ChatGPT quer se unir a Trump

ChatGPT quer virar arma de Trump na disputa contra a China

Documento apresentado ao governo Trump pela OpenAI, controladora do ChatGPT, reforça narrativa de uso da IA para o domínio mundial dos EUA

ChatGPT quer se unir a Trump

A OpenAI, empresa responsável pelo ChatGPT, sempre se declarou um tipo diferente de titã das big techs, criada não apenas para atingir uma estratosférica — e crescente —avaliação de 400 bilhões de dólares (2,25 trilhões de reais), mas também para “assegurar que a inteligência artificial geral beneficie toda a humanidade”. 

A meteórica empresa de aprendizado de máquina se apresentou ao mundo em um comunicado de imprensa, em dezembro de 2015, que descrevia uma visão da tecnologia como benefício para todas as pessoas enquanto pessoas, não apenas cidadãos. Não existem os bonzinhos, nem adversários. “Nosso objetivo é promover o avanço da inteligência digital da forma com maior potencial de beneficiar toda a humanidade”, afirmava o anúncio, em tom confiante. “Uma vez que nossas pesquisas não estão restritas por obrigações financeiras, podemos nos concentrar melhor em um impacto humano positivo.”

O discurso inicial da empresa e de seu CEO, Sam Altman, descrevia a inteligência artificial avançada como prenúncio de uma utopia globalista, uma tecnologia que não seria contida por limites nacionais ou corporativos, mas desfrutada em conjunto pela espécie que a gerou. Em uma entrevista antiga com Altman e o outro cofundador da OpenAI, ninguém menos do que Elon Musk, Altman descreveu uma visão da inteligência artificial em comum, “de livre propriedade do mundo”. Quando a revista Vanity Fair perguntou em uma entrevista, em 2015, por que a empresa não havia sido criada com fins lucrativos, Altman respondeu: “Acho que os incentivos inadequados nesse caso ficariam abaixo do ideal para o mundo, de forma geral”.

Os tempos mudaram. E a OpenAI quer convencer a Casa Branca de que também mudou.

Em um livro branco de 13 de março, entregue diretamente ao governo Trump, o vice-presidente de assuntos globais da OpenAI, Chris Lehane, apresentou um futuro próximo de IA, construído com o propósito explítico de manter a hegemonia dos EUA e prejudicar os interesses de seus concorrentes geopolíticos — especificamente, a China. Há inúmeras referências à liberdade no documento, mas a verdadeira palavra-chave é segurança nacional.

A OpenAI não faz nenhuma tentativa de conciliar seu apoio total à segurança dos EUA com as pretensões de estar a serviço de todo o planeta, não apenas de um país. Após iniciar com uma citação do próprio decreto de Trump sobre IA, o plano de ação propõe que o governo crie uma linha direta para que o setor de IA entre em contato com toda a comunidade de segurança nacional, colabore com a OpenAI “para desenvolver modelos customizados para a segurança nacional”, e aumenta o compartilhamento de inteligência entre o setor e as agências de espionagem “para mitigar os riscos à segurança nacional”, em especial da China.

No lugar do tecnoglobalismo, a OpenAI descreve um libelo digno da Guerra Fria, propondo dividir o mundo em campos. A OpenAI pretende se aliar àqueles “países que preferem construir sua IA sobre trilhos democráticos”, e levá-los a se comprometerem a “empregar a IA de acordo com os princípios democráticos estabelecidos pelo governo dos EUA”.

O discurso parece retirado diretamente do teclado de um defensor da política externa “EUA em Primeiro Lugar”, como Marco Rubio ou o deputado Mike Gallagher, não uma empresa cujo site ainda reforça o objetivo de melhorar o mundo inteiro. A palavra “humanidade”, aliás, não aparece hora nenhuma no plano de ação.

Na verdade, o plano pede a Trump, para quem Altman doou 1 milhão de dólares (5,6 milhões de reais) em contribuição à cerimônia de posse, que “assegure que a IA comandada pelos EUA prevaleça sobre a IA comandada pelo PCC” — o Partido Comunista Chinês — “garantindo a liderança dos EUA em IA e um futuro melhor para todos os americanos”.

É uma proposta intrinsecamente nacionalista: os conceitos de “valores democráticos” e “infraestrutura democrática” permanecem praticamente indefinidos para além de sua “americanidade”. O que é uma IA democrática? A IA dos EUA. O que é a IA dos EUA? A IA da liberdade. E claro, qualquer tipo de regulação “pode prejudicar nossa competitividade econômica e minar nossa segurança nacional”, escreve Lehane, insinuando uma fusão completa entre interesses corporativos e nacionais.

Em um comunicado enviado por e-mail, a porta-voz da OpenAI, Liz Bourgeois, se recusou a explicar a guinada nacionalista da empresa, mas defendeu a atuação de segurança nacional.

“Acreditamos que uma estreita colaboração com o governo dos EUA é essencial para promover nossa missão de garantir que a AGI beneficie toda a humanidade”, escreveu Bourgeois, usando a sigla em inglês para Inteligência Artificial Geral. “Os EUA estão em uma posição única para ajudar a moldar as normas globais relacionadas ao desenvolvimento seguro, protegido e amplamente benéfico da IA — fundado em valores democráticos e na colaboração internacional.”

O Intercept dos EUA está atualmente processando a OpenAI pelo uso de artigos protegidos por direitos autorais no treinamento de seu chatbot ChatGPT.

Ainda que a sinceridade do esforço seja discutível, a Open AI passou o último ano treinando seus algoritmos corporativos em lobby patriótico de defesa e um anticomunismo estridente digno do macartismo.

Em seu livro branco, Lehane, ex-secretário de imprensa do vice-presidente Al Gore e assessor especial do ex-presidente Bill Clinton, não defende uma tecno-utopia globalista em que a inteligência artificial beneficia o mundo todo, mas um ultranacionalismo benevolente em que liberdade e prosperidade são asseguradas pela prevalência do domínio dos EUA. Embora o documento mencione brevemente, na última linha, a ideia de “trabalhar no sentido de uma IA que beneficie a todos”, o argumento não é de um verdadeiro benefício global, mas de prosperidade dos EUA que se espalharia para os aliados.

A empresa propõe regras rígidas que isolariam certas parte do mundo, especialmente a China, dos benefícios da IA, sob o argumento de que seriam perigosas demais para serem confiáveis. A OpenAI defende explicitamente uma concepção do mercado de IA que não é internacional, mas é “o mundo inteiro menos a RPC” — a República Popular da China — “e seus poucos aliados”, uma linha que exclui discretamente mais de 1 bilhão de pessoas da humanidade que a empresa diz querer beneficiar, e milhões que vivem sob governos autoritários aliados aos EUA. 

Em nome dos “valores democráticos”, a OpenAI propõe dividir o planeta inteiro em três níveis. Primeiro: “países que se comprometam com os princípios da IA democrática, empregando sistemas de IA de forma a promover mais liberdade para seus cidadãos, podem ser considerados países de Nível 1”. Diante da menção anterior à criação de “IA alinhada aos princípios democráticos estabelecidos pelo governo dos EUA”, a inclusão nesse grupo é clara: os Estados Unidos, e seus amigos.

Em nome dos “valores democráticos”, a OpenAI propõe dividir o planeta inteiro em três níveis.

Abaixo deles estão os países do Nível 2, um purgatório geopolítico definido apenas como aqueles que não conseguiram aplicar de forma suficiente as políticas de controle de exportação dos EUA, nem proteger a propriedade intelectual estadunidense do nível 3: a China comunista. “A China liderada pelo Partido Comunista, em conjunto com um pequeno grupo de países alinhados ao Partido Comunista, representaria sua própria categoria, proibida de acessar sistemas democráticos de IA”, explica o documento. Para manter essas barreiras intactas — e ao mesmo tempo permitir que os países de Nível 2 algum dia cheguem ao topo — a OpenAI sugere coordenar “bloqueios globais contra IA alinhada ao Partido Comunista Chinês” e “proibição de relacionamento” entre outros países e os serviços militares ou de inteligência da China.

Um dos ex-funcionários da OpenAI contou que a preocupação com a China às vezes circulava por toda a empresa. “Definitivamente surgiram receios com espionagem”, disse a fonte, “incluindo: ‘será que pessoas específicas que trabalham na empresa são espiões ou agentes?'”. A certa altura, segundo a fonte, um colega se preocupou com outro colega específico, que descobriram ser filho de uma autoridade do governo chinês. A fonte conta que “algumas pessoas ficaram muito incomodadas com as implicações” de que a empresa tivesse sido infiltrada por estrangeiros, enquanto outras queriam uma resposta real: “alguém que trabalha na empresa é espião ou agente estrangeiro?”.

A adoração pública da democracia ocidental pela empresa não é assim tão imaculada. No começo de maio, a OpenAI anunciou uma iniciativa de construção de data centers e bots personalizados de ChatGPT com governos estrangeiros, como parte de sua iniciativa de construção de infraestrutura de IA chamada “Projeto Stargate”, com custo de aproximadamente 500 bilhões de dólares (2,7 trilhões de reais).

“Este é um momento em que precisamos apoiar países de todo o mundo que preferem construir sobre os trilhos da IA democrática, e oferecer uma alternativa clara às versões autoritárias da IA, que usariam a tecnologia para consolidar o poder”, dizia o anúncio.

O que não está mencionado nessa celebração da democracia da IA é o fato de que entre os apoiadores financeiros do Projeto Stargate está o governo dos Emirados Árabes Unidos, uma monarquia absolutista. Em 23 de maio, Altman tuitou que era “ótimo trabalhar com os EAU” no Projeto Stargate, e descreveu o coinvestidor e assessor de segurança nacional dos Emirados, Tahnoun bin Zayed Al Nahyan, como um “grande apoiador da OpenAI, um verdadeiro fiel da AGI, e um querido amigo pessoal”. Em 2019, a Reuter revelou como uma equipe de hackers mercenários, trabalhando para a inteligência dos EAU sob o comando de Tahnoun, invadiu ilegalmente os dispositivos de vários alvos espalhados pelo mundo, incluindo cidadãos dos EUA.

Diante das perguntas sobre a coerência entre a parceria com a autocracia autoritária de Abu Dhabi e a missão mais ampla de disseminar valores democráticos, a OpenAI mencionou um recente artigo de opinião no site The Hill, em que Lehane discute essa parceria.

“Estamos atuando em estreita colaboração com as autoridades dos EUA para garantir que nossas parcerias internacionais atendem aos mais altos padrões de segurança e conformidade”, escreve Lehane, e acrescenta que “regimes autoritários estariam excluídos”.

No mês passado, representantes da agência de inteligência e os fornecedores que a atendem se reuniram no Complexo de Convenções America’s Center, em St. Louis, para o Simpósio GEOINT, dedicado à inteligência geoespacial, a forma de táticas operacionais que analisa imagens de satélite e de outros tipos para atingir objetivos militares e de inteligência. 

Em 20 de maio, Mulligan subiu ao palco para demonstrar como os serviços da OpenAI poderiam ajudar as agências de espionagem dos EUA e o Pentágono a explorar melhorar a superfície da Terra. Embora a prática de GEOINT pelo governo frequentemente termine no ato de matar, Mulligan usou um exemplo mais suave, demonstrando a capacidade do ChatGPT de identificar o local onde a fotografia de um coelho foi tirada. Era simplesmente um discurso de vendas, baseado no receio de que algum outro país pudesse aproveitar a oportunidade antes dos Estados Unidos.

“O governo muitas vezes considera que usar IA é arriscado demais, e que é melhor e mais seguro continuar fazendo as coisas como sempre fizemos, e acho que essa é a mistura mais perigosa de todas”, disse ela ao público. “Se continuarmos a fazer as coisas como sempre fizemos, e nossos adversários se adaptarem a essa tecnologia antes de nós, eles terão todas as vantagens que estou mostrando a vocês hoje, e nós não estaremos mais seguros.” 

O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.

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