e, em alguns casos, não respondeu a pedidos do judiciário essenciais para que as ações fossem adiante, como a apresentação da ficha com os nomes dos seus alegados 3 mil membros.

Além disso, o estudo da Rede Liberdade aponta que costuma ocorrer uma fixação indevida do valor da causa. Apesar de a associação ter pedido indenizações que chegam a R$ 3 milhões, o Proarmas costuma registrar o valor da causa em apenas R$ 10 mil, o que evita o risco de um pagamento proporcional de custas processuais ao final da ação.

“A gente tem atuado muito firmemente no Ministério da Justiça no sentido do mapeamento dessas violências e na construção de uma espécie de rol dos assediadores judiciais. Queremos entender os padrões do assédio judicial direcionado a jornalistas e profissionais de comunicação, e coibir isso”, defende Amarílis Costa, que integra o Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais, na Secretaria Nacional de Justiça.

Carolina Ricardo, do Sou da Paz, lembra que Pollon não só defende a pauta armamentista, como se destacou no Congresso Nacional na defesa de pautas anti-democráticas.

“É um deputado que joga muito com o bolsonarismo e com uma lógica golpista muito forte. O que nos leva a esse lugar de: bom, se é só sobre o cidadão de bem que quer ter armas, preocupa esse jeito tão desequilibrado. A gente não sabe se amanhã, essa turma não sairá por aí para defender um golpe ou qualquer coisa assim”, analisa.

Entrei em contato com o deputado Marcos Pollon, que informou que hoje é apenas apoiador da associação. “Não respondo mais pela associação desde as eleições de 2022”, escreveu em mensagem. Questionei sobre a maior parte dos processos serem da época de sua gestão no Proarmas, mas não houve retorno até a publicação da matéria.

Já o Proarmas defendeu que os processos são para “combater informações falsas e distorcidas decorrentes do viés desarmamentista e por vezes até preconceituoso”.

Como funciona a estratégia do Proarmas

  1. O alvo é escolhido
  • A entidade identifica jornalistas, veículos e organizações que publicam críticas ao lobby armamentista.
  • Os alvos incluem matérias sobre armas ilegais, CACs ou vínculos políticos de Pollon.
  • Segundo o estudo, o objetivo não é vencer juridicamente — é intimidar e desestimular novas publicações.

2. Processos são abertos em massa

  • Entre 2019 e 2024, o Proarmas moveu 27 ações judiciais — média de um a cada dois meses.
  • A tática repete o padrão de assédio judicial visto em grupos bolsonaristas e religiosos, de acordo com a Rede Liberdade.

3. Predominam ações de:

  • “Obrigação de fazer” — exigindo retratações públicas.
  • “Danos morais” — pedindo indenizações vultosas.
  • Segundo o estudo, cada processo serve como peça de intimidação, não como busca de reparação real.

4. Manobra para ações em série

  • Apesar de pedir indenizações de até R$ 3 milhões, o Proarmas declara valor simbólico de R$ 10 mil.
  • Isso reduz as custas processuais e o risco financeiro da derrota.
  • A manobra permite disparar ações em série, mesmo com poucos recursos.

5. Os processos são abandonados

  • Após o impacto inicial da notificação judicial, a entidade abandona parte dos processos.
  • Segundo a Rede Liberdade, 14 ações foram simplesmente deixadas de lado.
  • Em diversos casos, o Proarmas ignora ordens do juiz, como apresentar sua lista de associados (3 mil membros alegados).
  • A omissão impede o avanço do processo, mas mantém o efeito psicológico e financeiro sobre o alvo.

6. Quais as consequências?

  • A tática gera gasto, medo e desgaste para quem é processado — e visibilidade política para o grupo.
  • Criminaliza a crítica sem precisar de censura formal.
  • Cria um ambiente de autocensura e desincentivo à cobertura crítica.
  • Estabelece a mensagem de que quem criticar será processado.

Leia as últimas edições de Cartas Marcadas.

Como você já sabe, a nossa newsletter não se intimida com esse tipo de estratégia. Já fomos alvo de censura judicial — uma de nossas edições chegou a ser retirada do ar por ordem de um juiz de Santa Catarina —, mas seguimos fazendo o que precisa ser feito: investigar e publicar o que poderosos querem esconder.

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