Deputado bolsonarista apresentou emenda feita por lobista da Meta para afrouxar lei que protege crianças na internet

Deputado bolsonarista apresentou emenda feita por lobista da Meta para afrouxar lei que protege crianças na internet

Proposta que reduz responsabilidade das big techs foi oficializada por Fernando Máximo, do União Brasil, mas metadados revelam que verdadeiro autor é executivo da Meta.

Deputado bolsonarista apresentou emenda feita por lobista da Meta para afrouxar lei que protege crianças na internet

Um lobista da Meta no Brasil é o verdadeiro autor de uma emenda apresentada pelo deputado Fernando Máximo, do União Brasil de Rondônia, que buscou afrouxar o projeto de lei que visa proteger crianças e adolescentes na internet. O rastro deixado pelo executivo escancara a aliança entre as big techs e a extrema direita no Congresso para diminuir a responsabilização das plataformas.

Os metadados dos arquivos disponibilizados no site da Câmara revelam que, das quatro emendas apresentadas por Máximo – todas a favor dos interesses das big techs –, duas foram criadas diretamente por Marconi Borges Machado, executivo que ocupa desde 2017 o cargo de gerente de políticas públicas na Meta.

Metadados de arquivos de duas emendas têm assinatura digital de Marconi Borges Machado (Foto: Reprodução)

Bolsonarista, Fernando Máximo não tem uma atuação expressiva na área de tecnologia. Em suas redes sociais, o deputado se concentra na área de pessoas com deficiência, com posts intercalados com apoio a Israel e a Bolsonaro. 

Já Marconi Machado, em seu perfil no LinkedIn, afirma que conduz pesquisas e monitora legislações e acontecimentos no governo federal que podem afetar a organização, além de coordenar “esforços legislativos”. 

Uma das emendas de autoria do lobista tentou livrar as grandes plataformas da obrigação de disponibilizar relatórios sobre moderação de conteúdo. A justificativa foi que “nem toda a moderação se dá em razão de conduta que possa ter causado dano a menores”, e a exigência criaria um  “ônus sem a necessária contrapartida e benefício”.

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A segunda sugeriu excluir a possibilidade de aplicar multas e sanções criminais às plataformas. Nenhuma delas está identificada como sendo de autoria de um representante da Meta. As emendas acabaram rejeitadas pelo relator, deputado Jadyel Alencar, do Republicanos do Piauí, no substitutivo apresentado pela Comissão de Comunicação na terça-feira, 12. 

O texto final, no entanto, incluiu um inciso que acabou livrando as empresas da “exigência de consolidação estatística e envio semestral de relatórios de moderação e denúncias” – o relator não explicou a origem ou motivo de ter incluído este trecho no projeto. 

O PL 2628, apresentado em 2022 pelo senador Alessandro Vieira, do MDB de Sergipe, visa criar uma série de regras para plataformas digitais protegerem crianças e adolescentes: providências para mitigar exploração sexual e bullying, restrição de tempo de uso e medidas para controle dos pais, além de penalidades, limite de coleta de dados pessoais e outras medidas. 

Agora, com a repercussão do vídeo do influenciador Felca sobre adultização de crianças, a sociedade tem feito pressão pelo projeto, que pode ser votado na próxima semana.

Pressão de big techs derruba ‘dever de cuidado’

O PL 2628 foi aprovado pelo Senado no final de 2024, com apoio de diversas entidades de proteção à infância, e enviado à Câmara dos Deputados.  Foi lá que, em abril de 2025, começou uma operação da extrema direita para tornar o projeto mais alinhado com os interesses das big techs. Foram 38 emendas – 31 de autoria de deputados de PL, União Brasil e Novo – para flexibilizar o projeto. Parte delas foi acatada no novo relatório. 

A maior vitória para as big techs foi conseguir derrubar, na versão final do projeto, um ponto central: o “dever de cuidado” – ou seja, o dever das empresas de adotar medidas ativas para proteger, mitigar danos e impedir crimes em suas plataformas. 

Um dos autores das emendas que sugeriram a derrubada da obrigação foi justamente Fernando Máximo – o arquivo oficial dessa emenda, entretanto, não tinha a assinatura do lobista da Meta nos metadados.

Fernando Máximo já subiu no palanque ao lado de Jair Bolsonaro (Foto: Instagram/Reprodução)

O conceito de “dever de cuidado”, inspirado na legislação europeia, que é mais protetiva, foi introduzido no Brasil no PL 2630, projeto que foi enterrado em 2023 depois de um agressivo lobby das big techs. Combater o “dever de cuidado” é uma briga transnacional das gigantes de tecnologia, que também tentam frear uma proposta parecida que tramita nos EUA, o Kids Online Safety Act

Por aqui, na versão aprovada no Senado do PL 2628, esse conceito voltou a aparecer – e derrubar essa obrigação era tema prioritário das equipes de políticas públicas das big tech. Deu certo. 

Na nova versão do projeto 2628 na Câmara, o termo foi suprimido. No lugar de “dever de cuidado”, o que entrou foram deveres de “prevenção, de proteção, de informação e de segurança”, com adoção de mecanismos que “possibilitem à família e aos responsáveis prevenir o acesso e o uso inadequado por crianças e adolescentes”. 

Ou seja, livra as big techs da responsabilidade ativa, que poderia incluir, por exemplo, a contratação de equipes dedicadas para o tema, e joga a responsabilização para os usuários.

Justificativa do relator para supressão do “dever de cuidado”: para ele, regra criaria “exigências desproporcionais às plataformas” e “insegurança jurídica” (Foto: Reprodução) 

O relator da Comissão de Comunicação fez questão de registrar em seu relatório que a mudança ocorreu a pedido de Google, Meta e de duas emendas, incluindo a de Fernando Máximo. 

Na avaliação de Rafael Zanatta, diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, a mudança deixa a lei menos rigorosa e diminui as obrigações das big techs. “Se você tem o conceito de ‘dever de cuidado’, há um parâmetro um pouco mais duro de um dever de conduta que, se descumprido, cria o ilícito”, explica.

Ao Intercept Brasil, a Meta tratou com absoluta normalidade o fato de ter sido autora das emendas apresentadas pelo deputado. “A contribuição da Meta e de outras partes interessadas no debate sobre o PL 2628 na Câmara dos Deputados é de conhecimento público”, disse a empresa. 

“Assim como no caso de sugestões feitas por outras empresas, organizações da sociedade civil, órgãos do governo e especialistas, as propostas apresentadas pela Meta e acatadas no texto estão registradas no parecer do relator”, afirmou a Meta, em nota. 

Apesar de ter as digitais de seu gerente de políticas públicas em um documento assinado por um deputado federal, a empresa não comentou se seus lobistas costumam redigir projetos de parlamentares brasileiros, tampouco deu detalhes de sua relação com Máximo. 

O deputado, por sua vez, também não explicou porque apresentou exatamente o documento criado pelo executivo da Meta. Disse apenas que recebe e avalia contribuições técnicas de muitos setores e que muitos projetos de sua autoria “saem de conversas” com entidades. “Minha missão não é representar a defesa de nenhum interesse específico”, afirmou.

Em relação ao PL 2628, Fernando Máximo disse que tem como preocupação prioritária “proteger nossas crianças e adolescentes”, mas pontuou ter atuado para “garantir segurança jurídica, não criar burocracia desnecessária, evitar a censura e preservar a liberdade de expressão”, ecoando o posicionamento das big techs. 

Extrema direita atuou em bloco para projeto aliviar big techs

Desde que o influenciador Felipe Bressanim, o Felca, publicou o vídeo “Adultização”, que tem 30 milhões de visualizações no YouTube e quase 200 milhões no Instagram, os congressistas passaram a adotar o tema como prioridade.

O presidente da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba, afirmou que deve levar o tema para votação ainda em agosto. Já pipocaram mais de 30 novos projetos de lei sobre o tema na casa. 

Os senadores Damares Alves, do Republicanos do Distrito Federal, e Jaime Bagattoli, do PL de Rondônia, propuseram até abrir uma CPI para investigar o tema. 

O vídeo de Felca expõe como atuam influenciadores que conquistam likes e lucram com monetização de conteúdos sexualizados de crianças e adolescentes. As plataformas, além de lucrarem com a monetização, também atuam recomendando esses tipo de conteúdo, impulsionando uma rede de pedofilia que atua às claras nas redes sociais. 

Poucos dias antes, o Intercept mostrou como atua uma dessas redes, que fatura milhões de reais por ano com uma espécie de ‘reality show’ de crianças. O Google, responsável pelo YouTube, se esquivou da responsabilidade: nos enviou uma nota genérica e disse que aplicou “strikes e restrição de idade”. O canal segue no ar. 

A responsabilização das empresas é um debate essencial e não pode ser deixada de lado ao se discutir a proteção de crianças e adolescentes na internet. Mas a extrema direita, em coro com os ideais de ‘liberdade de expressão’ a qualquer custo das big techs, prefere recorrer a soluções simplistas e populistas, sem atingir o coração do problema. 

Marcel Van Hattem, do Novo do Rio Grande do Sul, agora veio a público pedir uma audiência pública para apurar as “gravíssimas denúncias” sobre exploração e compartilhamento de pornografia infantil na internet.

Mas ele mesmo propôs emendas ao PL 2628 que, na prática, livram as big techs da responsabilização. 

Em uma delas, sugeriu eximir as empresas do dever de gerenciar riscos e avaliar conteúdo conforme faixa etária. Também propôs livrar as big techs da obrigação de terem sistemas para impedir que menores encontrem conteúdo ilegal ou nocivo. 

Sugestões de Marcel Van Hattem no novo relatório do projeto aliviam a barra das big techs (Foto: Reprodução)

Outro deputado da extrema direita, Mário Frias, do PL de São Paulo, apresentou uma emenda que sugeriu mudar o artigo de serviços que “possam ser utilizados” para serviços “de acesso provável” por crianças e adolescentes – na prática, fez com que as empresas não fossem mais responsáveis por impedir o uso de suas plataformas por esse público. 

Outra alteração proposta por ele foi suprimir o trecho que obrigava as empresas a prevenir e mitigar o acesso a conteúdos com “padrões de uso que indiquem ou incentivem comportamentos semelhantes ao vício ou transtornos de saúde mental como ansiedade, depressão, transtornos alimentares, transtornos relacionados ao uso de substâncias químicas e comportamentos suicidas em relação a crianças e adolescentes”. 

Para Frias, esse trecho era “excessivamente vago ou subjetivo” e poderia gerar “insegurança jurídica” – o discurso padrão das big tech quando a regulação aperta.

O deputado Paulo Bilynskyj, do PL paulista, também apresentou várias emendas ao projeto. Em uma delas, sugeriu que as plataformas só poderiam ser obrigadas a removerem conteúdo após a notificação da vítima ou seu representante, e não após aviso de qualquer pessoa identificada – na prática, dificultando essa comunicação.

Outra sugestão de Bilynskyj foi sugerir que só provedores de serviços direcionados a crianças e adolescentes seriam obrigados a reportar às autoridades conteúdos sobre abuso infantil. 

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Mas a verdade é que serviços desenvolvidos para adultos são usados massivamente por crianças. Mais da metade das crianças e adolescentes do Brasil usam regularmente redes sociais como YouTube, TikTok, Instagram, mostrou a pesquisa TIC Kids de 2024. 

Como mostrou o vídeo de Felca, essas crianças são expostas a algoritmos que privilegiam conteúdos que prendem a atenção. Assim, impulsionam não apenas bizarrices criminosas como a sexualização infantil, mas também discurso de ódio, mentiras, teorias conspiratórias e violência. 

As plataformas lucram com a monetização, e os autores dos vídeos também – o que cria e estimula uma indústria de conteúdo que trabalha para conseguir engajamento a qualquer custo. 

O que as plataformas defendem é diminuir a própria responsabilização, sugerindo mecanismos para jogar a responsabilidade para os usuários, sem mexer no próprio modelo de negócio. A justificativa é proteger a “segurança jurídica” e a “liberdade de expressão”, um discurso perfeitamente alinhado com a extrema direita – que, não à toa, se tornou sua representante no Congresso.

Os deputados Gustavo Gayer, Carla Zambelli, Zé Trovão e Bia Kicis, todos do PL, também enviaram emendas alinhadas com as big tech para flexibilizar o projeto. Gayer, inclusive, disse que a esquerda está usando a denúncia de Felca como “arma ideológica” para aprovar projetos que, na sua visão, implantam a censura.

Para a Data Privacy Brasil, organização que atua na defesa de direitos digitais e privacidade, qualquer projeto que avance como uma resposta às denúncias deve, além de conter medidas específicas sobre abusos, também priorizar a contenção da exploração comercial da vulnerabilidade de crianças e adolescentes. 

A ONG publicou na segunda-feira, 11, uma nota pública sobre a necessidade da aprovação de um projeto de lei para proteger crianças e adolescentes na internet. No dia seguinte, mais de 200 entidades de defesa da infância já haviam assinado uma carta criada pelo Instituto Alana para votação do PL 2628 em regime de urgência. 

Resta saber qual versão do projeto de lei 2628: a editada pelas big techs com apoio da extrema direita ou a que realmente enfrenta o modelo de negócio dessas gigantes para proteger os direitos da infância. 

Colaborou: Laís Martins

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