Dois agentes da Polícia Federal especialistas em inteligência pediram licença não remunerada em abril e maio para trocar o Brasil pela mesma cidade onde hoje Eduardo Bolsonaro vive nos EUA: Arlington, no Texas.
Um deles, ex-colega de turma de Eduardo na academia da corporação, chegou a atuar com varredura de escutas no gabinete de Alexandre de Moraes em 2022, segundo um servidor da PF que pediu anonimato. A outra é bolsonarista e comemorou nas redes sociais a eleição de Donald Trump. A justificativa oficial para as licenças são “interesses particulares”.
Os agentes André de Oliveira Valdez e Letícia da Cunha Padilha, que são casados, desembarcaram em Miami, na Flórida, no final de 2024, logo após a vitória de Donald Trump nas eleições dos EUA.
Em abril e maio de 2025, abriram mão de seus cargos na Diretoria de Inteligência Policial, a DIP, e pediram licença não remunerada da Polícia Federal. Publicações nas redes sociais mostram que o casal está junto em Arlington, no Texas, pelo menos desde abril e vive uma rotina discreta na vizinhança de locais frequentados por Eduardo Bolsonaro e sua mulher, Heloísa.
A mudança de país levanta suspeitas de agentes da PF ouvidos sob anonimato e especialistas consultados pelo Intercept Brasil de que o casal poderia ter usado informações estratégicas da área da inteligência para municiar Eduardo Bolsonaro e o governo dos EUA.
A DIP é uma das principais áreas da Polícia Federal, onde se concentram os inquéritos considerados mais sensíveis da instituição, como o de tentativa de golpe e da Abin paralela. Valdez e Padilha atuavam nesta diretoria no governo Bolsonaro e continuaram na gestão de Lula, mesmo sendo considerados por seus colegas como “contaminados” pelo bolsonarismo.
A licença de Valdez começou a valer em 16 de abril, menos de um mês após Eduardo Bolsonaro anunciar que se mudaria para os EUA com o objetivo de influenciar Donald Trump em prol da anistia de seu pai.
O novo endereço foi atualizado no perfil de Valdez no LinkedIn, onde ele se apresenta em inglês como um agente federal que utiliza equipamentos de vigilância e monitoramento com segurança e eficácia, já tendo organizado e executado operações de vigilância secretas.
Antes de ir para os EUA, Valdez trabalhava no setor de Operações de Inteligência da DIP. Especialista em instalar escutas ambientais e câmeras escondidas autorizadas pela justiça, o agente era responsável por fazer varreduras em órgãos públicos para checar a presença de escutas clandestinas. A prática é comum em gabinetes para prevenir ou checar suspeitas de espionagem ilegal.
Valdez participou, inclusive, da varredura feita no Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, antes da posse do ministro Alexandre de Moraes em agosto de 2022, segundo um policial federal que trabalhou no mesmo setor da PF que o agente. Essa é uma das razões que levantam suspeitas de servidores da PF ouvidos pelo Intercept.
“A DIP é o setor que produz as informações mais sensíveis da agência e que tem mais poder e discricionariedade de vigilância. Um vazamento por parte da DIP é do maior grau de risco que se pode imaginar em termos de investigações conduzidas pela PF”, explica André Ramiro, pesquisador visitante do Digital Civil Society Lab da Universidade de Stanford e especialista em tecnologias de vigilância.
Ele ainda pontua os riscos de uma possível colaboração ilegal entre agentes da DIP com políticos. “Tanto para a confiabilidade da instituição, prejuízo às investigações em curso e aos bens jurídicos que são tutelados, como o estado democrático de direito, proteção das instituições e dos direitos fundamentais dos alvos afetados pela última gestão presidencial, como jornalistas e opositores políticos”, afirma.
“Isso pode gerar não somente chantagens diretas a esses indivíduos, mas também um aparelhamento dessas informações para inflamar o jogo geopolítico que vem resultando, por exemplo, nas taxações absurdas ao Brasil”, completa Ramiro.
Procurado pelo Intercept, o agente da PF André Valdez disse que não compartilharia informações dele e da sua família. “Você está insinuando que eu estou envolvido de alguma forma nessa trama. Não tem motivo de expor a mim e a minha família”, escreveu, em mensagem.
Por e-mail, o Ministério da Justiça nos orientou a procurar a Polícia Federal para comentar o assunto. Sem entrar em detalhes, a PF informou por e-mail que concedeu a licença não remunerada a Valdez e Padilha por não identificar conflito de interesse na atividade declarada por eles como de interesse particular.
Além disso, a Polícia Federal declarou que os servidores licenciados nessa modalidade não têm acesso aos sistemas de informação da corporação nem a demais ativos de tecnologia da informação do órgão.
Ex-chefe de agente ‘contaminada’ por bolsonarismo foi indiciado no inquérito da Abin Paralela
André Valdez entrou na Polícia Federal em 2010, na mesma turma do então escrivão da PF Eduardo Bolsonaro. Os dois se formaram no mesmo ano.
O agente se casou com a colega Letícia da Cunha Padilha oficialmente em 2022, após mais de 10 anos de relacionamento. O casal é natural do Rio Grande do Sul e amigo do deputado Ubiratan Sanderson, do PL gaúcho. Sanderson é um policial federal que teve sua candidatura turbinada com o apoio de Eduardo Bolsonaro nas eleições de 2018.
Embora estivessem lotados no mesmo órgão dentro da Polícia Federal, a DIP, o casal não trabalhava junto. Padilha atuava na sede da PF localizada na W3 Norte em Brasília, enquanto Valdez atuava em um prédio da PF no Setor Policial Sul, também na capital federal.
A licença não remunerada de Padilha saiu em maio, um mês após a do marido. A agente é especialista em investigações de crimes cibernéticos, mas ultimamente trabalhava nas áreas de requisições de compras e capacitação.
Dentro da DIP durante o governo Lula, Padilha tinha o cargo de substituta eventual do chefe da Divisão de Prospecção e Gerenciamento de Ferramentas de Inteligência.
No último ano do governo Bolsonaro, seu chefe foi o delegado da PF Alessandro Moretti, com quem, segundo servidores da corporação ouvidos pelo Intercept, mantinha relação próxima a ponto de lhe garantir uma atividade de confiança, que era a chefia dessa área de prospecção e do centro de análise de organizações criminosas.
Ex-braço direito de Anderson Torres, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Moretti chegou a ser diretor-adjunto da Agência Brasileira de Inteligência, Abin, no começo do governo Lula. Mas sua presença gerou uma crise com a PF, já que não era considerado confiável pelo alto escalão do Ministério da Justiça do PT.
Recentemente, Moretti – assim como Anderson Torres – foi um dos indiciados no inquérito sobre a Abin Paralela por suspeita de envolvimento com a organização criminosa que espionava inimigos políticos de Bolsonaro com o software israelense FirstMile.
Embora seja difícil de associar diretamente o First Mile, que era da Abin, com as atividades da DIP, Ramiro explica que mudanças recentes na regulação, como o Decreto 10.445 que instituiu o Centro de Inteligência Nacional, abriram margem para facilitar o compartilhamento de informações sensíveis entre órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência. “Esse movimento de mudança de agentes do departamento para os Estados Unidos tem grandes chances de envolver um tráfico de informações e influência”, afirma o especialista.
Apesar de não ter trabalhado diretamente nos inquéritos da DIP, Padilha demonstrava insatisfação diante das operações contra a tentativa de golpe. “Ela externava que ficava incrédula, com opiniões contrárias a essas operações”, relatou ao Intercept um servidor da PF, na condição de anonimato.
Padilha é filha de um major da reserva do Exército, apoiou Bolsonaro na campanha de 2018 e se filiou ao União Brasil em 2020. Em novembro do ano passado, a agente também comemorou a vitória de Trump nas eleições dos Estados Unidos em uma publicação nas redes sociais com o hino do país norte-americano.
LEIA TAMBÉM:
- Bolsonaro é o boi de piranha de Trump
- Pedido de investigação dos EUA contra o Brasil foi criado por advogada que atuou em escritório de lobby ligado a big techs
- PL usou R$ 600 mil de dinheiro público para pagar sócio de Eduardo Bolsonaro
A agente Letícia da Cunha Padilha, não respondeu aos questionamentos do Intercept. Em uma aula que deu ao Instituto de Defesa Cibernética no final de julho, Padilha disse que estava cursando um MBA de inteligência artificial nos Estados Unidos.
O Intercept ainda entrou em contato com os deputados federais Eduardo Bolsonaro e Ubiratan Sanderson, e com o ex-chefe da DIP Alessandro Moretti. Não houve retorno até a publicação da reportagem.
Arlington, o destino dos bolsonaristas nos EUA
O deputado licenciado Eduardo Bolsonaro se coloca como principal articulador, ao lado do influenciador de extrema direita Paulo Figueiredo, das sanções de Donald Trump contra o Brasil. Em julho, o presidente dos EUA anunciou um tarifaço de 50% sobre produtos brasileiros.
A chantagem – uma interferência extrema dos EUA na política interna brasileira – visa proteger os interesses comerciais das big techs, que se posicionam contra a regulação de redes sociais defendida pelo Brasil, e também livrar Jair Bolsonaro e outros golpistas de punição.
Eduardo articula desde o ano passado ações com a extrema direita dos EUA para tentar livrar seu pai. Em março, já com Trump presidindo o país e uma condição favorável para obter o apoio, o deputado se licenciou e mudou para o Texas.
A cidade de Arlington, escolhida por ele, possui cerca de 400 mil habitantes e fica na região metropolitana de Dallas, a mais de 2 mil quilômetros da capital Washington. Arlington é conhecida por seus centros de entretenimento, como o AT&T Stadium, onde Eduardo e Heloísa Bolsonaro assistiram à final de um campeonato de rodeio no dia 17 de maio.
A Câmara Municipal de Arlington possui ainda um dos poucos brasileiros eleitos para cargos políticos nos Estados Unidos, o vereador trumpista e bolsonarista Maurício Galante.
Em suas redes sociais, Letícia da Cunha Padilha compartilha um pouco da sua vida no novo país. No começo de abril, por exemplo, ela publicou um vídeo em um parque que fica a 15 minutos do AT&T Stadium, e a pouco mais de 20 minutos de carro da antiga sede de uma empresa que Eduardo Bolsonaro foi sócio, a Braz Global Holding.
O endereço de Eduardo e sua mulher, Heloísa, é desconhecido. Mas uma reportagem do Estadão de junho de 2025 mostrou que um vídeo publicado por Heloísa foi gravado em uma rua de Arlington que fica a poucos minutos da antiga sede da empresa de Eduardo.
Após reportagens sobre o paradeiro de Eduardo, Heloísa excluiu boa parte de suas publicações e passou a ter uma presença mais discreta nas redes sociais.
Colaboraram nesta reportagem Francisco Amorim, Laís Martins, Paulo Motoryn, Tatiana Dias e Vinícius Madureira.
O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.
Enquanto Nikolas, Gayers, Michelles e Damares ensaiam seus discursos, quem realmente move o jogo político atua nas sombras: bilionários, ruralistas e líderes religiosos que usam a fé como moeda de troca para retomar ao poder em 2026.
Essas articulações não ganham manchete na grande mídia. Mas o Intercept está lá, expondo as alianças entre religião, dinheiro e autoritarismo — com coragem, independência e provas.
É por isso que sofremos processos da Universal e ataques da extrema direita.
E é por isso que não podemos parar.
Nosso jornalismo é sustentado por quem acredita que informação é poder.
Se o Intercept não abrir as cortinas, quem irá? É hora de #ApoiarEAgir para frear o avanço da extrema direita.