Como um grupo de vizinhos venceu o Google e barrou um data center no Chile

Como um grupo de vizinhos venceu o Google e barrou um data center no Chile

Moradores de Santiago mobilizaram a comunidade, foram às ruas e pressionaram o governo e a big tech. O resultado? O Google recuou no projeto que gastaria mais de 7 bilhões de litros de água por ano.

Como um grupo de vizinhos venceu o Google e barrou um data center no Chile

A boiada da IA

Parte 6

O aumento da demanda por inteligência artificial tornou o Brasil especialmente interessante para fornecer infraestrutura para big techs. Vale a pena? Nossa série investiga o impacto da indústria de data centers no Brasil.


Quando o Google anunciou planos de construir um segundo data center em Santiago, capital do Chile, um grupo de moradores de Cerrillos, na zona oeste da cidade, resolveu consultar os documentos apresentados pela empresa às autoridades. 

Só aí descobriram que o projeto, com investimento previsto de US$ 200 milhões, obteve, em 2020, autorização do serviço de avaliação ambiental chileno para extrair 228 litros de água por segundo. Isso significa que, em um ano, o projeto consumiria mais de 7 bilhões de litros de água. 

O Chile vivia – e ainda vive – uma seca prolongada. O país está entre os que mais sofrem com risco de ficar sem abastecimento de água até 2040, segundo um relatório do World Resources Institute.

O grupo de vizinhos, muitos dos quais sequer sabiam o que era um data center até então, se organizou e deu origem ao que hoje é o Movimento Socioambiental por Água e Território, o Mosacat. A luta ganhou um impulso extra do estallido social, as manifestações massivas que eclodiram no Chile em 2019, inicialmente contra o aumento nas tarifas de transporte público, mas que abraçaram pautas mais amplas contra o neoliberalismo. 

O grupo angariou apoio de vizinhos, conseguiu pautar o tema em um referendo – e na votação a maioria se posicionou contrária ao projeto do Google – e obteve apoio do governo local.

Em dezembro daquele ano, o grupo ingressou com duas ações na justiça contestando a autorização que o Google havia recebido. Depois de muita pressão popular e inúmeros embates com os ativistas, o Google anunciou, em fevereiro de 2022, que trocaria o método de resfriamento do data center por uma técnica de resfriamento por ar, que não utiliza água do solo.

Em setembro de 2024, um dos tribunais ambientais superiores do Chile determinou que o serviço de avaliação ambiental incorporasse o impacto das mudanças climáticas no território chileno para analisar a viabilidade hídrica do projeto. No mesmo mês, o Google anunciou que estava voltando à estaca zero no planejamento do projeto.

(Foto: Mosacat/Divulgação)
Tania Rodríguez (ao centro) foi uma das ativistas que participou da mobilização para pressionar o Google e o governo local (Foto: Mosacat/Divulgação)

Tania Rodríguez, ativista socioambiental e integrante do Mosacat, alerta em entrevista ao Intercept Brasil como o governo chileno, tem se curvado aos interesses empresariais em detrimento da defesa do meio ambiente – semelhante ao que ocorre no Brasil, que trabalha em uma política nacional de atração de data centers

Em junho, o governo silenciosamente aprovou uma mudança regulatória que dispensa data centers de passarem por um sistema de avaliação de impacto ambiental. “Há um retrocesso ambiental severo impulsionado por esse governo e, no tema de data centers, especificamente, chega a ser vergonhoso”, afirma Rodríguez.

Confira a seguir a entrevista na íntegra:

Como começou o trabalho do Mosacat?

Nós começamos primeiro sem saber o que era um data center. Nos avisaram de que viria este data center grande de Google aqui para Cerrillos e Maipú e, como vizinhos e vizinhas, começamos a nos organizar e nos opor. 

Tivemos que ler a declaração de impacto ambiental que eles enviaram ao governo, porque aqui temos uma instituição encarregada de receber isso e todos temos acesso. Então, desde esse momento adotamos uma visão crítica a esse projeto. Logo de início, olhamos para a utilização da água porque ,aqui no Chile, além de uma seca, que àquela época já durava mais de 10 anos, temos algo diferente: os direitos da água podem ser comprados. A água é negociável, é um bem comercial, você pode comprar até um rio. É um absurdo.

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Então, essa gente comprou os direitos da água e trataram de se instalar aqui na zona oeste de Santiago, onde temos aquíferos, que são como o nosso reservatório. Temos consciência de que é preciso cuidar disso  porque sempre temos dificuldades Cordilheira [dos Andes] acima com a água. Ali há mineradoras, muitas dificuldades e, com chuvas e rejeitos, logo fica todo o resto de Santiago sem água.

E nós aqui na zona oeste somos os que entregamos água [por meio dos aquíferos, que são usados como um reservatório subterrâneo], se há terremotos ou algo assim [que cause falta de abastecimento]. Então, com essa consciência que têm os vizinhos e vizinhas – e aqui tanto faz de que partido são ou foram –, nos unimos  e começamos a fazer resistência e  a tentar convencer nosso governo local, o que nos custou muito.

E conseguiram?

Depois de ver que não adiantava tentar convencê-los, nos demos conta de que teríamos, de qualquer jeito, que conseguir algum advogado. Então, começamos a juntar recursos e pagar mensalmente uma advogada. 

Tínhamos por um lado esse trabalho através da via judicial, mas de outro o plano de conscientizar o resto dos vizinhos e o nosso governo local. Nós tivemos muita vantagem e, por isso, pudemos ganhar do Google naquele momento – e digo naquele momento porque agora o Google está de volta – porque depois houve o estallido social no Chile, levante popular que motivou todos nós a seguir nas lutas.

Tania Rodríguez, ativista socioambiental e integrante do Mosacat (Foto: Divulgação)
Tania Rodríguez, ativista socioambiental e integrante do Mosacat (Foto: Divulgação)

E pudemos demonstrar com força a essa gente que nós conseguimos falar com os executivos do Google. Não só com os chilenos, que estavam na Dataluna [uma representante local do Google]. Fizemos uma primeira aproximação com a Dataluna, e eles nem sabiam do projeto, mas nós sabíamos. Todos nós do grupo temos passagem pelo ativismo, então começamos a ver como podíamos nos organizar, tornar isso perceptível, e formular uma estratégia. 

Conseguimos que, em algum momento, viesse um executivo do Google dos Estados Unidos e nos reunimos com ele, além das pessoas aqui do Chile. Nos reunimos em um sindicato e montamos uma mesa muito grande, com grupos de trabalhadores vestindo camisetas da central única dos trabalhadores, tínhamos companheiras feministas, tinha gente dos grupos de aposentados. Vários grupos nos apoiaram. 

E como foram essas conversas? 

Conseguimos que o governo local ficasse do nosso lado porque, como resultado do estallido social, muitos municípios fizeram pequenas votações, como referendos, pensando em como podíamos sair desse conflito, e cada comuna acrescentava seus problemas locais – como, por exemplo, ‘você quer mais árvores na sua comuna?’ ou ‘você precisa de mais segurança?’. 

E, no meio dessas perguntas, nós incluímos uma sobre o Google, e as pessoas em Cerrillos, pelo menos, porque era o lugar onde ele seria instalado, decidiram que não queriam o Google.  Demos tudo nas ruas para fazer com que os vizinhos entendessem o que era, porque era algo que custaria a todos. 

Foram esses vizinhos que nos autorizaram a dizer: “Olha, se eles não usarem a água, eles podem se instalar”. Essa era a condição. E com isso, começamos a conversar com o Google, finalmente chegamos a um acordo, e eles mudaram o sistema de refrigeração. Mas também ainda não construíram [o data center] até hoje.

E o Google disse a vocês qual vai ser a solução agora?

Sim, vão fazer refrigeração por ar, como um sistema de chillers. Também vimos que uma das questões era se iríamos diminuir a pressão nas redes sociais. E o fizemos.

Depois, eles teriam que apresentar isto ao SEIA [sistema de avaliação de impactos ambientais], que é o orgão responsável. Então, eles fizeram e mudaram esse sistema. Eles já poderiam ter começado a funcionar desde 2020, mas se detiveram por essa pressão social.

E como foi o processo de explicar às pessoas o que é um data center? Esse é um grande desafio aqui no Brasil. 

Isso foi bastante complexo, mas nós conseguimos através de um informativo bem simples. Levávamos essa folhinha de um lado para o outro. Então, falávamos de infraestrutura que armazenava dados, ou seja, armazéns de dados. 

(Foto: Mosacat/Divulgação)
Conscientização sobre os impactos do data center do Google na comunidade foi considerada essencial para obter apoio popular (Foto: Mosacat/Divulgação)

Aqui em Cerrillos, muita gente já sabe o que é um data center porque estivemos muito tempo nas ruas, nas feiras, na saída do metrô, conversando com os vizinhos. Foram muitas conversas, mas era assim, com palavras simples. Porque, ao final, é algo simples. O que acontece é que todos acabam complexificando, por conta da tecnologia e do Vale do Silício, mas isso é um absurdo. No final, é um armazém. 

Na América Latina, especialmente, ser defensor do meio ambiente é uma atividade de risco. Vocês tiveram medo nesse processo?

Sim. Nós nos fechamos como grupo, éramos um grupo muito limitado e não abríamos. E falávamos fortemente de segurança, de que é preciso ter isso claro. 

Fomos muito cuidadosos, e foi uma época dura para o Chile também. Por qualquer razão, podiam te levar preso por causa do estallido social. Mas antes também, na ditadura. Então, nós estamos acostumados, também não nos assusta tanto.

O Chile e o Brasil têm muitos paralelos neste momento. São dois governos de esquerda, mas ambos caíram no encanto da inteligência artificial e das promessas das empresas de tecnologia, ainda que o passado e outras experiências tenham mostrado que nada disso se cumpre. Como você avalia isso?

Aqui tem sido horrível. Esse governo é supostamente de esquerda e supostamente se declara ecologista, mas não é. Há um retrocesso ambiental severo que está sendo impulsionado por esse governo e, no tema de data centers, especificamente, chega a ser vergonhoso. 

Há um plano nacional que estão desenvolvendo e foi muito manipulado para que organizações como nós fizéssemos parte, mas, ao final, nos mantiveram isoladas, não pudemos conversar com os empresários e com o governo. Na última vez que pudemos nos reunir , eram os grupos de donos de data centers e vários ministérios do país.

Era vergonhoso como nossa ministra de Ciência falava de quão positivo era e de como estavam buscando criar cursos em um instituto profissional. E que querem impulsionar as escolas de ensino médio a abrir um tipo de carreira para que os alunos saiam com ferramentas para trabalhar em data centers.

Eu olhava e pensava: como estão falando isso? Em algum momento, falei a eles que isso me parece super irresponsável, porque são tão poucas pessoas que trabalham em data centers e são tão especializados. Vão abrir carreiras e apresentar algo aos estudantes, que, com uma turma de formados, já terá atendido à demanda de todos os data centers. Então, como podem ser tão irresponsáveis?

‘Sabemos que temos razão’

O governo está tão ajoelhado, e todos os governos, para os empresários. Aqui temos uma pessoa encarregada dos ativos nacionais, que é o departamento responsável por todos os territórios e terrenos que pertencem ao país, que apresentou um projeto de instalação de um data center em Antofagasta, onde está nosso deserto. Queriam instalar data centers ali e estavam felizes.

Então, o governo aqui está completamente de joelhos e com uma irresponsabilidade tremenda junto aos empresários. Tem sido vergonhoso, absolutamente vergonhoso. 

E nós saímos às ruas, temos estado aí por conta dessas leis antiambientais que estão sendo propostas e vão afetar a todos – e que chamamos de “a motosserra ambiental”.

É preciso se dar conta que eles trabalham para os empresários, estão ali e se juntam, são todos amigos. E eles nos usam, ainda por cima, para limpar a imagem. 

Você teria uma mensagem de encorajamento aos colegas brasileiros que podem começar essa luta?

Uma das questões que pensávamos era que nós íamos brigar contra o Google, porque aqui seria um dos maiores data centers da América Latina, e nós éramos pessoas simples. Eu sou professora, tínhamos gente que não era nada, aldeões. Então, nós, como vizinhos, conseguimos, com pura força e organização. Isso é muito importante: deter esse tremendo monstro. Acreditamos que era possível e temos que arriscar porque, no final, temos a verdade.

Sabemos que temos razão. A razão é que precisamos viver, precisamos da natureza para viver, e ela e nós fazemos parte de um ecossistema. Temos que cuidar disso e não tem outro jeito. Então, temos que lutar.

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