Demissões no Itaú: programa que vigia funcionários foi usado sem aviso e monitorava teclado, cliques e navegação

Demissões no Itaú: programa que vigia funcionários foi usado sem aviso e monitorava teclado, cliques e navegação

Mil funcionários foram demitidos após sistema detectar baixa produtividade. Monitoramento pode ser ilegal.

Demissões no Itaú: programa que vigia funcionários foi usado sem aviso e monitorava teclado, cliques e navegação

O engenheiro de software Rodrigo não entendeu a razão de sua demissão do Itaú Unibanco. Ele foi um dos mil funcionários em home-office demitidos por suposta “baixa produtividade” detectada por um software que vigia a atividade do computador.

Um ex-colega informou que o sistema registrou 60% de ócio (computador ligado sem que haja interação). Rodrigo alega que preferia usar seu computador pessoal para programar, já que o fornecido pelo banco era lento. “Tenho a sensação de que, se eu passasse o dia vendo vídeo no YouTube, não seria demitido”, disse.

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Meses após anunciar lucro bilionário, o banco Itaú fez uma demissão em massa histórica. E ela não foi causada pela necessidade de se cortar custos ou por falta de resultados – mas por uma suposta inatividade no computador dos funcionários, detectada por robôs de monitoramento. Para especialistas, as demissões podem, além de violar a privacidade, também ir contra a lei trabalhista.

Nos últimos dias, o Intercept Brasil conversou com 10 funcionários do Itaú – nove demitidos e um que sobreviveu, por ora, ao corte. Todos pediram para ter suas identidades preservadas. 

De forma unânime, eles afirmam que não foram expressamente informados sobre o funcionamento do sistema de monitoramento de atividade das máquinas, o que indica que a vigilância pode ter ocorrido de forma irregular. Um contrato obtido pelo Intercept também não explicita que os funcionários estariam sujeitos a esse tipo de vigilância. 

O alvo dos cortes foram os profissionais que atuavam em modelo de teletrabalho. Entre os demitidos, havia pelo menos 80 funcionários que tinham sido contemplados pelo Programa de Remuneração por Alto Desempenho, chamado Prad, seis meses antes. 

Segundo o Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, foram mais de mil dispensados de uma única vez. Questionado, o banco não confirmou o total de desligamentos.

As demissões contrastam com os resultados financeiros do Itaú Unibanco. Em fevereiro deste ano, a instituição divulgou aos seus acionistas os resultados de 2024: lucro líquido de R$ 40,2 bilhões, o maior valor atingido na história por uma instituição financeira brasileira listada na bolsa. A instituição continuou a registrar resultados positivos neste ano. 

Há pouco mais de um mês, o Itaú divulgou o fechamento do segundo trimestre de 2025 com um lucro líquido de R$ 11,5 bilhões, o que representa um crescimento de 14,3% em relação ao mesmo período do ano passado. No primeiro trimestre foram R$ 11,1 bilhões, alta de 13,9% em relação ao ano anterior. Ou seja, neste ano, o banco já obteve mais de R$ 22 bilhões de lucro. 

Os bons resultados do banco são acompanhados de reconhecimento, mas não para todos os funcionários. Se, por um lado, o banco demitiu mais de 1 mil trabalhadores da “linha de frente”, por outro, o CEO da instituição Milton Maluhy Filho, goza de um salário anual de quase R$ 68 milhões, o maior entre as empresas listadas na bolsa, segundo um levantamento divulgado no ano passado pela Folha de S.Paulo. 

Tempo de tela, cliques e abas abertas: é assim que o Itaú vigia seus funcionários 

Em março, o Itaú Unibanco reconheceu o desempenho de parte de seus funcionários por meio do Prad, um bônus anual. Foi um momento de alegria entre os “itubers” (termo usado internamente para se referir aos funcionários do banco) agraciados pela premiação. “Ituber, parabéns pelo PRAD! Esse reconhecimento é pelo seu alto desempenho. Comemore, essa conquista é toda sua!”, dizia o comunicado enviado aos vencedores.

O que eles não sabiam, no entanto, é que, a partir daquele momento, o banco passaria a implementar uma nova forma de controle das atividades realizadas durante o teletrabalho, em uma métrica que, basicamente, desconsideraria os resultados apresentados e colocaria como principal objeto de análise a atividade da máquina utilizada nos dias de home office.

Toda pessoa que é contratada pelo Itaú em alguma modalidade de teletrabalho recebe um notebook para desempenhar suas atividades profissionais em casa. Essa máquina já é entregue com alguns softwares instalados e, ao longo do tempo, o aparelho passa por atualizações de sistema, que podem incluir a instalação de novos programas. 

A finalidade dos novos programas instalados, no entanto, nem sempre é explicada aos profissionais de forma explícita. Foi aí que entraram os softwares de monitoramento. 

‘A gente sabia que o banco monitorava, mas esse tipo de detalhamento, quantos cliques você deu, que telas você abriu, nós não tínhamos o menor conhecimento’.

Esses programas, que ficaram mais populares durante a pandemia, são instalados em computadores corporativos para registrar a atividade dos funcionários durante o expediente. Ainda que os diferentes sistemas disponíveis no mercado não operem da mesma forma, em linhas gerais, o software permite ao empregador acompanhar métricas como tempo de tela ligada, uso do teclado e do mouse, acesso a sites e até trocas de mensagens. 

Em tese, a finalidade da ferramenta é o controle da produtividade, para coibir altos níveis de ociosidade durante o teletrabalho. Ou seja, monitorar o que o funcionário faz e, principalmente, atestar que esteja trabalhando dentro do horário definido e usando o notebook corporativo.

O Itaú usa o xOne, software de monitoramento desenvolvido pela empresa Arctica, que confirmou ao Intercept a venda do serviço para a instituição financeira. Perguntado, o banco não informou se faz uso de outros sistemas do tipo. 

Com base nas conversas que os demitidos tiveram com seus respectivos gestores, sabe-se que o monitoramento incluía tempo de tela ativa – ou seja, quanto tempo o monitor ficava apagado por inatividade – e quais eram as abas abertas durante a jornada.

Os demitidos que conversaram com o Intercept sabiam que havia um sistema que cruzava os dados entre o horário de ponto batido e o momento em que notebook era ligado. Mas desconheciam o nível de detalhamento das informações colhidas. 

Eles também afirmaram não ter tido feedbacks a respeito da baixa atividade das máquinas nem qualquer oportunidade para se justificar.

Em nota, o Itaú confirmou que fazia um acompanhamento do uso do mouse e teclado dos trabalhadores. A própria empresa, porém, admitiu que a vigilância era mais extensa. 

“É fundamental ressaltar que o monitoramento adotado pelo Itaú não considera exclusivamente o uso de mouse ou teclado como métricas de aderência digital”, cita o posicionamento enviado ao Intercept. A empresa ressaltou que não realiza captura de telas, áudios ou vídeos.

Monitoramento de funcionários durou ao menos quatro meses

De acordo com as informações obtidas pelos dispensados no momento da demissão, esse monitoramento minucioso teria sido implementado há seis meses. Oficialmente, o Itaú diz que a análise por meio de softwares ocorreu durante quatro meses. 

“Um dos aspectos que várias das empresas que monitoram o trabalho remoto olham é se o trabalhador está com mais de uma aba aberta no navegador. E elas avaliam quanto tempo você passou em cada uma dessas abas e quais assuntos estavam ali”, explica Alexandre Pacheco, professor de direito digital da FGV de São Paulo que estuda os softwares de monitoramento usados para fiscalizar o teletrabalho. Ele ressalta, no entanto, que não é possível afirmar se é o caso do Itaú. 

Pacheco afirma que o monitoramento de teclado – uma das métricas confirmadas pelo banco – pode ocorrer de duas formas. Uma delas é o monitoramento integral, que registra até mesmo o conteúdo do que foi digitado pelo funcionário. O outro é parcial, em que o software não registra o conteúdo do que é digitado, mas analisa a frequência e quantidade de teclas pressionadas. 

Já os sistemas de monitoramento de mouse, diz o professor da FGV, servem para monitorar o tempo de inatividade dos trabalhadores. “O programa vai ler o tempo de inatividade, que, eventualmente, pode até ser um tempo produtivo, quando você está lendo um documento, por exemplo. Mas não mexer o mouse pode ser interpretado como um tempo ocioso pelo sistema. A grande questão é como interpretar os dados que são coletados.” 

Contrato de trabalho não menciona monitoramento

Além de receberem um computador da empresa para trabalhar, os profissionais em regime híbrido ou remoto tinham um contrato diferenciado, ao qual o Intercept teve acesso. 

Um trecho do documento diz o seguinte: “as ferramentas de trabalho são monitoradas e as informações relacionadas ao trabalho são de propriedade da empresa.” O acordo também determina que os funcionários devem permanecer conectados à plataforma “Teams” durante toda a jornada.

Na cópia do contrato, no entanto, não há nenhuma menção a qualquer tipo de monitoramento mais detalhado, como a atividade do mouse ou dos teclados.

Filipe Medon, professor de direito da FGV do Rio de Janeiro e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da mesma instituição, afirma que a Lei Geral de Proteção de Dados, LGPD, determina que o titular dos dados coletados deve ser informado de forma clara sobre finalidade do tratamento das suas informações pessoais e que isso não pode ser feito de forma vaga ou genérica. 

“Tem que ser uma finalidade clara, para que a pessoa saiba exatamente aquilo que está acontecendo com os seus dados pessoais e possa exercer a sua autodeterminação informativa, que é a grande base da LGPD”, diz Medon.

A advogada trabalhista e professora de direito da PUC-SP Fabíola Marques explica que a supervisão do teletrabalho é legítima e que, por ser uma modalidade relativamente recente, ainda não há uma legislação específica sobre o tema. 

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Ainda assim, ela entende que a falta de clareza sobre como a supervisão é feita pode ser entendida como uma violação da legislação trabalhista. “Você pode utilizar softwares, aplicativos, etc., mas há necessidade de uma comunicação clara para o emprego dessa fiscalização. Ou pelo menos que essa fiscalização esteja prevista, claramente disposta, numa política interna da empresa”, observa.

O Itaú afirmou que o monitoramento é “expressamente previsto em políticas internas assinadas por seus colaboradores, e acordado com os sindicatos”. Mas, assim como os funcionários demitidos, o sindicato dos bancários nega que tenha sido informado sobre a natureza do monitoramento. 

“A gente sabia que o banco monitorava o horário de trabalho, mas esse tipo de detalhamento, quantos cliques você deu, que telas você abriu, nós não tínhamos o menor conhecimento”, afirmou Neiva Ribeiro, presidente da organização.

Felipe Oliveira, diretor comercial do xOne, responsável pelo sistema usado pelo Itaú Unibanco, afirmou ao Intercept que a comunicação sobre o monitoramento das atividades é de responsabilidade exclusiva das empresas que contratam o serviço. “Cada organização define como e quando informa seus funcionários”, disse. 

Ao Intercept, o banco justificou as demissões pela baixa atividade digital, medida pelos softwares de monitoramento, mas sem explicar nem detalhar o que significa “atividade digital”. “O Itaú identificou uma minoria de colaboradores em jornadas de trabalho remoto com baixos níveis de atividade digital, sendo esse um padrão de comportamento e não situações pontuais”.

Alguns desses casos, os mais críticos, chegaram a patamares de 20% de atividade digital no dia – de forma sistemática, ao longo de quatro meses – e ainda assim registraram horas extras naqueles mesmos dias, sem que houvesse causa que justificasse”, menciona a nota do Itaú.

A empresa diz que a média geral de atividade digital é de 75%, “patamar que a instituição entende como adequado, considerando sazonalidades, horas de intervalo e descanso”. Por fim, o Itaú afirma que “é por esse motivo que foram desligados alguns colaboradores com boa avaliação de performance”. 

Ainda sem saber ao certo o motivo de sua demissão, um dos agora ex-funcionários perguntou a um colega que permanece na empresa sobre as conversas nos dias seguintes às dispensas. O colega em questão enviou um áudio explicando a situação, que foi repassado ao Intercept.

“A gente teve uma conversa com o gerente. Ele falou com todas as letras: o indicador que avaliou as pessoas não é um indicador de produtividade, ele é um indicador de uso de máquina. Pura e simplesmente.”

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