A condenação de golpistas no Supremo Tribunal Federal é uma vantagem do Brasil, quando se compara com outros países impactados por presidentes que atacaram a democracia, como Jair Bolsonaro.
Em países como Turquia, Polônia, Hungria e Estados Unidos, mudanças institucionais no Judiciário abriram caminho para a consolidação de líderes conservadores e antidemocráticos, sem freios eficazes ao avanço autoritário.
A doutora em Direito pela Universidade de Brasília, UnB, Ingrid Dantas, se debruçou no cenário internacional do combate ao golpismo em seu livro “Redesenhos Constitucionais do STF: design institucional para um Supremo entre a resistência democrática e a politização judicial”. A obra será lançada em outubro pela editora Lumen Juris.
“Esse panorama serve como alerta claro para o Brasil. Não se trata de risco abstrato, mas de práticas concretas que, quando implementadas, corroem em pouco tempo a independência judicial”, alerta Ingrid.
Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump garantiu maioria na Suprema Corte para permanecer elegível, depois que o Partido Republicano aumentou sua presença no tribunal. Na Hungria, o partido Fidesz, do primeiro-ministro Viktor Orbán, reduziu a idade para aposentadoria compulsória de juízes e nomeou novos magistrados alinhados com seu governo.
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Bolsonaro defende medidas na mesma linha para capturar o Supremo Tribunal Federal no Brasil e, segundo Dantas, esse risco continua. A possibilidade de aumento da bancada da extrema direita no Senado, nesse sentido, é uma preocupação, já que o órgão autoriza indicações ao STF e pode até votar o impeachment de ministros.
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Intercept Brasil: Como a senhora vê o futuro da democracia brasileira após o julgamento de Bolsonaro e seus aliados no STF? É possível comemorar?
Ingrid Dantas – Confesso ser uma otimista-realista. A esperança de um futuro melhor sempre permanece como horizonte possível, mas não me iludo quanto à dureza dos desafios que ainda se impõem.
A decisão do STF representa um marco de alta relevância histórica. Inaugura, enfim, um processo de responsabilização de um passado autocrático que, até o dia 11 de setembro de 2025, atravessava impune o presente. É também um aviso dirigido ao futuro, afirmando que o Judiciário não será cúmplice de incursões golpistas.
Mas, como lembrou o professor Tom Daly, da Universidade de Melbourne, em recente newsletter do projeto global Demoptimism, o bolsonarismo não se encerra neste julgamento. Ao contrário, ele se reinscreve em redes transnacionais que articulam forças políticas de feição antidemocrática. O julgamento, nesse sentido, não fecha um ciclo e, sim, desloca as engrenagens para novas frentes de disputa.
Não se trata, portanto, de celebrar. A mera constatação de uma tentativa de golpe jamais pode ser motivo de júbilo. Mas a resposta firme do Supremo deve ser lida como uma renovação da esperança: uma afirmação de que, apesar de todos os riscos e imperfeições, a democracia continua a ser o caminho que vale a pena percorrer.
Nesse contexto, qual o significado do voto do ministro Luiz Fux?
Primeiro, para que não se recaia em reducionismos, é importante enfatizar que o voto do ministro Luiz Fux, apesar de suas amplas contradições, consiste em exercício legítimo de sua função enquanto julgador. Esse ponto é fundamental para reforçar que o desacordo não apenas é legítimo, como constitui parte essencial de sociedades plurais e democráticas.
A dificuldade que esse voto levanta, no entanto, está na falta de integridade, nos termos do teórico Ronald Dworkin, quando comparado às centenas de decisões já proferidas sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, em que o próprio ministro reiteradamente votou pela condenação de civis. Isso traz à tona a tão falada seletividade do direito no Brasil: seria ele uma garantia apenas dos ricos e poderosos, que podem tudo, inclusive atentar contra o Estado Democrático de Direito?
Além disso, em minha leitura, foi um voto consciente dos desdobramentos políticos que provocaria. Nesse sentido, acaba legitimando narrativas já difundidas, sobretudo nos Estados Unidos e entre movimentos de extrema-direita no Brasil, de que se trata de perseguição a Bolsonaro, aliado ideológico de Donald Trump, ou de cerceamento de liberdades fundamentais.
O que aconteceu no Judiciário de países como a Hungria, Polônia, Turquia e Estados Unidos que deve servir como alerta para o Brasil? Pode citar algum exemplo específico que chama mais atenção.
Em todos esses países, o Judiciário foi alvo de estratégias de controle e submissão que lembram, em grande medida, aquelas tentadas no Brasil durante o governo Bolsonaro.
Um exemplo emblemático vem da Hungria. O partido Fidesz, liderado por Viktor Orbán, reduziu a idade de aposentadoria compulsória de juízes das instâncias comuns de 70 para 62 anos, afastando centenas de magistrados experientes e abrindo espaço para novas nomeações alinhadas ao governo.
Trago esse exemplo porque algo semelhante foi ensaiado no Brasil, quando Bolsonaro apoiou a revogação da chamada Emenda da Bengala (PEC 159/2019), apresentada por sua aliada Bia Kicis. Na prática, a proposta anteciparia a saída dos ministros Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, permitindo ao então presidente realizar mais duas nomeações, além das que já resultaram na indicação de Nunes Marques e André Mendonça.
Com uma eventual reeleição, sua influência sobre o Supremo seria ainda mais acentuada. Esse panorama serve como alerta claro para o Brasil. Não se trata de risco abstrato, mas de práticas concretas que, quando implementadas, corroem em pouco tempo a independência judicial e, com ela, o próprio princípio da separação de poderes.
O que tem de diferente no Brasil, que permitiu uma resistência democrática mais efetiva que países como Polônia e Estados Unidos?
Há alguns elementos que diferenciam o Brasil tanto da Polônia quanto dos Estados Unidos.
Na Polônia, a convergência entre Executivo e Legislativo permitiu ao partido Lei e Justiça, PiS, remodelar o Tribunal Constitucional, reduzindo a idade de aposentadoria compulsória, criando novas cadeiras e perseguindo juízes dissidentes. A corte acabou capturada e passou a legitimar o projeto iliberal. No Brasil, propostas semelhantes — como a revogação da Emenda da Bengala ou pedidos de impeachment de ministros — não prosperaram no Congresso, o que preservou a autonomia institucional do STF. É importante notar, contudo, que o cenário seria provavelmente distinto caso Bolsonaro governasse sob a atual configuração legislativa.
Nos Estados Unidos, o processo foi diferente, mas igualmente revelador. Desde 2016, o Partido Republicano conseguiu moldar, por meio de manobras políticas, a composição da Suprema Corte, consolidando uma maioria de seis juízes conservadores contra três liberais. Essa guinada ideológica mostrou seus efeitos no caso Trump v. United States, em que a Corte, pelo mesmo quórum de seis a três, assegurou a elegibilidade de Trump para 2024 e estabeleceu precedente extremamente perigoso ao reconhecer imunidade ampla para ex-presidentes em relação a atos praticados no exercício de suas funções constitucionais.
Como registrou a juíza Sotomayor em voto dissidente: “em cada ato oficial, o Presidente agora é um rei acima da lei”. Esse quadro não se verificou no Brasil. Bolsonaro indicou apenas dois ministros, sem alterar de forma significativa a correlação de forças internas do Supremo.
Em 2018, o então pré-candidato Jair Bolsonaro defendeu aumentar o número de ministros do STF de 11 para 21. Assim, ele pretendia aumentar ministros alinhados com seu governo. Esse tipo de intervenção na Suprema Corte ainda é um risco? O que ela significaria?
Hipoteticamente, esse ainda é um risco, já que o número de ministros do STF não está protegido por cláusula pétrea e, portanto, poderia ser alterado por emenda constitucional.
Mais do que discutir apenas a ampliação de cadeiras, é preciso enfrentar a pergunta de fundo: por que há tanto interesse em pautas como impeachment de ministros ou expansão do Supremo? A resposta está no próprio desenho constitucional brasileiro, que permite que a indicação de ministros caminhe de forma estreita com os interesses de quem ocupa a Presidência da República. Esse risco é ampliado pelo histórico de baixíssima rejeição do Senado às indicações presidenciais.
Se, contudo, a escolha de ministros passar a ser resultado de um processo compartilhado por múltiplos atores, as tentativas de interferência na composição do STF perdem sentido. Considero urgente fomentar no Brasil um debate capaz de pensar reformas institucionais alicerçadas no compromisso de continuidade e aperfeiçoamento da democracia.
E que tipo de mudança sua tese defende para blindar o STF contra uma instrumentalização política no futuro?
Minha pesquisa identificou problemas no desenho constitucional do tribunal que o tornam vulnerável tanto a tentativas externas de instrumentalização política quanto a formas internas de concentração de poder.
Nesse contexto, a tese propõe dois arranjos institucionais que poderiam ser debatidos já no presente, como alternativas viáveis para fortalecer a democracia sem provocar um agigantamento do Supremo.
O primeiro consiste na criação de um procedimento descentralizado para a indicação de ministros, inspirado em modelos de governança judicial multipartite. A proposta é a instituição de um conselho independente de nomeações, com composição heterogênea — ministros do próprio STF, representantes da maioria e da minoria no Congresso, acadêmicos, além de nomes indicados pela OAB e pelo Ministério Público — com atenção especial à incorporação de políticas afirmativas de gênero e raça. Esse desenho busca mitigar riscos de captura, assegurar maior autonomia decisória frente a pressões políticas, além de fortalecer a reputação institucional.
O segundo arranjo volta-se ao fortalecimento da colegialidade interna, de modo a reduzir a concentração de poder decisório em gabinetes individuais e reforçar a dimensão institucional das deliberações da Corte.
2026 já começou, e as elites querem o caos.
A responsabilização dos golpistas aqui no Brasil foi elogiada no mundo todo como exemplo de defesa à Democracia.
Enquanto isso, a grande mídia bancada pelos mesmos financiadores do golpe tenta espalhar o caos e vender a pauta da anistia, juntamente com Tarcísio, Nikolas Ferreira, Hugo Motta e os engravatados da Faria Lima.
Aqui no Intercept, seguimos expondo os acordos ocultos do Congresso, as articulações dos aliados da família Bolsonaro com os EUA e o envolvimento das big techs nos ataques de Trump ao Brasil.
Os bastidores mostram: as próximas eleições prometem se tornar um novo ensaio golpista — investigar é a única opção!
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