Às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018, Eduardo Bolsonaro declarou que bastaria mandar “um cabo e um soldado” caso seu pai, Jair, fosse impedido de assumir a presidência por alguma decisão do Supremo Tribunal Federal, o STF.
Para que não houvesse dúvidas sobre sua intenção golpista, acrescentou: “O que é o STF? Tira o poder da caneta da mão de um ministro do STF, o que ele é na rua? Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter manifestação popular a favor dos ministros do STF? Milhões na rua?”.
Antes de tomar posse, o bolsonarismo já tinha apresentado suas credenciais golpistas. O afrontamento ao Supremo nunca precisou de motivo. Sempre foi uma prática permanente. À época dessa declaração, houve grande indignação na imprensa. O caráter golpista da fala foi explícito demais para que fosse diferente.
Nesta semana, o senador Flávio Bolsonaro, do PL do Rio de Janeiro, fez exatamente o que o seu irmão Eduardo fez há sete anos: ameaçou fechar o STF com a força do Exército caso um bolsonarista vença a próxima eleição.
A ameaça à democracia foi feita de forma clara e direta em entrevista para a Folha de S.Paulo. Desta vez, porém, o assunto passeou de maneira lateral no noticiário. O golpismo e o neofascismo parecem cada vez mais naturalizados pela imprensa profissional, que parece intimidada pela popularidade do bolsonarismo. Tratarei desse tema mais à frente.
Voltemos à entrevista: Flávio, que é considerado por muitos o filho mais moderado e pragmático de Bolsonaro, se sentiu bastante à vontade para fazer a pregação golpista. Sem medir as palavras, o senador deixou claro que existe uma articulação nos bastidores para que o candidato presidencial do campo bolsonarista esteja comprometido com a anistia ou com o indulto para os golpistas.
“Bolsonaro apoia alguém, esse candidato se elege, dá um indulto ou faz a composição com o Congresso para aprovar a anistia, em três meses isso está concretizado, aí vem o Supremo e fala: é inconstitucional, volta todo mundo para a cadeia. Isso não dá. Certamente o candidato que o presidente Bolsonaro vai apoiar deverá ter esse compromisso”, declarou o senador.
Trocando em miúdos: só receberá o aval da família Bolsonaro o candidato que estiver disposto a salvar a pele da bandidagem golpista, mesmo que para isso tenha que pôr um fim na democracia.
Incrédula, uma das jornalistas pergunta se o apoio do ex-presidente estará condicionado a esse compromisso do candidato. Flávio não só confirma como dá detalhes do plano golpista: “Muito além disso. Por isso que eu estou falando que a anistia é o remédio. Porque, vamos supor, aconteceu essa maluquice de condenar Bolsonaro. Ele está inelegível, vai ter que apoiar alguém. Não só vai querer apoiar alguém que banque a anistia ou o indulto, mas que seja cumprido. Porque a gente tem que fazer uma análise de cenário também de que, na hipótese de o presidente dar um indulto para Bolsonaro, o PT vai entrar com um habeas corpus no STF. [Vão declarar que] é inconstitucional esse indulto. Então vai ter que ser alguém na Presidência que tenha o comprometimento, não sei de que forma, de que isso seja cumprido”.
Perceba que, ao final da resposta, Flávio dá uma titubeada e diz não saber como o futuro presidente bolsonarista fará quando o STF decidir que o indulto é inconstitucional. A jornalista pede para o senador explicar e é aí que ele decide desfilar todo seu golpismo sem o menor pudor: “É uma hipótese muito ruim, porque a gente está falando de possibilidade e de uso da força. A gente está falando da possibilidade de interferência direta entre os poderes. Tudo que ninguém quer. E eu não estou falando aqui, pelo amor de Deus, no tom de ameaça, estou fazendo uma análise de cenário. É algo real que pode acontecer”.
Flávio não poderia ser mais claro na sua ameaça à democracia. Não há margem para qualquer outra interpretação. Em determinado momento da entrevista, ele até tenta disfarçar ao chamar a pregação golpista de “análise de cenário”, mas a maneira como a projeção dos acontecimentos é detalhada não deixa dúvida: o bolsonarismo só apoiará o candidato que estiver plenamente comprometido com em dar um golpe de estado para salvar os golpistas da cadeia.
O senador declarou, com todas as letras, que um presidente bolsonarista deverá atropelar a decisão do STF com o “uso da força” e admitiu que isso será uma “interferência direta entre os poderes”. Resumindo: irá mandar o Exército interditar os trabalhos do Supremo. Trata-se da versão atualizada do “é só mandar um cabo e um soldado” — a ameaça golpista feita pelo seu irmão Eduardo em 2018.
Ainda se tem muitas dúvidas sobre quem será o candidato bolsonarista, mas agora, graças a Flávio, temos a certeza de que será alguém que entrará para o próximo pleito comprometido em rasgar a Constituição, passar por cima do Judiciário e livrar os bandidos de estimação do bolsonarismo da cadeia.
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A confissão escancaradamente golpista do filho de Bolsonaro era para ser tratada como um escândalo de grandes proporções pela imprensa brasileira. Está mais do que claro que há uma conspiração em curso, mas pouco ou quase nada se fala sobre isso.
Fomos avisados de antemão que o candidato do bolsonarismo estará comprometido com o “uso da força” contra os outros poderes. E parece que o jornalismo brasileiro está menos incomodado com isso do que deveria. A repercussão foi mínima.
Grandes jornais até se posicionaram contra a declaração do senador, mas quase sempre de forma meio velada, com meias palavras e uma preocupação muito aquém da necessária. Quase ninguém chamou a ameaça golpista pelo nome. O editorial do Estadão foi uma surpreendente exceção. Intitulado “O golpismo corre nas veias” — o que soa irônico vindo de uma empresa que chamava os golpistas de 1964 de “democratas salvadores da nação” — o jornal tratou o assunto como deveria e repudiou a ameaça golpista.
Nas chamadas para a entrevista nas redes sociais, a Folha optou por não usar a palavra “golpe”. Preferiu chamar os leitores dessa forma singela: “Candidato tem que brigar por indulto, diz Flávio Bolsonaro”. Na manchete que encabeça a entrevista, a Folha melhorou um pouco, mas ainda assim evitou o uso da palavra “golpe” e seus derivados: “Flávio diz que candidato de Bolsonaro terá de garantir que STF não derrube indulto, mesmo à força”.
O editorial do O Globo cumpriu o que se esperava dele: condenou as falas do senador, mas evitou a fadiga e também suavizou as palavras. Eis o título e o subtítulo do editorial: “Afirmações de Flávio Bolsonaro sobre ‘uso da força’ vão além do aceitável — Impor perdão por crimes a candidato aliado já é disparate. Insinuar afronta ao STF é uma temeridade”.
A empresa trata a bomba relógio golpista armada pelo bolsonarismo para 2027 como algo “além do aceitável”, um “disparate” ou uma mera “temeridade”. Qual é a dificuldade em chamar pelo nome uma ameaça golpista, feita por gente com histórico golpista? “Temeridade”, meus caros donos do O Globo, é sair na rua no inverno sem camisa. Quando “um cabo e um soldado” aparecerem para fechar a redação, vocês certamente não chamarão isso de “disparate”, não é mesmo?
A defesa da democracia é a função primordial do jornalismo. Trata-se de uma questão de sobrevivência. Não há jornalismo sem democracia e vice e versa. A ameaça explícita de Flávio Bolsonaro não ter virado o principal assunto da grande imprensa brasileira nesta semana revela o grau de comprometimento do jornalismo mainstream com a defesa da democracia.
Durante o governo Bolsonaro, quando o bolsonarismo nomeou a imprensa como inimiga número 1, assistimos à uma imprensa combativa em defesa dos valores democráticos. Mas parece que essa combatividade arrefeceu nos últimos anos, e o golpismo bolsonarista tem sido tratado como um quadro antigo na parede. O fato é que o bolsonarismo segue vivo, atuante, golpista como nunca e apoiado por uma parcela numerosa da população.
Parece que todos estão anestesiados pela campanha golpista que o bolsonarismo liderou nos últimos anos. O golpismo e o neofascismo bolsonarista foram naturalizados no noticiário. E é nesse ambiente que um senador da República se sente à vontade para, mais uma vez, enfiar a faca no pescoço da democracia.
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