Juliane Furno

Juliane Furno

Tarifas de Trump são ataque dos EUA contra quem ameaça seu poder imperialista

Mais do que a reação de um presidente ‘maluco’, ofensiva política e econômica contra países é modus operandi dos EUA diante de crises que questionam sua hegemonia e supremacia.

Donald Trump deu início a guerra de tarifas ao taxar de forma unilateral países que têm relação comercial com os Estados Unidos (Foto: Yuri Gripas/Agência EFE/Folhapress)

Quem busca racionalidade econômica, de política comercial, na decisão de Donald Trump de os EUA aplicarem tarifas de 50% sobre as importações brasileiras, não vai encontrar. Os poucos parágrafos dedicados à questão comercial aparecem só no final da carta e estão recheados de inconsistências. 

O Brasil acumula persistentes déficits comerciais com os Estados Unidos, o que significa que nós importamos muito mais mercadorias dos EUA do que vendemos para eles. Veja que o cenário brasileiro é o oposto do chinês, por exemplo: a China fornece muito mais mercadorias ao mercado do país norte-americano do que compra dele.

A tão bradada expressão “fazer a América grande outra vez” sustenta-se no processo de desindustrialização estadunidense, que viu migrar a indústria de transformação para o leste asiático. Dessa forma,  sobretaxar os produtos dessa região estimularia a decisão de levar a produção, de volta, para o território dos Estados Unidos.

Ocorre que a pauta exportadora do Brasil para os EUA é composta, majoritariamente, de bens primários e não industriais. Ou seja, não há racionalidade econômica por trás da medida. Pelo contrário: com o encarecimento dos produtos brasileiros, os cidadãos estadunidenses poderão ver subir ainda mais o preço dos alimentos, e o poder de compra poderá ser reduzido em função dos custos mais elevados na indústria de  transformação, especialmente pelo encarecimento do ferro e do aço brasileiro.

A justificativa, tampouco, repousa em questões subjetivas do presidente Donald Trump. É um erro atribuir essa ofensiva comercial, selada em generalização do uso de sanções, bloqueios e tarifas, ao mandato do republicano. Os EUA vivenciam uma crise do seu poder imperialista global e estão tensionados pela rivalidade que se acirra no sistema interestatal.

Notem que, nas regras do jogo da dominação dos EUA desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a China está ganhando proeminência e já ameaça o poder estadunidense no campo econômico, tecnológico e, agora, monetário. Ou seja, seria uma questão de tempo para os EUA serem superados ou, pelo menos, obrigados a compartilhar a hegemonia global. Portanto, era necessário virar a mesa e reconstruir uma nova ordem global, não mais assentada no livre comércio.

Donald Trump deu início a guerra de tarifas ao taxar de forma unilateral países que têm relação comercial com os Estados Unidos (Foto: Yuri Gripas/Agência EFE/Folhapress)
Donald Trump deu início a guerra de tarifas ao taxar de forma unilateral países que têm relação comercial com os Estados Unidos (Foto: Yuri Gripas/Agência EFE/Folhapress)

Para refrescar a memória: a ofensiva contra a Organização Mundial do Comércio, a OMC, começa em 2012, no governo de Barack Obama, quando os EUA bloquearam as nomeações de novos juízes para o Supremo Tribunal de Comércio da organização. A justificativa era que a China estaria sendo beneficiada pelo órgão. 

A administração de Joe Biden não só manteve como acrescentou taxas adicionais sobre produtos chineses, como veículos elétricos e painéis solares. Já no governo Trump, houve um recrudescimento do sistema de sanções contra Cuba e Venezuela mantidos no governo democrata. Portanto, essas medidas não podem ser compreendidas como “pontuais” ou do “maluco” do Trump, mas como necessárias em um período de ameaça do poder global dos EUA.

O país norte-americano já vivenciou um período de ameaça do seu poder imperialista na década de 1970. Nesse período, seu poder imperial foi questionado em três flancos: no econômico, com a superioridade da grande indústria japonesa e alemã em relação à dos EUA; no militar, com a derrota da guerra do Vietnã; e no monetário, com a articulação internacional de diversos países desenvolvidos para substituir o dólar como moeda reserva internacional, adotando uma cesta diversa de outras moedas nacionais.

Em 1979, cresciam os questionamentos contra o dólar após o fim da paridade metálica com o ouro. O que é importante reter é que o imperialismo dos EUA, quando se vê ameaçado, atua na ofensiva política, e não no campo defensivo. A resposta a tais eventos na década de 1970 foi elevar substancialmente a sua taxa básica de juros, enquadrando economicamente seus aliados, afirmando a hegemonia do dólar e causando uma grave recessão aos países do terceiro mundo.

Estamos diante de um novo período de crise e questionamento da hegemonia dos Estados Unidos. Dessa vez, diferentemente da anterior, um mesmo país vocaliza o papel de rival econômico e político: a China. O país já superou o PIB dos EUA em paridade de poder de compra e desponta na liderança da fronteira tecnológica. 

No campo militar, os Estados Unidos também assistem o alvorecer de inimigos, notadamente a Rússia e a taxa  de crescimento dos gastos militares chineses, muito maior que a dos EUA, ainda que, no acumulado, o país governado por Trump gaste muito mais. 

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Por fim, há um grande questionamento do privilégio exorbitante dos EUA no campo monetário e das finanças, com a prerrogativa de exportar a moeda do mundo e acumular persistentes déficits comerciais.

A China tem operado um processo de venda dos seus papéis da dívida dos EUA, ainda que muito lento e tímido. Enquanto, de um lado, há uma redução do dólar nas reservas cambiais de diversos países, especialmente China e Rússia, de outro há uma busca por outro e outras moedas fortes. Além disso, no âmbito dos Brics, cresce o desejo de operar parcerias comerciais fora da mediação do dólar – e fala-se até na constituição de uma moeda do grupo.

Portanto, seguindo a história pregressa, frente à atual crise de hegemonia do imperialismo dos EUA, a regra é atuar no ataque. Com muito radicalismo e coesão política, tanto democratas quanto republicanos, com diferenças apenas nas ênfases e nos ritmos, colocam em marcha o projeto de sustentar o papel de supremacia do poder estadunidense. 

Para isso, terão que – paradoxalmente – atuar para desestruturar o sistema econômico que já os fez grande: notadamente a globalização comercial e o fim das barreiras tarifárias.

O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.

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