Descobrimos que milhões de reais em impostos de bets não chegaram ao governo e entidades

CADÊ O DINHEIRO DAS BETS?

Descobrimos que milhões de reais em impostos de bets não chegaram ao governo e entidades


Seis meses depois de a tributação das bets entrar em vigor, os ministérios beneficiados pela legislação ainda não viram toda a cor do dinheiro pago em imposto pelas casas de apostas. Entidades sociais contempladas pela lei também reclamam que a parte que lhes cabe não está caindo na conta como devia.

No Brasil, 79 operadores de apostas, as chamadas bets, já pagaram R$ 2,37 bilhões em outorga fixa – licença válida por cinco anos – para operarem no país. Mas sabe quantas não estão honrando corretamente as contribuições sociais previstas em lei? Ninguém sabe dizer.

O motivo é que não há previsão em lei de qualquer mecanismo de fiscalização desses repasses e as bets se negam a abrir dados da receita bruta após o pagamento dos prêmios, o chamado Gross Gaming Revenue, mais conhecido pela sigla GGR.

Na prática, o GGR é o valor de quanto os apostadores perderam para as bets. É sobre esse montante que é calculado o tributo de 12% em impostos a serem pagos previsto na Lei das Bets. Esse valor, porém, recentemente foi ampliado para 18% pela medida provisória 1.303, na qual o governo Lula propôs alternativas ao aumento do Imposto sobre Operações Financeiras, o IOF – mas os 18% só começam a valer em outubro e, até lá, a medida precisa ser validada pelo Congresso.

Pela lei, desde 1º de janeiro de 2025 os operadores de apostas devem destinar 12% do GGR para pagar as fatias correspondentes aos órgãos do governo federal, às entidades sociais privadas – como os comitês olímpico e paralímpico e a Federação das Apaes – e aos detentores dos direitos de imagem envolvidos nas apostas esportivas.

Mas quanto valem, em reais, as fatias dessa pizza de 12% do GGR? Pelo menos R$ 1,9 bilhão nos cinco primeiros meses de mercado regulamentado ativo, segundo cálculo feito pelo Intercept Brasil – os pagamentos começaram a ser feitos a partir de fevereiro deste ano.

Para chegar a este valor cruzamos valores que o Ministério da Educação, o MEC, informou que deveria receber – que representam 10% do total, segundo a lei – com informações da arrecadação da União fornecidas pela Receita Federal via Lei de Acesso à Informação.

Em abril, por exemplo, o MEC calculou que a sua fatia de 10% representava R$ 40,8 milhões. Já a Receita informou que os 86,4% do total que cabem à União somaram R$ 354,1 milhões. Isso indica que o tamanho total da pizza no mês foi entre R$ 408 milhões e R$ 410 milhões. 

A partir deste cruzamento dos dados mês a mês, a soma chega ao acumulado de pelo menos R$ 1,9 bilhão entre fevereiro e junho de 2025. O valor é superior ao informado por associações das bets em carta divulgada no início de junho, na qual elas se colocaram contra o aumento da taxa de 12% para 18% proposto pelo governo Lula. 

No documento, as bets informaram a previsão de pagar R$ 4 bilhões em contribuição tributária e social em todo 2025 – mas, caso a média mensal dos primeiros cinco meses se mantenha nos seis meses restantes, de julho a dezembro, este total pode se aproximar de R$ 4,2 bilhões, mesmo com a taxa em 12%.

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Mas a verdade é que as bets só falam em estimativa para manter o GGR de cada operador em sigilo, pois entendem que divulgar essa informação desprotege seus negócios. Afinal, a partir do valor do recebido de uma bet, qualquer entidade consegue não só calcular o GGR individual como identificar qual fatia cada uma tem do mercado de apostas.

A Secretaria de Prêmios e Apostas, a SPA, ligada ao Ministério da Fazenda, apresentou uma solução em janeiro. A partir de uma portaria, permitiu que as bets se unissem em consórcios destinados a intermediar esses pagamentos. Hoje, 48 marcas fazem parte do Escritório Nacional de Rateio, entre elas Betano, Superbet, Blaze e GaleraBet, quatro das bets de maior investimento publicitário do país.

“O Escritório é sustentado por mensalidades das afiliadas. Somos prestadores de serviço. O setor precisava de uma solução que equacionasse o problema. As operadoras não querem fazer o pagamento direto porque expõe o GGR. Querem fazer um PIX só e ficar livre. E a gente vai repartir o dinheiro entre quem é de direito”, explica João Paulo Bachur, da Horta Bachur Advogados, idealizador do Escritório e genro do ministro Gilmar Mendes, do STF.

Duas portarias da SPA deram prazo de 180 dias para o Escritório se estruturar, limite que venceu no fim de junho, com os primeiros pagamentos, retroativos, tendo sido realizados no último dia 10 de julho. Apesar desses depósitos, a conta ainda não é totalmente transparente. 

No fim de junho, o Ministério da Fazenda abriu uma consulta pública sobre o tema, que já era prevista na portaria de janeiro. A ideia é buscar uma solução melhor do que a atual. Uma alternativa que estaria sendo cogitada na Fazenda é o governo cobrar o dever regulatório de pagar e punir as casas de apostas que não fizerem o recolhimento do percentual previsto na lei.

Sem fiscalização, governo e entidades ficam no escuro

Em resposta a pedidos formulados com base na Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Fazenda tem dito que não consegue assegurar “a precisão, a integridade e a fidedignidade” de dados referentes ao imposto que deve ser pago pelas bets por causa da “complexidade do processo de consolidação e validação das informações recebidas” no Sistema de Gestão de Apostas, o Sigap.

O ministério comandado por Fernando Haddad promete divulgar um balanço trimestral ainda em julho, o que entidades beneficiadas aguardam com ansiedade.  Elas reclamam – sem querer se expor publicamente – que estão no escuro, pois não sabem quanto deveriam ter recebido, quanto devem receber por mês nem podem se organizar para investir esse dinheiro.

Tudo que elas sabem é que não estão recebendo tudo que deveriam. O Comitê Olímpico do Brasil, o COB, por exemplo, recebeu R$ 24,4 milhões nos primeiros cinco meses. No entanto, com uma fatia de 2,20% da pizza, deveria ter pelo menos R$ 41 milhões na conta, considerando o total de R$ 1,9 bilhão calculado pelo Intercept. O mesmo ocorre com o Comitê Paralímpico Brasileiro, o CPB: recebeu R$ 16,2 milhões, mas teria direito a pelo menos R$ 24,7 milhões.

Já as federações nacionais das associações Pestalozzi, a Fenapestalozzi, e das Apaes, a Fenapaes, têm fatias idênticas de 0,2% da pizza. Até agora, uma recebeu em torno de R$ 1,5 milhão e, a outra, R$ 1,7 milhão. Considerando um imposto total de pelo menos R$ 1,9 bilhão, entretanto, ambas teriam direito a receber R$ 3,8 milhões cada. 

‘Não tem como calcular’

Diferentemente do governo, que recebe o valor desses tributos a partir de Documentos de Arrecadação de Receitas Federais, os DARFs, emitidos pela Receita Federal com base no que cada casa de aposta declarou ter movimentado no período, as entidades privadas beneficiadas precisam esperar o PIX de cada bet aparecer na conta. 

Quando o dinheiro cai, elas não têm como checar se o valor corresponde ao percentual que têm direito, de acordo com a lei. “Não temos acesso à base de cálculo utilizada para os repasses e, por essa razão, não é possível aferir se o montante recebido corresponde integralmente ao que determina a legislação”, afirmou o órgão paralímpico ao Intercept.

Até mesmo ministérios consultados pelo Intercept têm apontado dificuldades de calcular e receber a parte que lhes cabe na pizza. O do Esporte, que tem direito a uma fatia de 22,2%, afirmou, em nota, que “não tem informações sobre os valores arrecadados e não tem como calcular o quanto deveria ter sido recebido”. Disse ainda que, “até a presente data [25 de junho], não recebeu valor algum relacionado à referida lei”.

Já o Ministério do Turismo informou que até 25 de junho havia recebido somente R$ 10,9 milhões de um total de R$ 295 milhões que cabiam à pasta. Mas o valor está subdimensionado. Afinal, a pasta vem calculando que tem direito a 22% da parte que cabe ao governo e não a 22% do total de imposto pago pelas bets, como diz a lei. 

Essa dificuldade somada à falta de transparência faz com que, por enquanto, pouco dinheiro chegue ao destino previsto na legislação. O Ministério da Educação, por exemplo, ainda não regulamentou de que forma vai repassar cerca de R$ 300 milhões que as escolas têm a receber via Programa Dinheiro Direto na Escola, o PDDE, como prevê a Lei das Bets.

Ao Intercept, o Tesouro explicou que “as arrecadações vinculadas são alocadas em fontes orçamentárias específicas dos órgãos para disponibilização aos mesmos em conformidade com as diretrizes da Lei de Diretrizes Orçamentárias”.

As duas principais associações que representam casas de apostas, a Associação Nacional de Jogos e Loterias, a ANJL, e o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, o IBJR, dizem que seus associados estão em dia com os tributos. Apesar dos nossos pedidos, nenhuma se dispôs a indicar um porta-voz para ser entrevistado sobre o assunto.

Brechas na lei congelam 7,3% do dinheiro dos impostos

A falta de mecanismos de fiscalização e a recusa das bets em informar o GGR não são os únicos problemas para assegurar que a lei seja cumprida e as casas de apostas recolham o valor correto do imposto que devem. Brechas na legislação têm congelado o repasse de 7,3% do dinheiro.

Eles se referem a uma contrapartida a ser paga “às entidades do Sistema Nacional do Esporte e aos atletas brasileiros ou vinculados a organizações de prática esportiva sediada no país”, segundo a lei, por direito de usar nomes, apelidos esportivos, imagens, marcas, emblemas, hinos, símbolos e outros elementos “para divulgação e execução da loteria de apostas de quota fixa”.

O termo que tem sido usado para se referir a esta fatia da pizza é “direito de arena”. Na prática, funciona assim: se é feita uma aposta em um gol de um determinado jogador no jogo entre Flamengo e Corinthians pela Série A do Brasileirão, isso significa que o atleta, os dois clubes e a CBF têm direito, cada um, a um pedaço desses 7,3%. 

O ponto é: essa divisão será feita em qual proporção? Ninguém sabe. Na portaria de janeiro, a Secretaria de Prêmios e Apostas, SPA, definiu que cada campeonato deve detalhar isso no seu regulamento – o que nenhuma confederação do país fez até agora, nem CBF nem as estaduais. 

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No futebol, que segundo fontes do mercado concentra cerca de 90% das apostas esportivas, há uma queda de braço entre clubes, atletas e a CBF sobre o destino do dinheiro – que pode chegar a R$ 300 milhões por ano, segundo a projeção das bets e o cálculo feito pelo Intercept.

A CBF afirmou ao Intercept que “está discutindo o tema e, juntamente com os demais interessados, vai criar mecanismos para ratear os recursos de maneira a buscar, sempre, o desenvolvimento do futebol”. Sem esses mecanismos, entretanto, cerca de R$ 140 milhões que pertencem ao futebol deixaram de ser pagos nestes primeiros cinco meses – e, neste caso, não por culpa das bets.

Mas o gargalo não se restringe ao futebol. Repasses à Confederação Brasileira de Basquete, a CBB, por apostas feitas na NBA, ou à Confederação Brasileira de Tênis, a CBT, por apostas em torneios do mundo todo, por exemplo, hoje estão represados por ausência de regulamentos definindo o destino do dinheiro.

A divisão entre as modalidades é feita por proporcionalidade, em modelo inspirado no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad, considerando toda a receita de uma bet, incluindo apostas esportivas e em slots, como o Tigrinho. Se 90% das apostas em uma bet forem em futebol, então 90% dessa fatia de 7,3% da pizza deve ser paga ao futebol – e assim por diante.

Há, contudo, uma preocupante exceção, até aqui ignorada no debate público: se uma bet não aceita apostas esportivas, ela não precisa pagar essa fatia de 7,3% a ninguém. Ou seja, as casas de apostas que trabalham exclusivamente com cassino e Tigrinho pagam menos imposto – e nenhuma das 678 emendas feitas à medida provisória 1.303, do governo Lula, tentou corrigir isso na Lei das Bets.

Correção: 22 de julho de 2025, 12h45

O texto foi atualizado para corrigir que foi a CBF, e não a Secretaria de Prêmios e Apostas, SPA, que afirmou estar discutindo a criação de mecanismos para ratear o dinheiro da fatia de 7,3% dos impostos para direito de imagem.

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