No começo da semana, vários veículos jornalísticos traziam a mesma notícia sobre a retomada do julgamento de trecho do Marco Civil da Internet. O que mudava era a manchete.
Uma alertava sobre como uma mudança no MCI acarretaria em um custo milionário aos cofres do Judiciário. Sim, o pobríssimo Judiciário, que não cansa de aumentar remunerações para magistrados. Outra manchete falava que a mudança poderia gerar mais de 750 mil novas ações até 2029.
A fonte das notícias foi um estudo publicado pelo RegLab, um think tank que é financiado por e ligado ao escritório de advocacia Baptista Luz, que atua com clientes das áreas de tecnologia, internet e telecomunicações. Fui atrás do estudo. E lá no pé do documento, já nos anexos, estava escrito que a pesquisa foi financiada pelo Google Brasil Internet Ltda., “empresa que possui interesse direto no resultado do tema 987 do STF”.
Claro, o documento afirma que não houve “qualquer contribuição ou interferência da empresa, que também não influenciou ou interferiu na interpretação dos resultados”. Mas a gente sabe como essa relação opera: quem paga a banda escolhe a música.
Só que essa informação de que foi o Google quem bancou o estudo que apontou que um eventual endurecimento do regime de responsabilidade de intermediários seria ruim para o Judiciário ficou, convenientemente, de fora da notícia nos jornais.
O Google e outras big techs sempre combateram qualquer tipo de regulação, não só no Brasil e definitivamente não só agora. Durante os debates do projeto de lei 2630, o PL das Fake News, o Google exibiu na sua homepage um banner contra o projeto. A Polícia Federal entendeu que a empresa abusou de seu poder econômico. Nas discussões sobre o projeto de lei 2338, o PL da IA, no Senado, também vimos o setor privado atuando contra o projeto.
Então não é nada surpreendente que, na iminência de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que pode mudar os rumos da internet no Brasil, a empresa esteja mexendo pauzinhos para tentar deixar tudo como está. E nós sabemos: do jeito que as coisas estão, está muito ruim – ruim para a sociedade, para a democracia, para as crianças e adolescentes.
O que está na mesa do STF não é nada simples. Em um julgamento que começou em dezembro passado e está sendo retomado agora, os ministros votarão pela constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.
Esse dispositivo, em vigor atualmente, prevê que as plataformas digitais só podem ser responsabilizadas por conteúdos publicados por usuários quando houver uma decisão judicial e elas não cumprirem.
Os ministros podem seguir por dois caminhos. No primeiro, declarar a inconstitucionalidade do artigo 19 e revogar a regra de responsabilidade, o que tornaria as plataformas objetivamente responsáveis por qualquer conteúdo.
Outra opção é o que vem sendo chamado de “interpretação conforme”, na qual o art. 19 segue em vigor, mas passa a ser interpretado à luz da Constituição Federal, e prevê responsabilização objetiva das plataformas apenas para algumas violações.
Coincidência ou não, a retomada do julgamento ocorre num momento de novo acirramento na relação entre big techs e o Judiciário brasileiro. No fim de maio, os Estados Unidos anunciaram uma política de restrição de vistos a atores estrangeiros que tenham “censurado americanos”.
Se alguém tinha dúvida que o recado era endereçado ao ministro Alexandre de Moraes, tudo ficou mais claro depois de um tweet de Jason Miller, assessor de Trump e ex-executivo da rede social de extrema-direita Gettr, no qual ele marcou a conta de Moraes.
O que está em jogo no STF é de muita importância, especialmente dado o cenário no Congresso, onde é muito difícil que qualquer tentativa de regulação de redes prospere graças à conveniente aliança entre big techs e figuras da extrema-direita. 2026 está logo aí e todo mundo sabe disso: Supremo, a extrema-direita e as big techs.
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