O presidente dos EUA, Donald Trump, declarou durante uma coletiva de imprensa na terça-feira, que os EUA realizaram um ataque no sul do Caribe contra uma embarcação que havia saído da Venezuela carregando drogas. “Nós simplesmente… atiramos em um barco carregado de drogas, muitas drogas naquele barco”, disse. “Essas vieram da Venezuela.”
Um alto funcionário da defesa dos EUA ofereceu uma declaração mais coerente, e confirmou ao Intercept que “os militares dos EUA realizaram um ataque de precisão contra uma embarcação de drogas operada por uma organização determinada como narcoterrorista”.
O ataque foi o primeiro a ser reconhecido por Trump em sua recente escalada de forças militares na América Central e do Sul. As beligerantes relações exteriores remontam às intervenções militares do começo do século XX, quando o “big stick” da Doutrina Monroe levou os EUA a invadirem ou oferecerem apoio militar a regimes de preferência na maioria dos países do hemisfério Ocidental. Essa diplomacia da canhoneira traz o risco de envolver os EUA em mais guerras estrangeiras, e prejudicar os esforços anti-imigração de Trump.
A Casa Branca e o Departamento de Estado foram procurados para apresentar mais informações sobre o ataque, mas não se manifestaram.
Na semana passada, os Estados Unidos enviaram três contratorpedeiros Aegis com mísseis guiados para as águas da Venezuela, como parte da suposta guerra de Trump contra os cartéis de drogas na América Latina. Ao todo, sete navios de guerra dos EUA e um submarino nuclear de ataque estão no Caribe, ou devem chegar em breve. Isso se seguiu ao anúncio, no mês passado, de que os EUA estavam enviando milhares de soldados para o Comando Sul, ou SOUTHCOM, que supervisiona as operações na América Latina e no Caribe, incluindo o envio de duas tropas treinadas em combate anfíbio. Trump também assinou secretamente uma diretiva ordenando que o Pentágono comece a atacar alguns cartéis de drogas latino-americanos, que seu governo passou a considerar como organizações terroristas.
Apontar certos cartéis como organizações terroristas estrangeiras “abriu uma caixa de Pandora do uso de força militar contra eles, tanto em território estrangeiro, quanto em águas internacionais”, disse Wes Bryant, ex-consultor sênior de seleção de alvos e analista de políticas no Pentágono, que esteve diretamente envolvido em atividades antinarcóticas contra o Talibã e o ISIS no Afeganistão, em entrevista ao Intercept. “Se seguirmos o caminho traiçoeiro de definir qualquer grupo ou indivíduo que cometa um crime, ou mesmo um ato de violência, como parte de uma organização terrorista, para justificar o uso dos recursos de combate dos EUA, seremos um país afundando ainda mais rumo à militarização e ao autoritarismo.”
Ao mesmo tempo, o Pentágono vem realizado várias missões de treinamento, exercícios e conferências –– que a imprensa tem ignorado –– com pessoal militar de toda a América Latina e do Caribe, incluindo Argentina, Belize, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Savador, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Panamá, Paraguai e Peru.
‘É mais provável que essa abordagem fortaleça a determinação dessa região de fazer parcerias com países como a China a médio e longo prazo.’
“Junto, esses desdobramentos representam um retorno a uma abordagem intervencionista insensível à região, que deve reduzir ainda mais a influência dos EUA ao longo do tempo”, disse ao Intercept Erik Sperling, da organização ativista Just Foreign Policy, que critica a política externa predominante em Washington. “Embora o governo espere reforçar o poder dos EUA no hemisfério a curto prazo, com ameaças militares e intervenção na política latino-americana, é mais provável que essa abordagem fortaleça a determinação dessa região de fazer parcerias com países como a China a médio e longo prazo.”
Um funcionário da defesa dos EUA disse ao Intercept que o aumento de tropas nas Américas foi pensado para combater os cartéis. Stephen Miller, vice-chefe de gabinete da Casa Branca, manifestou esse mesmo sentimento na sexta-feira, alegando que o acúmulo de forças tinha o objetivo de “combater e desmontar as organizações do tráfico, os cartéis criminosos e essas organizações terroristas estrangeiras em nosso hemisfério”.
Mas a linha entre um cartel e um governo, aos olhos do Pentágono, está ficando mais tênue.
Em fevereiro, Trump determinou como organizações terroristas internacionais o Tren de Aragua, na Venezuela, o MS-13, em El Salvador, e seis cartéis do México. Mais recentemente, o governo Trump incluiu o Cartel de los Soles, ou Cartel dos Sóis, venezuelano, a uma lista de grupos terroristas globais especialmente determinados, alegando que o grupo é chefiado pelo presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e altos dirigentes de seu governo.
Autoridades venezuelanas acreditam que Trump esteja renovando esforços de longa data, que falharam durante seu primeiro mandato, para derrubar o governo de Maduro. Maduro foi acusado em um juízo federal de Nova York em 2020, durante o primeiro mandato de Trump, juntamente com vários aliados próximos, por crimes federais de narcoterrorismo e conspiração para importar cocaína. No mês passado, os EUA dobraram para 50 milhões de dólares (273 milhões de reais) a recompensa por informações que levassem à prisão de Maduro.
Desde 31 de agosto, os fuzileiros navais e marinheiros da 22 Unidade Expedicionária da Marinha dos EUA começaram a realizar operações de treinamento, incluindo o desembarque anfíbio de tropas em uma cabeça de praia no sul de Porto Rico –– exatamente o tipo de tropa necessária à invasão de um país costeiro.
Procurada, a Embaixada da Venezuela não se manifestou até o momento da publicação desta matéria. A Casa Branca não respondeu às perguntas sobre a relação entre essas iniciativas estarem levando a uma intervenção militar e tentativa de mudança de regime na Venezuela.
“A súbita escalada militar dos EUA na região, apoiada tanto pela linha dura anti-imigração, como Stephen Miller, quanto pelos neoconservadores, como Marco Rubio, reflete o fracasso de Washington em alcançar seus objetivos de mudança de regime na Venezuela”, diz Sperling. “O Congresso nunca autorizou uma guerra contra a Venezuela, e pela Resolução dos Poderes de Guerra, o presidente está proibido de posicionar tropas em situações de hostilidade iminente, exatamente para impedir o executivo de provocar ataques para tentar contornar a autoridade do Congresso. Tanto o Congresso, quanto a população, precisam estar atentos para se oporem a qualquer ação não autorizada ou a provocações incitadas.”
Depois que Trump instruiu secretamente o Pentágono a elaborar planos para atacar os cartéis, a presidente do México, Claudia Sheinbaum, disse: “não haverá uma invasão”. Mas seu governo enviou para os Estados Unidos 26 pessoas acusadas de envolvimento nos altos escalões dos cartéis. Foi a segunda transferência desse tipo neste ano, ambas realizadas fora do processo regular de extradição. “O México faz o que dizemos a eles para fazer”, diz Trump. Quando perguntado sobre a possibilidade de enviar forças especiais dos EUA para “derrubar” os cartéis no México, Trump respondeu: “pode acontecer… coisas mais estranhas já aconteceram”.
Bryant considera que usar as forças armadas para perseguir cartéis é “legalmente e doutrinariamente inadequado”, e que isso poderia evoluir para uma guerra no México com envolvimento dos militares dos EUA.
“A disposição do governo Trump para enviar forças dos EUA com cada vez mais recursos é ainda mais alarmante, considerando o discurso do secretário de Defesa, Pete Hegseth, de que os combatentes estadunidenses só servem para o uso de violência –– a que ele frequentemente se refere como “letalidade”. Quais seriam as regras de engajamento para as forças dos EUA enviadas para o México, especialmente sob oposição do governo mexicano? Quais seriam as consequências a longo prazo para a segurança e a estabilidade nos EUA e no México?”, questiona Bryant. “Em vez de mobilizar forças de operações especiais para conduzir o tipo de atividade que provavelmente levaria o México a um grande conflito de contra-insurgência – com envolvimento direto das forças dos EUA – deveríamos cultivar as parcerias de longa data entre as forças de segurança.”
Especialistas comparam os esforços intervencionistas de Trump na América Latina à política do presidente Teddy Roosevelt na virada do século XX, chamada de “Big Stick” (grande porrete), um corolário da Doutrina Monroe. Em 1823, o então presidente dos EUA, James Monroe, alertou aos países da Europa que não permitiria a criação de novas colônias na América. O decreto de Roosevelt, mais vigoroso, determinava que Washington tinha o direito de interferir nos assuntos internos dos países das Américas.
Nos primeiros vinte anos do século XX, o corolário Roosevelt seria usado para justificar as ocupações dos EUA em Cuba, na República Dominicana, no Haiti, em Honduras e na Nicarágua.
As intervenções violentas continuaram ao longo do século. Um golpe com apoio dos EUA na Guatemala, em 1954, derrubou o presidente democraticamente eleito Jacobo Árbenz Guzmán por receio de que a reforma agrária ameaçasse os lucros da United Fruit Company, uma poderosa empresa estadunidense. Durante a Guerra Fria, Washington também participou de golpes que derrubaram governantes democraticamente eleitos no Brasil e no Chile, e apoiou a junta militar na Argentina. As intervenções militares diretas dos EUA também continuaram, da República Dominicana, em 1965, a Granada, em 1983.
A era das intervenções supostamente teria terminado há mais de uma década. “A era da Doutrina Monroe acabou”, declarou o então secretário de Estado, John Kerry, em 2013. “O relacionamento que buscamos”, disse Kerry, “está totalmente voltado para que nossos países se enxerguem como iguais, compartilhando responsabilidades, colaborando em questões de segurança, e não aderindo à doutrina, mas às decisões que tomarmos como parceiros para promover os valores e interesses que compartilhamos.”
“Não existem neste planeta organizações que sejam responsáveis pela morte de mais americanos do que os cartéis criminosos, os narcotraficantes que operam no Hemisfério Ocidental”, disse Miller na sexta-feira, em resposta a uma pergunta sobre os reforços da Marinha na costa da Venezuela. “Assim, o que vocês estão vendo é a decisão do presidente e das forças armadas dos Estados Unidos de combater e desmontar as organizações de narcotráfico, os cartéis criminosos, e essas organizações terroristas estrangeiras em nosso hemisfério.”
Sperling acredita que os esforços provavelmente serão contraproducentes, e resultarão em desastre. “Caso os EUA consigam promover uma escalada militar da guerra às drogas, ou lançar novas guerras de mudança de regime, isso provavelmente estimulará a migração em massa, e comprometerá as promessas de campanha do próprio Trump”, disse ao Intercept. “Embora algumas elites e oficiais militares do hemisfério possam aceitar de bom grado o financiamento e o treinamento dos EUA, ninguém na região realmente acredita que a solução para a demanda dos EUA e da Europa por drogas é realizar campanhas militares em toda a América Latina.”
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