A cada dia, a Polícia Militar da Bahia mata, em média, cinco pessoas. Hoje, o estado tem a maior taxa de letalidade policial do Brasil em números absolutos. Só em 2024, foram 1.557 pessoas assassinadas pela polícia baiana.
Em 2023 e 2024, a PM-BA matou mais pessoas do que todas as polícias dos Estados Unidos juntas, mesmo tendo apenas cerca de 5% da população americana.
O número real de mortes pode ser ainda maior com o avanço das milícias ligadas a policiais. As vítimas são, em sua maioria, homens negros, jovens e periféricos. Especialistas como Samuel Vida, da Universidade Federal da Bahia, apontam o que pode ser classificado como genocídio.
As mortes são legitimadas como “legítima defesa” por um sistema que protege a violência estatal e os interesses das elites.
A escalada ocorre sob um governo supostamente progressista do PT, no poder desde 2007. Como um partido que se diz defensor da justiça racial e da inclusão social pode comandar uma das polícias mais letais do mundo? A causa está na lógica militarizada, que trata segurança como guerra contra as facções, e não como reflexo de falhas estruturais do estado.
A liderança petista na Bahia abraçou com entusiasmo essa lógica militarizada, sem nenhuma diferença da direita; ainda que a direita torne mais explícito, em seu discurso, o projeto de extermínio.
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Desde o governo de Jaques Wagner, programas como o Pacto Pela Vida foram adotados, inspirados no modelo de Pernambuco. Ao contrário de Pernambuco, que reduziu a letalidade com investimento social, transparência, e diálogo com especialistas, a Bahia usou o modelo para militarizar e redirecionar verbas para unidades letais.
Um exemplo é o Prêmio por Desempenho Policial, que recompensa batalhões por redução da violência. Na prática, isso se traduz com metas perseguidas a “qualquer custo”, onde matar vira em “vidas salvas”; uma perversão orwelliana que apresenta assassinatos como feitos heroicos. O PDP não conta mortes por intervenção policial como homicídios, tratando a letalidade como “sucesso“. A PM, responsável pela maioria das mortes no estado, é também quem recebe a maior fatia desses créditos.
Apesar de ter um dos menores efetivos e orçamentos policiais do Brasil, a Bahia concentrou seus recursos em unidades táticas como a RONDESP, BOPE e CIPE. Essas unidades recebem cada vez mais verba, enquanto programas de policiamento comunitário e prevenção social são abandonados. As operações antidrogas aumentaram, e costumam terminar em mortes, alimentando o ciclo da letalidade.
Matar sai mais barato ao estado do que investir em policiamento comunitário, educação ou programas sociais. E o governo da Bahia tem optado conscientemente por essa estratégia.
Essas unidades militarizadas são responsáveis por uma parte desproporcionalmente superior dos assassinatos. Uma análise de uma amostra aleatória de 150 casos de letalidade policial na Bahia entre 2009 e 2023, que totalizaram 246 mortes, revela que a Rondesp sozinha responde por 47% dos casos. Cipe e Bope aparecem logo depois, com 28 e 12, respectivamente. Dar mais poder a essas unidades significa mais mortes.
Desde 2006, foram criadas oito novas unidades militarizadas, incluindo a própria Rondesp, Bope, Patamo (que tem o costume de entrar nos bairros de moto e atirar indiscriminadamente) e Cipe, além da Guarda Municipal de Salvador e novos batalhões da PM.
Enquanto isso, a alta taxa de homicídios na Bahia tem se mantido estável nos últimos anos. No entanto, a letalidade policial continua crescendo de forma alarmante. A proporção de mortes causadas por policiais triplicou desde 2014, passando de 5% para 25%. passando de cerca de 5% para mais de 25% em 2023.
Isso significa que uma em cada quatro mortes violentas na Bahia é causada pela polícia – e estamos falando apenas dos casos registrados. Comparativamente, nos Estados Unidos, a proporção é de uma morte causada pela polícia para cada 18 homicídios, e uma por 9 homicídios no Brasil.
Diferente de estados como Rio de Janeiro ou São Paulo, esse aumento na violência policial não vem acompanhado de aumento no orçamento ou encarceramento em massa. A Bahia tem uma das menores taxas de encarceramento do país, mesmo que as prisões ainda sejam desumanas e superlotadas. Seu orçamento policial segue entre os mais baixos há duas décadas. O que mudou foi o destino do dinheiro: para unidades militarizadas de elite que matam mais, não para tornar a sociedade mais segura. O estado prefere executar suspeitos a prendê-los ou policiá-los.
É isso o que se entende por necropolítica: uma lógica estatal que governa por meio da morte, em que certas vidas – negras, jovens, pobres, periféricas – são, tacitamente ou não, marcadas para o extermínio como forma de “limpeza social”.
A Bahia é um triste exemplo do que acontece quando a Guerra às Drogas se funde com o policiamento militarizado e os incentivos políticos à violência. No Brasil e na América Latina, governos de direita e esquerda adotaram o discurso do “combate ao crime” como guerra, comprando a fantasia de que a violência estatal é solução para a desigualdade, a criminalidade e a insegurança.
O ano de 2025 marca os 200 anos de fundação da Polícia Militar da Bahia. No Brasil, a polícia militar surgiu como instrumento escravagista: para capturar ou matar pessoas negras fugidas e proteger os interesses das elites. Dois séculos depois, a lógica permanece.
Os dados são claros: é hora de rejeitar a lógica da militarização e da guerra às drogas. A esquerda precisa defender princípios de esquerda; caso contrário, abrirá caminho para que uma direita ainda mais militarista eleve o tom, e possivelmente vença na Bahia em 2026 pela primeira vez em mais de duas décadas.
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