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Ancelotti vira tábua de salvação de Ednaldo na CBF e atiça xenofobia histórica no futebol brasileiro

Presidente da CBF espera que contratação do italiano o ajude a resistir no cargo em meio a denúncias, mas ignora que escolha por um estrangeiro enfrenta relutância de técnicos e torcedores há décadas.

Carlo Ancelotti tem 65 anos e venceu três Champions League no comando do Real Madrid, a última delas em 2024 (Foto: Reuters/Folhapress)

Carlo Ancelotti é o novo técnico da seleção principal masculina na Confederação Brasileira de Futebol, a CBF – e já assume o cargo cercado por tensões: seja pela insistência da entidade, após a negativa ao convite anterior em 2024, seja pelo comportamento reativo que a presença de um estrangeiro tem provocado em treinadores e torcedores. 

Tanto o desespero por finalmente anunciar o ex-jogador italiano, multicampeão no comando de times europeus, quanto a resistência da comunidade esportiva diante de um profissional do exterior à frente da seleção pentacampeã escancaram dinâmicas históricas, vivas nas disputas políticas em curso.

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Se esportivamente a contratação se justifica pelas conquistas de Ancelotti, a espera pelo anúncio demonstra, no mínimo, desorganização. O nome estrangeiro era cogitado desde 2023 – o que torna as curtas passagens dos treinadores Fernando Diniz e Dorival Júnior improvisos pouco profissionais em uma confederação que movimenta mais de R$ 1 bilhão por ano

A insistência não pode ser encarada somente como uma obsessão pessoal do presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, que manteve sua preferência pelo técnico em meio a denúncias e processos judiciais. Na prática, o apego a Ancelotti significa um último recurso para conservar alguma autoridade no cargo. 

Carlo Ancelotti tem 65 anos e venceu três Champions League no comando do Real Madrid, a última delas em 2024 (Foto: Reuters/Folhapress)
Carlo Ancelotti tem 65 anos e venceu três Champions League no comando do Real Madrid, a última delas em 2024 (Foto: Reuters/Folhapress)

Na semana anterior à confirmação do técnico, outro processo contra o presidente da CBF virou notícia, foi parar no Supremo Tribunal Federal e o deixou na iminência do afastamento. O reconhecimento esportivo do treinador, inegável, serve simultaneamente para abafar as críticas à atual gestão e oferecer alguma resposta acerca do desempenho da seleção brasileira. É desconfortável a quarta colocação nas eliminatórias para a Copa do Mundo do ano que vem.

E não é apenas a estrutura pouco democrática da CBF, cujas bases se mantêm há quase cem anos, que aponta para os processos históricos em torno do esporte. A relutância de treinadores à presença de qualquer estrangeiro à frente da seleção também sugere continuidades com o passado.

Nomes que ocuparam o mesmo cargo têm criticado a ausência de um brasileiro no comando técnico do time, desde quando a chegada de Ancelotti era apenas uma possibilidade. Isso se deve, a partir dessa perspectiva, à impressão de que somente alguém daqui compreenderia o futebol nacional.

A ideia de um estilo de futebol genuinamente brasileiro ressoa nessas ofensivas. Embora a oposição ao desembarque de um estrangeiro na CBF ainda não tenha descambado para a brutalidade, essa contrariedade transcende o círculo dos principais treinadores do país – formado por candidatos ao mesmo posto, interessados em uma eventual reserva de mercado. 

Em publicações em plataformas digitais, não têm sido incomuns acenos de torcedores nessa direção. Dada a abrangência das insatisfações, tradições populares podem esconder alguns indícios a respeito da formação dessa antipatia ao longo do tempo.

Ednaldo Rodrigues foi reeleito presidente da CBF, por unanimidade, e comandará entidade até 2030 (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress)
Ednaldo Rodrigues foi reeleito presidente da CBF, por unanimidade, e comandará entidade até 2030 (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress)

O futebol conquistou multidões enquanto os principais centros urbanos recebiam imensos contingentes populacionais. A assimilação dos novos habitantes foi conflituosa, com greves, revoltas e atritos que se estenderam pelas primeiras décadas do século XX. 

A movimentação na cena urbana foi de tamanha proporção que os setores que comandavam econômica e politicamente o país tiveram que ceder: as pressões populares resultaram na regulamentação do trabalho no Brasil nos anos 1940. Até chegar a esse ponto, as disputas se deslocaram para a cultura no país.

Na tentativa de conter a organização dos trabalhadores, o governo federal avançou sobre lideranças que promoviam as manifestações. Era o regime do Estado Novo: durante o período autoritário, muitos dos perseguidos eram de origem estrangeira e haviam trazido estratégias para reivindicar direitos de seus países de origem. 

A Itália, por circunstâncias históricas, estava bem representada entre os manifestantes. Além da repressão policial, o governo colocou em circulação propagandas e, consequentemente, valores que se espalharam até pelas camadas populares. No limite, aguçaram a xenofobia.

Isso é ainda mais explosivo caso sejam observadas as consequências para a identidade nacional. Aos olhos do governo, ser brasileiro era ter nascido aqui e se comportar como um trabalhador – não qualquer operário contestador que buscasse seus direitos, mas um dócil funcionário. 

À revelia dos interesses ditatoriais as multidões continuaram a exigir condições melhores de vida, a despeito de os traços que compunham a brasilidade terem sido marcados por essa reação aos estrangeiros. As campanhas publicitárias coincidiram, entre os anos 1930 e 1940, com a crescente popularidade do futebol.

A Copa do Mundo de 1938 é ilustrativa: a delegação brasileira se destacou no torneio e pela primeira vez figurou entre as candidatas ao troféu. Foi eliminada na semifinal, contudo, pela seleção italiana.

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Principal locutor esportivo à época, Gagliano Neto foi o responsável por narrar ao país campanha pelo rádio e, por fim, comunicou a derrota para a equipe que levantaria o troféu após a decisão. A situação deu vazão à fúria das multidões, provocada pelo futebol. Entre mal-entendidos e controvérsias sobre a arbitragem, relatos apontam para a violência contra o radialista.

Por remeter à Itália, o nome de Gagliano Neto foi ironicamente adaptado para “Italiano Nato” pela cobertura esportiva da época. O narrador foi hostilizado e conviveu com dificuldades no restante da carreira por conta dessa reação aos estrangeiros em contexto global de nazismo, fascismo e nacionalismos exagerados.

Apesar de serem raros os registros que documentem essa passagem, o Mundial de 1938 sinaliza que a associação do futebol com a sensação de pertencimento ao Brasil convive historicamente com atravessamentos da xenofobia.   

Sob a liderança de Ancelotti na seleção, esses antecedentes voltam à tona. Em outra conjuntura, é certo. Internacionalmente, as relações exteriores têm sido definidas pela escalada de intensos patriotismos – com consequências econômicas e políticas. 

Internamente, o Brasil lida com atos antidemocráticos, que vão de fanatismos religiosos a oposições de setores empresariais. O futebol e, especificamente, a CBF não estão isolados da sociedade. Para que a temporada do novo técnico seja bem-sucedida será necessário conviver com vários desses dilemas, que se espalham pela vida de gente comum.

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