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Apocalipse nos trópicos, da Netflix, irrita Malafaia e erra ao simplificar força de evangélicos na política

O novo documentário da Netflix, Apocalipse nos trópicos, deixa a desejar e desinforma sobre o que está por trás das alianças dos evangélicos com o bolsonarismo.

Cartaz do filme Apocalipse nos Trópicos, da diretora Petra Costal, que estreou em 14 de julho na Netflix (Foto: Reprodução)

A grande expectativa em relação ao novo filme da cineasta Petra Costa, “Apocalipse nos trópicos”, acabou seguida de uma certa frustração. O documentário, que estreou mundialmente na Netflix na segunda-feira, 14, recebeu aplausos em salas de cinema, onde está sendo exibido desde 3 de julho.

Mas, se desagradou a direita e os evangélicos conservadores – como já era esperado –, também não convenceu parte da esquerda e dos evangélicos considerados progressistas, que seriam, principalmente, o seu público principal.

Uma espécie de continuação de “Democracia em vertigem”, de 2019 – que foi indicado ao Oscar –, e com produção executiva do festejado ator americano Brad Pitt, “Apocalipse nos trópicos” deixou a desejar, na avaliação de religiosos e estudiosos da ascensão dos evangélicos no Brasil, porque não teria ido a fundo na abordagem desse tema tão crucial.

O objetivo do documentário, ao menos aparentemente, era mostrar o crescimento da fé evangélica no Brasil e o alinhamento de bispos e pastores líderes desse segmento com a extrema direita. Mas não fica claro, em determinados momentos, se a ideia era contar como o ex-presidente Jair Bolsonaro chegou ao poder com o apoio dos evangélicos ou, por acaso, explicitar o papel e a importância do pastor Silas Malafaia no meio evangélico e no governo.

Cartaz do filme Apocalipse nos Trópicos, da diretora Petra Costal, que estreou em 14 de julho na Netflix (Foto: Reprodução)
Cartaz do filme Apocalipse nos Trópicos, da diretora Petra Costal, que estreou em 14 de julho na Netflix, (Foto: Reprodução)

O filme relata – e bem – a tragédia no Brasil com a eleição de Bolsonaro em 2018, antes da prisão de Lula; o conluio do então juiz Sergio Moro com o procurador Deltan Dallagnol para impedir a eleição do líder petista naquele ano; a tragédia da pandemia no país e a omissão do desgoverno bolsonarista; o circo montado em frente aos quartéis por manifestantes de direita com o apoio de militares; a armação do golpe para impedir a posse do atual presidente e os ataques do 8 de Janeiro.

Para quem é de fora do Brasil e não acompanhou atentamente esses fatos, “Apocalipse nos trópicos” descreve o que ocorreu, com cenas fortes, como na invasão ao Palácio do Planalto e outras instituições. Mas, talvez, exatamente por que a ideia era mostrar aos gringos o que houve, o filme não se aprofundou na análise dos fatos. O objetivo seria facilitar a compreensão de quem vê de fora e, por isso, tudo foi resumido, abordado rapidamente e de maneira mais superficial.

Sobre o avanço desse ativismo evangélico conservador e seu alinhamento com a extrema direita, a história é contada nas telas por meio de depoimentos e discursos do pastor Silas Malafaia, entrevistado por Costa. Assim, Malafaia ganhou uma proporção muito maior do que, de fato, ele tem no segmento.

Malafaia, na entrevista, se revela, é verdade. Dá sinais de que sonha com um teocracia evangélica no Brasil e exibe o seu viés autoritário, por exemplo, em momentos como o que foi flagrado dirigindo em meio à balbúrdia do trânsito carioca e, ao ser cortado por um jovem motoqueiro, deixou escapar que seus seguranças poderiam “dar um susto no rapaz”.

O pastor sabe utilizar muito bem a mídia. E aproveitou muito bem o espaço ofertado por Costa no documentário. Vendeu a sua imagem de um líder religioso e político poderoso – embora não seja o único no país –, bem como de um suposto articulador e estrategista no campo conservador, que daria as cartas no bolsonarismo e determinaria as condutas e ações do ex-presidente Jair Bolsonaro e sua trupe.

Malafaia não é tudo isso. Mas propagar a ideia de principal líder religioso com esse imenso poder lhe interessa. Trará dividendos políticos a ele. Malafaia é hoje o mais midiático, o mais verborrágico e talvez mais barulhento e espalhafatoso pastor evangélico no país. É o que mais tem espaços na chamada mídia hegemônica, que costuma amplificar o seu discurso. 

Mas não é o maior líder evangélico do país. Nem a sua igreja, a Assembleia Vitória em Cristo, a Advec, está entre as principais. É apenas um ramo, entre os menores, da Assembleia de Deus.

“Apocalipse nos trópicos” estreou no dia 3 de julho nos cinemas. (Foto: Netflix/Divulgação)

Somando os seus vários grupos, aí sim a Assembleia de Deus se torna a maior denominação evangélica do Brasil, com 12,3 milhões de fiéis, segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2010, sobre o tamanho das denominações religiosas. Os ramos do Belém, em São Paulo, e Madureira são os maiores e os que mais elegem políticos no Brasil, exercendo assim mais influência.

Correntes evangélicas como a Assembleia de Deus Madureira, liderada pelo bispo Samuel Ferreira, e a Igreja Universal do Reino de Deus estão entre os grupos hoje com mais peso do que o de Malafaia. Sem contar que os batistas, presbiterianos e luteranos, além de várias outras igrejas pentecostais e neopentecostais – como disse ao Intercept Brasil o deputado e pastor Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara e aliado de Malafaia –, também têm seus projetos políticos. Todos eles, simplesmente ignorados e desconsiderados no documentário. 

O poder e a representatividade de Malafaia não vêm, de fato, só de sua igreja e de seu número de fiéis. Ele ampliou esse leque. É um televangelista de sucesso e produz hoje conteúdo nas redes sociais que pastores conservadores com pequena ou média projeção no país ajudam a espalhar. 

A única questão é que ele não representa o conjunto dos evangélicos. E está longe de ser o único responsável por esse casamento entre os evangélicos e a extrema direita. Mas só ele e seu grupo falam no filme de Petra Costa.

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O campo evangélico é muito mais complexo do que o pontual contraponto apresentado no filme pelo pastor Paulo Marcelo Schallenberger, ligado à Assembleia de Deus e ex-aliado do pastor e deputado Marco Feliciano, do PL de SP. Tido na campanha de 2022 como um provável interlocutor de Lula junto aos evangélicos, Schallenberger, na verdade, não tinha prestígio e representatividade entre bispos e pastores conservadores nem progressistas.

Costa deu o espaço no documentário que Malafaia desejava para se projetar ainda mais. Mas, apesar desse afago não intencional ao pastor, os evangélicos não são retratados de maneira simpática em “Apocalipse nos trópicos”. Isso dá – e na verdade já deu – munição a Malafaia para denunciar uma suposta perseguição religiosa aos evangélicos.

Assim, o pastor tirou proveito duplamente da longa entrevista concedida a Petra. Ele se exibiu como o grande e articulado líder religioso nas telas.

E ganhou dos dois lados. Agora, aparecendo como o defensor de seu rebanho incompreendido, passa a reclamar da alegada perseguição religiosa.

Malafaia se diz atacado e traído, depois de receber a cineasta no café da manhã em sua luxuosa casa no Rio, de aparecer ao lado da equipe de filmagem dirigindo sua BMW blindada ou a bordo de seu jatinho particular, apelidado de “Favor de Deus”.

Evangélicos progressistas temem que o documentário possa turbinar mais o discurso de Malafaia com essa alegação de perseguição. O pastor já ensaiou essa vitimização ao sair de uma sala de exibição no Rio, em sessão privada para a qual fora convidado, no início do mês, esbravejando contra o filme.

Religiosos e estudiosos de religião comentaram, em conversas reservadas, que o documentário não só deixa a desejar como também desinforma o público: quem assiste entende de forma muito simplista o que está por trás de todas as alianças dos evangélicos com o bolsonarismo e sai sem a compreensão ampla do que é e significa esse segmento religioso.

O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.

Enquanto Nikolas, Gayers, Michelles e Damares ensaiam seus discursos, quem realmente move o jogo político atua nas sombras: bilionários, ruralistas e líderes religiosos que usam a fé como moeda de troca para retomar ao poder em 2026.

Essas articulações não ganham manchete na grande mídia. Mas o Intercept está lá, expondo as alianças entre religião, dinheiro e autoritarismo — com coragem, independência e provas.

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