Ameaças, ligações com um servidor com histórico em partidos de direita e até um banco digital compuseram a estratégia da Confederação Nacional de Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais, a Conafer, para operar fraudes bilionárias no Instituto Nacional de Seguridade Social, o INSS, durante quase cinco anos.
A entidade, que se apresenta como defensora de indígenas e pequenos agricultores, mas pertence a um empresário do agronegócio, é investigada por aplicar descontos indevidos diretamente nas aposentadorias de milhares de brasileiros, utilizando autorizações falsas ou sem validade.
Quando questionada pelo INSS e cobrada a apresentar documentos, em 2020, culpava a pandemia e dizia enfrentar dificuldades logísticas. Nos bastidores, porém, representantes da Conafer contavam com o apoio de servidores estratégicos do INSS — incluindo um coordenador que já foi filiado ao PL e ao Democracia Cristã e é conhecido como “Soldado do Proerd” — e até ameaçou quem sugeriu revelar as irregularidades para manter o esquema ativo.
É o caso do empresário Bruno Deitos, que prestou serviços de informática a uma terceirizada da Conafer, mas levou um calote. Ao ameaçar denunciar o que sabia, ele diz ter sido intimidado por Thiago Lopes, vice-presidente da confederação e irmão do presidente Carlos Lopes.
O Intercept Brasil teve acesso com exclusividade ao teor dessas ameaças. Tudo começou em 10 de junho de 2021, quando Deitos entrou na 5ª Delegacia de Polícia de Brasília para fazer uma denúncia que mudaria sua rotina e, quatro anos depois, seria o centro de uma mega-operação da Polícia Federal contra fraudes no INSS.
Representante da empresa Premieer Recursos Humanos, Deitos contou aos investigadores que havia prestado serviços de informática para uma terceirizada chamada Target, ligada à Conafer. Em vez de receber os R$ 700 mil contratados, levou um calote. O serviço feito pela Premieer, segundo Deitos, foi de atualização do cadastro de associados da Conafer em seis estados. O empresário participou de reuniões com a Conafer e com a Target em que teria ouvido sobre a relação promíscua com o INSS.
Quando ameaçou expor o que sabia, segundo o relato que fez à polícia, Deitos foi intimidado. “Você não é maluco de fazer essa denúncia”, teria dito Thiago Lopes, vice-presidente da Conafer e irmão do presidente da entidade, o pecuarista Carlos Lopes.
Nas semanas seguintes, Deitos passou a ser seguido por carros suspeitos, o alarme de sua casa no Lago Sul, em Brasília, disparava sem motivo aparente e ele chegou a se deparar com um veículo com adesivos da Conafer estacionado dentro de seu condomínio. Sentindo-se ameaçado, voltou à delegacia no dia seguinte ao primeiro depoimento.
O que ele contou à polícia no dia 11 de junho é que a Conafer falsificava assinaturas de aposentados para descontar valores mensais diretamente da aposentadoria. O próprio Carlos Lopes, segundo Deitos, dizia ter “domínio sobre diretores do INSS”.
Após o registro na Polícia Civil, a denúncia foi enviada à Polícia Federal, que abriu um inquérito ainda em 2021. Mas a investigação só foi ter resultado no início de 2025, quando a operação Sem Desconto veio à tona. Nesse período, mais de R$ 688 milhões em descontos de aposentadorias entraram nos cofres da Conafer.
Blindagem por ex-PL
Um ano antes de o empresário denunciar irregularidades à polícia, o INSS já poderia ter suspendido os repasses à Conafer, mas não fez isso. A confederação até chegou a ser suspensa em 2020, mas acabou reabilitada pouco depois e, em 2022, foi considerada apta para continuar com os descontos graças a um comitê interno que ignorou alertas técnicos da própria autarquia.
O parecer que livrou a Conafer foi assinado por Jucimar Fonseca da Silva em 2022, então Chefe da Divisão de Consignação em Benefícios do INSS. Jucimar foi policial militar, vereador pelo PR (o atual PL, chefiado por Valdemar da Costa Neto) em Manacapuru, no Amazonas, de 2013 a 2016. É conhecido na cidade como “Soldado do Proerd” por ter sido mentor do programa de combate às drogas nas escolas.
Jucimar venceu as eleições de Manacapuru em 2012 com 1.006 votos. Na época, ele era policial militar. Em 2014, tentou a sorte como candidato a deputado estadual, mas não teve a quantidade de votos suficiente. Já em 2016, tentou a reeleição para vereador e perdeu a disputa. Em março de 2020, saiu do PL rumo a outro partido de direita: o Democracia Cristã.
Quando estava no primeiro mandato, em 2013, Jucimar ingressou no INSS como técnico do seguro social. Ele cresceu na estrutura do órgão até que, em 2021, passou a ocupar cargos de confiança em Brasília até ser afastado por ordem judicial, em abril de 2025, junto com outros cinco servidores, por suspeita de envolvimento com a fraude do INSS. Questionado pelo Intercept Brasil, ele garantiu que se sua ascensão no INSS foi técnica e não partidária.
Tudo começou quando, após suspeitas de que a Conafer aplicava descontos diretamente no benefício de aposentados usando cadastros falsos ou sem autorização válida, o então diretor de benefícios do INSS, Alessandro Roosevelt, suspendeu os repasses para a entidade, em agosto de 2020.
Segundo ele, a Conafer havia incluído descontos em mais de 95 mil benefícios num intervalo de quatro meses — o que exigiria, na prática, coletar mais de 600 autorizações por dia. Roosevelt alertou o Ministério Público Federal, MPF, sobre irregularidades e tentou encerrar o acordo do INSS com a confederação. No entanto, dois meses depois, a diretoria em que ele atuava perdeu a atribuição de fiscalizar a Conafer, por decisão publicada, em outubro de 2020, em uma portaria assinada pelo então presidente do INSS, Leonardo José Rolim.
A nova diretoria responsável, chefiada por Jobson de Paiva Silveira Sales, produziu uma nota técnica favorável à Conafer e o presidente Rolim liberou rapidamente, ainda em novembro de 2020, os repasses para a Conafer. Jobson recebeu uma homenagem da confederação naquele mesmo mês. A servidora responsável pela nota técnica da diretoria de Jobson, Ingrid Ambrozio, defendeu a “presunção da boa-fé” em relação à Conafer.
Em agosto de 2021, o novo diretor de benefícios do INSS, José Carlos Oliveira, deu um fim nas investigações internas. Na prática, ele criou um comitê para “apurar” as suspeitas sobre a Conafer, mas o resultado acabou em pizza. A investigação foi liderada por Jucimar Fonseca da Silva, o “Soldado do Proerd”, então chefe da Divisão de Consignação em Benefícios do INSS.
Jucimar concluiu, em agosto de 2022, que não havia “nem grave e nem iminente risco” nos descontos feitos pela entidade. A apuração foi baseada em uma amostragem de 1.084 folhas de pagamento de aposentados filiados fornecida pela própria Conafer.
O servidor do INSS Renan Assunção Siqueira também assinou o parecer. À época, já havia um inquérito da Polícia Federal em andamento, ofícios internos com alertas de fraudes e suspeitas sobre a Conafer. Nada disso impediu que os repasses continuassem.
O relatório final da investigação liderada por Jucimar chegou inclusive a ser usado por Carlos Lopes, presidente da Conafer, para tentar não atender a uma intimação da PF para depor no ano passado, alegando que já havia sido inocentado em investigação interna do INSS.
Em mensagens enviadas ao Intercept, Jucimar afirmou que o relatório que concluiu não haver fraude nas operações da Conafer com aposentados foi baseado em amostragem de fichas enviadas ao INSS pela própria entidade. Ele ainda observou que houve um percentual pequeno de inconformidades, mas tudo foi corrigido pela entidade.
‘A conclusão do relatório em 2022 foi eminentemente técnica’, diz “Soldado do Proerd”
“A conclusão do relatório em 2022 foi eminentemente técnica”, defendeu. Jucimar apontou ainda que, no relatório, defendeu a necessidade de criar maiores mecanismos de segurança, como um botão no aplicativo Meu INSS para o beneficiário revalidar autorizações da Conafer – o que jamais foi implementado.
Nós não conseguimos contato com o servidor Renan Assunção Siqueira, que também assinou o relatório junto com Jucimar.
Já José Carlos Oliveira, que criou o comitê que livrou a Conafer, acabou promovido a presidente do INSS e, depois, ministro do Trabalho e Previdência no governo de Jair Bolsonaro. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, vinculado ao Banco Central, detectou transações suspeitas entre um sócio dele e um sócio de Carlos Lopes.
Segundo relatório da PF, Cícero repassou pelo menos R$ 4,8 mil para José Laudenor, que é sócio de Oliveira. Laudenor, por sua vez, é um auxiliar administrativo que declara rendimento de aproximadamente R$ 1,5 mil. Para a Polícia Federal há sugestão de “uso da conta de José Laudenor para operar recursos de terceiros ou atividades não declaradas”.
A assessoria de comunicação de Oliveira afirmou, em e-mail, que a criação de comitês executivos para análise de entidades faz parte da rotina institucional do órgão e segue os protocolos técnicos estabelecidos.
“Seu nome aparece apenas de forma secundária e indireta, vinculado exclusivamente a análise de movimentações financeiras atribuídas a terceiros. O senhor Oliveira, portanto, não mantém qualquer relação financeira com os investigados ou com as entidades mencionadas”, escreveu.
‘Eu pedi exoneração da função por não conseguir trabalhar com esse tipo de situação envolvendo inquéritos policiais, investigações e pressões’
Jobson defendeu, por mensagem, que apenas encaminhou o caso da Conafer para a presidência do INSS, então ocupada por Rolim, que foi quem deu a decisão final para a retomada dos descontos da entidade. Sobre a homenagem da Conafer, ele disse que outros gestores da autarquia também receberam. Além disso, afirmou que passou apenas quatro meses no cargo de direção depois que recebeu a atribuição de cuidar do caso da Conafer.
“Eu pedi exoneração da função por não conseguir trabalhar com esse tipo de situação envolvendo inquéritos policiais, investigações e pressões. E assim ocorreu, fui exonerado”, afirmou. No começo do mês, Jobson pediu demissão novamente, mas agora do cargo que ocupava atualmente no Ministério do Trabalho.
Questionada, a servidora responsável pela nota técnica da diretoria de Jobson, Ingrid Ambrozio, disse que sua análise não tinha poder de decisão e passou por avaliação da Procuradoria Federal Especializada do INSS. Ingrid, que tinha o cargo de Chefe da Divisão de Gestão de Acordos de Cooperação, disse ainda que sua análise foi baseada em documentos apresentados pela Conafer na época, considerando o contexto da pandemia.
‘Não teve nada a ver com Conafer’, diz ex-presidente do INSS, Leonardo Rolim
Leonardo Rolim, ex-presidente do INSS, afirmou que a mudança da atribuição da diretoria que investigava a Conafer foi por conta de um processo de reestruturação do órgão, que já estava sendo planejado desde o ano anterior. “Não teve nada a ver com Conafer”, garantiu, em contato com o Intercept.
Já em relação à suspensão do bloqueio da Conafer, Rolim defendeu que, à época, avaliou que acabar com o acordo entre a Conafer e o INSS não seria uma boa estratégia, pois a entidade poderia entrar com uma decisão judicial e ganhar o direito de continuar com os descontos. Ele disse que preferiu manter os descontos, mas com novas regras.
“Foi feito um termo de acordo bastante duro que resultou em uma mudança substancial, com redução de menos da metade dos filiados da Conafer. E, mesmo no final da minha gestão, ainda estava 20% abaixo do que era antes”, afirmou Rolim.
Pecuarista, minerador e banqueiro
Enquanto tudo isso ocorria, Carlos Lopes, presidente da Conafer, passou a diversificar cada vez mais os seus negócios. Além de comandar a confederação, ele abriu empresas de genética bovina, uma loja de arte indígena, uma mineradora e até uma holding nos Estados Unidos.
Mas não foi só. Em outubro de 2021, no auge do aumento dos repasses do INSS à Conafer, Lopes criou um banco digital chamado Terra Bank. No papel, os donos do banco são o empresário paulista Cícero Santos e a holding T.B. Holding. Mas documentos obtidos pelo Intercept mostram que a holding pertence à Farmland, empresa norte-americana de propriedade de Carlos Lopes, o que revela que o verdadeiro dono do banco é o próprio presidente da Conafer.
A Polícia Federal identificou, no contexto da operação Sem Desconto, transferências diretas entre a Conafer, Carlos Lopes, Cícero Santos e a esposa dele, Ingrid, no valor de R$ 812 mil entre 2021 e julho de 2023.A PF cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços ligados a Cícero e Ingrid na semana passada.
O Terra Bank não tem autorização de funcionamento do Banco Central do Brasil. Por isso, atua como fintech, uma espécie de banco digital, que contrata a tecnologia bancária da empresa financeira Celcoin.
Em seu site oficial, o Terra Bank se apresenta como um banco digital voltado para impulsionar o agronegócio. A empresa oferece serviços análogos a um banco convencional, como cartão, transferências e abertura de conta.
“Plantando sementes financeiras, colhendo um futuro sólido”, diz a mensagem do banco em um vídeo institucional. Uma das imagens que ilustra seu aplicativo para celular é de um indígena idoso.
Em nota, a Celcoin informou que possui uma relação estritamente comercial com o Terra Bank, mas que acompanha e monitora as investigações da Polícia Federal. “A Celcoin fornece exclusivamente tecnologia para apoio a operações financeiras, não tendo acesso aos recursos financeiros dos clientes do Terra Bank”, diz a nota.
Questionamos a Conafer sobre os pontos relatados na reportagem e o advogado Rodrigo Fernandes informou por e-mail que a entidade só vai se manifestar após a obtenção da integralidade dos autos do processo. “Neste momento a entidade está disponível para colaborar com as autoridades e seus associados”, escreveu. Os documentos citados nesta reportagem, entretanto, estão anexados em processos públicos na Justiça Federal.
Em nota enviada no fim de abril, quando o Intercept revelou que a confederação faturou com a aposentadoria de indígenas, a entidade disse que os descontos do INSS representam apenas 11% do total da receita da entidade e que as atividades empresariais de Lopes como produtor não interferem na operação da Conafer.
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