Trump usa o dólar como arma

O mundo precisa abandonar o dólar para combater a hegemonia dos EUA

Desmandos das sanções de Trump colocam em foco um sistema de privilégios que beneficia os Estados Unidos e o dólar. E está na mira do BRICS.

Trump usa o dólar como arma

O uso do dólar como principal moeda de referência para o sistema econômico mundial virou uma arma nas mãos de Donald Trump. A força da moeda, que permite que os EUA possam impor sanções unilaterais mundo afora, já entrou na mira dos BRICS, o bloco formado por Brasil e outros países emergentes. 

Temos saída? Para especialistas ouvidos pelo Intercept Brasil, sim – mas o buraco é muito profundo. Basta uma canetada de um presidente querendo briga para que cidadãos de todo mundo sejam afetados por sanções como as aplicadas ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, STF, e aos integrantes do Tribunal Penal Internacional, TPI, que estão julgando o genocídio de Israel em Gaza.

Isso acontece porque, na prática, a dolarização da economia mundial produz um efeito semelhante ao do armamento nuclear: cria um desequilíbrio na distribuição de poder. 

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar

Foi no final da Segunda Guerra Mundial, em 1944, que 44 países decidiram que a moeda internacional de reserva passaria a ser o dólar dos EUA, que na época era lastreado em ouro. Entre esses países estavam, além dos Estados Unidos, os europeus aliados e grande parte da América Latina.

Com isso, suas moedas passaram a ter cotação em dólar. Essa lógica se manteve mesmo depois que o dólar deixou de estar atrelado ao ouro,  pela própria força da economia estadunidense, o que fez com que a moeda dos EUA passasse a ser usada em transações financeiras e comerciais no mundo inteiro.

Uma das maiores vantagens que essa hegemonia do dólar dá aos Estados Unidos é o poder de impor sanções unilaterais. Aplicar uma sanção significa criar restrições comerciais ou financeiras contra indivíduos, organizações ou estados, e o impacto depende do tamanho do problema que elas criam. No cenário internacional, as sanções são um dos únicos instrumentos, além da guerra, que permitem aos países interferirem uns nos outros. 

Praticamente todos os países só conseguem fazer isso por meio de organismos multilaterais, como a ONU e a União Europeia, por exemplo, depois de longas reuniões, deliberações e votações. Para os EUA, no entanto, basta um presidente querendo briga, como Trump tem feito em 2025.

O dólar manteve seu privilégio ao longo das décadas a partir da percepção internacional de que a economia dos Estados Unidos era forte e as instituições eram estáveis. Mas isso está mudando, e o uso autoritário do poder de impor sanções unilaterais por Trump é um forte argumento para empurrar a comunidade internacional a buscar opções.

“Há uma tendência de busca por alternativas a esta dominância – em particular por parte dos países do BRICS”, explica o economista Gabriel Brasil, mestre em economia política internacional pela USP, destacando a importância do comércio com a China no contexto. 

Essa busca de autonomia em relação aos EUA se reflete também na forma de lidar com as sanções. O economista lembra que China e Índia, desde 2022, “se recusaram a aderir às sanções implementadas contra a Rússia no contexto da invasão à Ucrânia”. A China é, atualmente, um dos principais parceiros comerciais e estratégicos do Irã, que também é alvo de sanções econômicas.

Gabriel Brasil considera que a desdolarização é um processo que tende a acontecer de forma gradual, à medida que os países vão adotando outras moedas em suas transações – e não, uma virada de chave súbita, com imposição de uma nova moeda de referência. 

No atual impasse brasileiro, que se viu alvo de um tarifaço de Trump, o mais provável é que o país busque uma solução negociada com seus parceiros comerciais. “O principal interesse do Brasil neste momento é o de evitar rupturas e garantir que as empresas nacionais – inclusive os bancos domésticos – não sejam demasiadamente impactadas”, aponta Gabriel Brasil.

Como funcionam as sanções econômicas

No caso do ministro Alexandre de Moraes, as sanções foram aplicadas a partir da Lei Magnitsky, que permite que os EUA imponham sanções econômicas a acusados de corrupção ou graves violações de direitos humanos. Várias organizações humanitárias, no entanto, já apontaram que o uso da Magnitsky contra o ministro é político e indevido, além do próprio idealizador da lei, o ativista William Browder.

O caso de Moraes ilustra a dimensão dos problemas que os Estados Unidos podem criar com as sanções. Pela lei, a OFAC, o órgão do Departamento do Tesouro responsável por supervisionar a aplicação das sanções, pode ter competência não só sobre empresas e cidadãos estadunidenses, mas sobre qualquer transação que tenha nexo com os EUA – por exemplo, por usar o dólar.

Com isso, uma pessoa alvo de sanções pode ser impedida de realizar qualquer operação em dólar – por exemplo, usar um cartão de crédito internacional para fazer uma compra em um site estrangeiro, ou fazer câmbio em dólares para uma viagem.

Essa interpretação é extremamente ampla. Segundo o advogado criminalista Edward Carvalho, que tem experiência com a Lei Magnitsky,  isso significa que essas sanções “abrangem quaisquer usos dessa moeda [dólar] pela pessoa sancionada, e também incluem o uso do sistema americano para quaisquer transações”.

Carvalho destaca ainda outro aspecto das sanções ligado à hegemonia do dólar: as obrigações previstas nos contratos financeiros internacionais. A maioria desses contratos inclui cláusulas que obrigam as partes a não fazer negócios com pessoas ou entidades que sejam alvo de sanções.

Caso façam, estão, por força contratual, sujeitas às sanções secundárias, explica o advogado. “Os bancos estrangeiros normalmente possuem agências ou operações nos EUA e são obrigados a seguir as regras americanas por suas contrapartes”, complementa. 

Ou seja: na prática, são os bancos e instituições financeiras que promovem a aplicação das sanções, por receio de serem penalizados em suas operações dentro dos EUA. 

Isso já está acontecendo com Moraes, que teve um de seus cartões de crédito, de bandeira Mastercard, bloqueado. A Mastercard afirma que não foi diretamente responsável pelo bloqueio, e o Banco do Brasil, onde o ministro tem conta, por ser funcionário público federal, também negou que tenha sido um cartão da instituição – embora confirme que o bloqueio ocorreu, mas em um cartão de outra instituição financeira.

Essa rede de contratos, porém, não se confunde com o SWIFT, o principal sistema global de comunicação de pagamento usado pelas instituições financeiras para transações internacionais. O SWIFT é uma cooperativa e sua sede fica na Bélgica – portanto, não está subordinado aos EUA, nem às sanções unilaterais.

O porta-voz da instituição esteve recentemente no Brasil, e tranquilizou o Ministério da Fazenda de que “não está sujeito a sanções arbitrárias”. Ainda que possa haver bloqueio das transações em dólar, a exclusão de uma instituição financeira do sistema é uma medida extrema. 

Carvalho explica que “mesmo no caso da Rússia, excluída dele há pouco tempo, foi necessário um consenso multilateral para a aplicação da exclusão”. Não está no poder do presidente dos EUA determinar unilateralmente essa exclusão.

Em entrevista ao Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, da Universidade Federal do ABC, UFABC, o professor da Unicamp Bruno Conti explica que os países do BRICS “querem trabalhar pela desdolarização para reduzir esse poder dos Estados Unidos de usar a sua moeda como uma arma”.

Uma das prioridades do BRICS no processo é justamente criar um sistema de intermediação alternativo ao SWIFT, o que aumentaria a capacidade do bloco de resistir às pressões externas, como as sanções unilaterais dos EUA. Anunciado como o “Pix do BRICS”, o BRICS Pay, com lançamento previsto para o final de 2025, pode cumprir esse papel.

O Intercept é sustentado por quem mais se beneficia do nosso jornalismo: o público.

É por isso que temos liberdade para investigar o que interessa à sociedade — e não aos anunciantes, empresas ou políticos. Não exibimos publicidade, não temos vínculos com partidos, não respondemos a acionistas. A nossa única responsabilidade é com quem nos financia: você.

Essa independência nos permite ir além do que costuma aparecer na imprensa tradicional. Apuramos o que opera nas sombras — os acordos entre grupos empresariais e operadores do poder que moldam o futuro do país longe dos palanques e das câmeras.

Nosso foco hoje é o impacto. Investigamos não apenas para informar, mas para gerar consequência. É isso que tem feito nossas reportagens provocarem reações institucionais, travarem retrocessos, pressionarem autoridades e colocarem temas fundamentais no centro do debate público.

Fazer esse jornalismo custa tempo, equipe, proteção jurídica e segurança digital. E ele só acontece porque milhares de pessoas escolhem financiar esse trabalho — mês após mês — com doações livres.

Se você acredita que a informação pode mudar o jogo, financie o jornalismo que investiga para gerar impacto.

Apoie o Intercept Hoje

Conteúdo relacionado

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar