O relatório da investigação sobre a tentativa de golpe da Polícia Federal revelou que o golpe de Jair Bolsonaro só não foi consumado por não ter o apoio de dois dos três chefes das Forças Armadas.
De fato, os ex-comandantes do exército, general Freire Gomes, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Baptista Júnior, se recusaram a embarcar na canoa golpista na hora H.
Imediatamente, formou-se uma onda de exaltação desses militares na imprensa nacional. As manchetes e os colunistões tradicionalmente dóceis com milicos ressaltaram a firmeza com que os comandantes defenderam a democracia. A CNN chegou a promover um debate na televisão em torno da seguinte pergunta: “Militares salvaram o Brasil do golpe?”. A coisa chegou nesse nível de cinismo.
Ganhou força a tese do ministro da Defesa, José Múcio, de que o golpismo nas Forças Armadas é um caso isolado e não representa a maioria da instituição. É escandaloso que, diante de tudo o que aconteceu no Brasil nos quatro anos da tragédia bolsonarista, há quem acredite que militares indicados por Bolsonaro para chefiar as Forças Armadas possam ser considerados salvadores da democracia.
O golpismo foi uma prática permanente no governo Bolsonaro, que passou o mandato inteiro enfiando a faca no pescoço da democracia. Durante todo esse tempo, Freire Gomes e Baptista Júnior assistiram calados a todos os arroubos antidemocráticos de Bolsonaro e sua quadrilha golpista.
Pelo contrário, o ex-comandante do exército foi quem permitiu que milhares de manifestantes golpistas montassem acampamentos enormes em frente aos quartéis de todo o país logo após a vitória de Lula. Esses acampamentos eram parte fundamental do plano golpista — especialmente o de Brasília — e contaram com todo o apoio do exército.
Em 11 de novembro, Freire Gomes e Baptista Júnior assinaram junto com Almir Ganier — o comandante da Marinha que foi indiciado pela PF — uma nota pública em que criticam o Judiciário e defendem os acampamentos golpistas.
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No documento, os movimentos golpistas em frente aos quartéis são chamados de “manifestações populares”. Em 29 de dezembro, quase dois meses depois e três dias antes da posse de Lula, o general Gustavo Henrique Dutra, que estava à frente do Comando Militar do Planalto, determinou o fim do acampamento no quartel de Brasília.
O objetivo era evitar o confronto entre os bolsonaristas e os eleitores de Lula, que começavam a chegar à cidade para a posse do presidente eleito. A PM-DF iniciou então uma operação para desmontar os acampamentos, mas foi recebida com pedras e paus pelos golpistas.
E o que fez o nosso “salvador” Freire Gomes diante disso? Ligou na mesma hora para o general para repreendê-lo. Furioso ao telefone, o comandante do exército chamou seu colega de “irresponsável” e “inconsequente”.
Depois de ser derrotado na eleição, Bolsonaro reuniu chefes militares 14 vezes. Freire Gomes foi o mais assíduo: esteve no Alvorada 12 vezes. Segundo a PF, Freire Gomes recebeu de Bolsonaro duas versões da minuta do golpe e ouviu que o plano golpista previa uma intervenção no TSE e prisão de adversários políticos. Foi aí que Freire Gomes decidiu desembarcar do barco golpista.
Sem apoio internacional, especialmente dos EUA, parecia claro que o golpe não se sustentaria por muito tempo e estaria fadado ao fracasso. Freire Gomes teve mais juízo e amor próprio do que respeito pela democracia.
O ex-comandante está muito longe de ser um valoroso democrata e mais perto de ser um “cagão”, como apontou o general Braga Netto. Nenhum militar vira legalista da noite pro dia.
O fato é que, apesar de não ser um golpista dos mais entusiasmados, Freire Gomes navegou com eles até o último minuto e teve papel central na manutenção dos acampamentos golpistas.
Como se sabe, o episódio de 8 de janeiro foi gestado no acampamento golpista de Brasília, que só permaneceu tanto tempo ali graças à intervenção direta do ex-comandante. É possível dizer, sem medo de errar, que o 8 de janeiro não seria possível sem a contribuição de Freire Gomes.
Esses comandantes participaram de reuniões golpistas, defenderam acampamentos golpistas, tiveram conhecimento do plano para matar presidente, vice-presidente e ministro do Supremo e prevaricaram.
Eles tinham conhecimento que tanto o presidente quanto seus subordinados estavam envolvidos até o osso com um golpe de estado e nada fizeram de concreto até perceberem que poderiam acabar na cadeia.
As Forças Armadas são historicamente comprometidas com o golpismo. A anistia aos criminosos do regime militar permitiu que as Forças Armadas continuassem perpetuando a ideologia reacionária e golpista entre as suas fileiras. Nas escolas do exército, por exemplo, trabalhos de monografia defendem golpes militares e tratam a instituição como um poder moderador. A celebração da data do Golpe de 64 era um evento oficial nos quartéis todos os anos até meados dos anos 2000 e foi retomada em 2019 por ordem do líder da quadrilha golpista Jair Bolsonaro.
Freire Gomes e Baptista também celebraram a data. Eles ainda chamam o golpe de 64 de “revolução”. Não é possível que um militar chegue ao Alto Comando se opondo à essa lógica e estrutura golpista. É uma instituição irremediavelmente comprometida com o golpismo e esse é um problema urgente que a democracia brasileira precisa resolver para não voltar a ser assombrada.
Diante de tudo isso, assistir à imprensa se esforçando para inocentar o alto comando das Forças Armadas causa indignação. O fato de Freire Gomes e Baptista Júnior terem se colocado contra a execução do golpe pode não responsabilizá-los criminalmente, mas jamais poderá absolvê-los histórica e politicamente. Eles ajudaram a levar a democracia até a beira do penhasco e, na hora de empurrá-la, desistiram.
É papel do jornalismo deixar claro o caráter golpista impregnado nas Forças Armadas e o papel do alto comando na sua perpetuação. Mas o que vemos é boa parte do colunismo mainstream virando porta-voz de milico e manchetes passa-pano transformando golpista “cagão” em herói da democracia.
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