Vozes

Não existe ‘anistia light’: proposta de Motta e Alcolumbre é um novo golpe

Mesmo sem incluir Bolsonaro, anistia vai transformar criminosos do 8 de Janeiro em heróis e colocar democracia em risco.

***ARQUIVO***BRASÍLIA, DF, 08.01.2023 - Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) realizam ato golpista e invadem a praça dos Três Poderes, em Brasília, para depredar os prédios no local. (Foto: Gabriela Biló/Folhapress)

Não é mais segredo que Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados, e Davi Alcolumbre, presidente do Senado, tramam nos bastidores para aprovar uma “anistia light”, uma proposta que a imprensa trata como uma alternativa razoável à possibilidade de livrar o ex-presidente Jair Bolsonaro da prisão.

A ideia é livrar o que eles chamam de “peixes pequenos” do golpe, os manifestantes que destruíram a Praça dos Três Poderes em 8 de Janeiro de 2023. A realidade, porém, é que trata-se de uma tentativa de proteger criminosos que tentaram abolir a democracia — e deve ser chamada pelo que realmente é: um novo golpe contra o Estado de Direito.

O que houve em 8 de Janeiro não foi uma “cilada” em que senhorinhas com a bíblia na mão foram enganadas por Bolsonaro e outras figuras públicas. Foi uma tentativa de golpe com atos de terrorismo.

Vândalos golpistas invadem a praça dos Três Poderes e depredam os prédios. Na imagem: Homem quebra janela do. Palácio do Planalto. Foto: Gabriela Biló /Folhapress
Golpistas invadiram a Praça dos Três Poderes e depredaram os prédios. Foto: Gabriela Biló /Folhapress

escrevi sobre isso na newsletter Cartas Marcadas: não acho que há um único inocente do 8 de Janeiro. Chamo essas pessoas de terroristas porque é exatamente o que elas são. No início da cobertura jornalística do 8 de Janeiro, eu não estava sozinho. A imprensa chegou a usar o termo para descrever o grupo que atacou Brasília – e, dias antes, incendiou ônibus, tentou invadir a Polícia Federal e planejou atentados a bomba.

Algum tempo depois, inexplicavelmente, boa parte dos veículos brasileiros abandonou o termo, como se o caráter organizado e violento desses criminosos tivesse sido substituído por uma realidade em que eles eram inocentes – mal informados, manipulados ou enganados.

Não é verdade. Aquelas pessoas não agiram de forma aleatória: elas não só sabiam o objetivo golpista daquela ação. É muito pior. Elas integram células paramilitares, com liderança, financiamento e estratégia, dedicadas a intimidar, coagir e destruir o que sobrou de democracia depois do governo Bolsonaro.

Não há exagero algum na punição a essas pessoas. Vamos aos números: do total de 1.190 pessoas responsabilizadas pelo golpe, apenas 279 foram condenadas por crimes graves, com previsão de cumprimento inicial de pena em regime fechado. Mais de 100 dos mais perigosos estão foragidos, muitos no exterior, e menos de 150 estão efetivamente presos.

Esse é o exagero? Foram milhares que invadiram os prédios, quebraram tudo e menos de duas centenas ainda pagam por isso.

Uma “anistia light” não seria um golpe de mestre contra a liberdade de Bolsonaro, como alguns tentam vender: seria uma licença para que os criminosos retornem à vida pública como heróis, fortalecendo uma rede violenta e reforçando os crimes cometidos contra jornalistas e autoridades que ousaram não se curvar ao bolsonarismo radical.

E o problema da proposta é também legal. Como já escreveu o constitucionalista Emilio Peluso Neder Meyer, não estamos diante de um caso de transição política que justificasse algum tipo de perdão coletivo. O Brasil não saiu de uma ditadura ou de uma guerra civil — passou só da derrota de um governo autoritário para a continuidade do mesmo regime democrático.

Por isso, segundo ele, não faria sentido mobilizar o instituto da anistia, que na Constituição foi pensado para reparar injustiças cometidas contra opositores da ditadura militar, e nunca para blindar agentes que atacam a democracia.

Peluso também argumenta que anistiar crimes como os do 8 de Janeiro seria uma contradição em seus próprios termos. Se condutas contra o Estado Democrático de Direito pudessem ser apagadas por lei, seria como admitir que sua criminalização é irrelevante. “Anistiá-los apenas estimula mais golpes de Estado”, escreveu o professor, em artigo publicado no site Jota.

LEIA TAMBÉM:

‘Anistia light’ não será leve

Querem um exemplo? Entre os beneficiados por essa anistia estaria Josiel Gomes de Macedo — um condenado a 16 anos e meio de prisão por incendiar uma viatura policial e comprar equipamentos militares para a tentativa de golpe — que hoje vive impune em Buenos Aires, mesmo com mandado de prisão ativo, como revelamos em março.

Depois da reportagem em que expusemos sua vida tranquila na Argentina, Josiel e sua rede de apoiadores organizaram uma enxurrada de ameaças de morte e violência física contra mim. Ele declarou, em live: “Todo mundo agora está de olho em você. Já sabe quem é você. Já sabe o que você fez. E eu também vou atrás de você. Você pode ter certeza.”

Mas não sou o único alvo dessa gente. Gabriela Biló, Thaisa Oliveira, Juliana Dal Piva, Guilherme Amado e outros jornalistas sofreram ataques coordenados por eles nas redes sociais, com exposição de dados pessoais, xingamentos, incitação à violência e perseguição sistemática, simplesmente por cobrirem a punição aos golpistas de 8 de Janeiro.

Como denunciou a Abraji, trata-se de uma estratégia deliberada de intimidação, destinada a silenciar a imprensa e desestabilizar a democracia.

Não estamos lidando com “descontentes” ou “cidadãos indignados”. Estamos diante de uma organização criminosa e terrorista, que começou nos acampamentos militares de 2022, evoluiu para ataques violentos em Brasília e se espalhou internacionalmente. Alguns estão na Argentina – como Josiel –, outros nos Estados Unidos – como Eduardo Bolsonaro, Allan dos Santos e Paulo Figueiredo.

Essas pessoas compartilham o mesmo fanatismo: abrem mão da própria vida, da própria família e da lei em nome de Jair Bolsonaro. Essas pessoas não hesitam em ameaçar, intimidar ou cometer violência física para manter o poder político de seu líder.

Uma anistia light não será leve. Será mortal. Ela legitima uma rede terrorista que incendiou Brasília, planejou atentados a bomba e persegue jornalistas e autoridades. Quem propõe uma medida como essa não está propondo justiça: está propondo o retorno do terror. Todos nós vamos pagar o preço.

Não existe meio-termo: ou esses criminosos pagam pelo que fizeram, ou a violência continuará se espalhando, impune e fortalecida.

O Intercept é sustentado por quem mais se beneficia do nosso jornalismo: o público.

É por isso que temos liberdade para investigar o que interessa à sociedade — e não aos anunciantes, empresas ou políticos. Não exibimos publicidade, não temos vínculos com partidos, não respondemos a acionistas. A nossa única responsabilidade é com quem nos financia: você.

Essa independência nos permite ir além do que costuma aparecer na imprensa tradicional. Apuramos o que opera nas sombras — os acordos entre grupos empresariais e operadores do poder que moldam o futuro do país longe dos palanques e das câmeras.

Nosso foco hoje é o impacto. Investigamos não apenas para informar, mas para gerar consequência. É isso que tem feito nossas reportagens provocarem reações institucionais, travarem retrocessos, pressionarem autoridades e colocarem temas fundamentais no centro do debate público.

Fazer esse jornalismo custa tempo, equipe, proteção jurídica e segurança digital. E ele só acontece porque milhares de pessoas escolhem financiar esse trabalho — mês após mês — com doações livres.

Se você acredita que a informação pode mudar o jogo, financie o jornalismo que investiga para gerar impacto.

Apoie o Intercept Hoje

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar