Fabiana Moraes

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Tá pensando que batom é bagunça?

Extrema direita procura transformar batom, símbolo de várias lutas progressistas, em novo símbolo para chamar de seu.

Tá pensando que batom é bagunça?

Depois de tornar a bandeira brasileira e a camisa amarela da seleção em artefatos quase tóxicos, a extrema direita elegeu um novo elemento para chamar de seu: o batom. Ele foi visto diversas vezes em algumas manifestações pedindo anistia para a turba que promoveu o criminoso quebra-quebra na Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023. 

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A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro empunhou um em um cartaz convocando especificamente as mulheres a levá-lo para os atos de apoio a criminosos. Na Avenida Paulista, no dia 6 de abril, ela levantou dramaticamente o cosmético enquanto discursava.

A causa da referência ao cosmético nas ruas você já sabe: está relacionada à cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, a moça que subiu na estátua A Justiça e nela riscou, usando um batom, a frase “perdeu, Mané”. 

Sentenciada a 14 anos de prisão, Débora tornou-se um artifício coletivo de vitimização não somente de quem depredou e invadiu prédios públicos, mas ainda de quem efetivamente armou a tentativa de golpe, trama que incluiu uso de dinheiro público para esculhambar as eleições e um plano de triplo assassinato. Atualmente, ela cumpre pena domiciliar e usa tornozeleira eletrônica. 

Mas, assim como a bandeira e a camisa verde-amarela, batom também é coisa séria. Por isso chego animadamente para riscar o fósforo no chão e entrar na disputa do imaginário: esta bicha não vai aceitar que um lote de gente (cafona) e que não sabe perder eleição tente conspurcar a beleza de um batonzinho vermelho-carmim, um marrom profundo, um rosa queimado, um roxo escuro.  

Tão pensando que batom é bagunça, bonitas?

O cosmético é há muito um artefato político, e sua história mostra o quanto seu uso está relacionado a movimentos progressistas ou mesmo de oposição ao nazismo, ou seja, a atos que asseguram a ampliação de direitos fundamentais, e não a celebração de criminosos.

Diversos movimentos de emancipação feminina se apropriaram do item mais famoso da maquiagem como símbolo, a exemplo das sufragistas norte-americanas que, nas primeiras décadas do século passado, utilizaram deliberadamente batons vermelhos como marca de rebeldia e autonomia em protestos pela conquista do voto feminino. Naquele contexto, a cor intensa, considerada vulgar pela moral dominante, era recolocada na arena pública como expressão de beleza, força e coragem. 

No livro “Compacts and Cosmetics”, a autora Madeleine Marsh conta um episódio que se tornou famoso, quando manifestantes americanas pelo direito ao voto, além de se vestirem seguindo os preceitos da moda, também usavam a maquiagem como um ato político. “Uma demonstração famosa disto ocorreu em Nova York, em 1912, quando todas as mulheres pintaram suas bocas com um batom vermelho aberto e chocante, distribuído por Elizabeth Arden, que se uniu à passeata”, escreveu Marsh. 

Arden, nome poderoso da indústria dos cosméticos nos EUA, marcaria para sempre a empresa ao direito das mulheres ao voto. Era um feminismo bastante localizado – majoritariamente branco, liberal e abastado – mas era também uma importante publicização de radicais e normalizadas diferenças entre gêneros.

A relação batom e política apareceria com força logo após os movimentos feministas nos EUA: na década de 1930, quando explodiu a Grande Depressão, as vendas de cosméticos aumentaram centenas de vezes em relação à década anterior – uma realidade verificada em outros contextos históricos de crise econômica. É o chamado “Índice Batom”.  

Na pesquisa Vermelho da vitória: o design de embalagens do batom nos EUA do período entre guerrasMaria Catarina de Alencar Ribeiro cita a historiadora Carol Dyhouse, para quem “o recém conquistado potencial econômico feminino, combinado ao escapismo, foi um dos fatores essenciais para a década de 1930 abrigar os anos do glamour em meio a tantas dificuldades e horrores”. Quanto mais a realidade ficava feia, mais pigmento nos beiços.

Na Segunda Guerra Mundial, governantes poderosos como o primeiro-ministro Winston Churchill entenderam o poder simbólico dos lábios pintados. Ele adotou a frase de uma campanha da edição britânica da revista Vogue (“Agora, mais do que nunca, a beleza é seu dever”), transformando-a em espécie de meme patriótico e convocando um esforço nacional de resistência – sim, uma resistência ao Nazismo através da maquiagem. 

Naquele contexto, em meio à escassez e ao racionamento, o batom passou a desempenhar um papel simbólico e psicológico estratégico. Apesar das restrições impostas à indústria de cosméticos, Churchill autorizou a continuidade da produção de batons, considerando que seu uso ajudava a manter a moral da população, especialmente a das mulheres que permaneciam – ativamente – na retaguarda. 

Durante a guerra, enquanto produtos como gasolina, ovos e açúcar eram racionados, os batons eram distribuídos regularmente, um sinal de que sua função ultrapassava o mero adorno. Assim, o cosmético foi alçado à condição de item essencial, tornando-se símbolo da força feminina e da resiliência social diante da guerra. Tem mais a respeito dessa história nesta excelente reportagem do El País.

Foto histórica da ‘Bancada do Batom’, a bancada de mulheres na Assembleia Constituinte. Foto: reprodução.

No Brasil, o acessório está relacionado à histórica “Bancada do Batom”, um termo que reúne um bocado de sexismo e que também fixa erroneamente o cosmético ao uso feminino (como observamos nos casos anteriores relatados aqui). A bancada foi uma articulação suprapartidária formada por deputadas e senadoras durante a Constituinte de 1988 com o objetivo de assegurar e ampliar os direitos das mulheres. 

Na época, havia 559 parlamentares, dos quais apenas 26 eram mulheres — o equivalente a 5% do total. Atualmente, a bancada feminina na Câmara conta com 90 deputadas, representando cerca de 18% das cadeiras. Entre as parlamentares que participaram da Constituinte, duas seguem em exercício: Benedita da Silva, do PT fluminense,e Lídice da Mata, do PSB da Bahia. Em 2024,  diversas congressistas se reuniram para a reedição da histórica foto da bancada, como parte das celebrações pelos 35 anos da Constituição Federal de 1988 na Câmara dos Deputados.

O batom ainda surgiu como um ponto de atenção, é claro, quando a até hoje única mulher a ocupar o cargo de presidenta da República subiu ao poder. Dilma Rousseff estava há tempos ocupando cargos importantes  e levando a vida com pouca ou nenhuma maquiagem – até que veio a possibilidade de se tornar presidenta do Brasil. 

Logo, as tentativas de “suavizar” sua aparência de ex-guerrilheira com maquiagem apareceram como importantes estratégias políticas. Neste texto publicado na IstoÉ Dinheiro em novembro de 2010,  o visual da já presidente eleita é cascavilhado, e seu então maquiador, Celso Kamura, diz que quando a encontrou pela primeira vez ela não usava “nem batom”. Foi justamente a entrada do cosmético no visual adotado pela presidente em sua foto oficial o que chamou a atenção da Folha de S. Paulo no dia 15/01/2011:

Durante o mandato de Dilma, a maquiagem tornou-se parte de sua imagem pública, sendo frequentemente comentada pela imprensa, ainda que alegoricamente (“Dilma terá que convencer que não é Lula de batom” etc etc). A estética adotada pela economista era lida simultaneamente como expressão de poder e alvo de julgamento sexista. Esse duplo padrão, aliás, evidencia como o corpo feminino é politizado em suas mínimas expressões, inclusive na escolha de um cosmético. O batom opera, assim, como um signo ambivalente: por um lado, pode reforçar estereótipos de feminilidade tradicional; por outro, pode ser apropriado como ferramenta de expressão política (Ney Matogrosso é outro baluarte aqui) e mesmo construção de autoridade.

Não é exagero pensar que a extrema direita, ao tentar emplacar o batom como símbolo do movimento pró-anistia a criminosos, também tenta suavizar o próprio quebra-quebra do oito de janeiro, como se todo o enredo fosse composto apenas pelos riscos de um batonzinho em uma estátua, e não a presença de bombas perto de aeroportos e, como dito, tentativas de assassinato e suspensão democrática.

Deixar o batom se tornar símbolo desse movimento é deixar que a própria intentona passe a ser vista como uma traquinagem de criança.

Sem anistia. E sem batom para golpista.

***

Antes de ir embora:

Vale lembrar que a bandeira e o verde amarelo que eu citei lá no início do texto foram, felizmente, disputados e recuperados através de gestos diversos: o MST a costurou ao lado da bandeira do movimento e foi com a “dupla” para as ruas; Madonna e Pablo Vittar vestiram o uniforme no show da cantora no Brasil, ano passado; diversas marcas passaram a vender versões vintage e customizadas da canarinha (“nossas camisetas foram desenvolvidas pensando em resgatar seu orgulho em vestir a camisa da seleção brasileira novamente”, lemos no site da marca Necas de Pitibirita). Mais recentemente, Lady Gaga fez diversas referências à bandeira, usando verde e amarelo em diversos looks do show – seus bailarinos e suas bailarinas usaram a camisa da seleção.

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