Uma menina de 13 anos morreu durante um parto prematuro em Coari, no Amazonas, em 2019. A gravidez foi consequência dos estupros que ela sofria do próprio pai.
Situação parecida aconteceu com outra menina da mesma idade, em 2020. Estuprada desde os nove anos por um homem que tinha 41, ela morreu no oitavo mês de uma gravidez que sempre foi de risco. Morava em Uruará, no Pará.
Pesquise na internet: “menina morre grávida”. Você verá histórias como essas em São Paulo, no Paraná, na Paraíba, de norte a sul do Brasil. Eu encontrei mais de 10 notícias em uma busca rápida. Duas, só em 2024. Mas na internet vemos apenas uma fração da realidade.
Registros oficiais de óbitos maternos do DataSUS revelam que 407 meninas e adolescentes de 10 a 19 anos morreram por problemas decorrentes de uma gravidez entre 2018 e 2023.
Entre elas, 17 tinham de 10 a 14 anos, ou seja, foram vítimas de estupro de vulnerável, de acordo com a nossa legislação. E, portanto, tinham direito de acessar os serviços públicos de aborto legal. Além disso, a gestação nessa faixa etária é considerada de risco para a gestante.
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Em média, uma adolescente morreu por complicações na gravidez, no parto ou no puerpério toda semana, em seis anos.
O direito ao aborto legal, que pode salvar a vida das meninas e possibilitar um futuro com melhores perspectivas, é inquestionável. Por lei, o ato sexual com menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, o que garante às vítimas o acesso ao procedimento – ou deveria garantir.
Um levantamento sobre a oferta e a realização de aborto previsto em lei mostra que, em 2019, o procedimento foi realizado em apenas 3,6% dos municípios brasileiros. Nenhum deles ocorreu em cidades com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, o IDH-M, muito baixo, nem com menos de 10 mil habitantes.
Quase 80% dos abortos legais foram realizados em cidades com IDH-M alto ou muito alto e, em 59% dos casos, em municípios com mais de 100 mil habitantes.
Diante desses dados, o estudo calculou que mais de 1.500 procedimentos podem não ter sido realizados por falta de oferta no município. Isso significa que 46% das mulheres que tinham direito ao aborto legal não foram atendidas.
Cinco anos depois, um levantamento realizado pela GloboNews, com base no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde, mostrou que o acesso ao aborto legal ficou mais difícil em 2024. Apenas 1,8% dos municípios oferecem atualmente o serviço em unidades de referência da rede de saúde, sendo 47% delas localizadas nas capitais.
O que um prefeito tem a ver com isso?
Em ano de eleição municipal, propostas de políticas públicas que garantam o atendimento de adolescentes vítimas de estupro e grávidas, bem como o acesso rápido e fácil ao aborto legal, deveriam estar contempladas nos programas de governo dos candidatos a prefeitos, mas a discussão passa ao largo.
Segundo a obstetra Liduína Rocha, ex-presidente do comitê de prevenção à morte materna, fetal e infantil do estado do Ceará, o debate foi capturado pela pauta moral, usada pela extrema direita para controlar os corpos das mulheres.
Rocha defende que os candidatos às prefeituras deveriam construir uma política pública municipal de prevenção, começando com educação sexual nas escolas.
Assim, as meninas teriam conhecimento para entender mais rapidamente quando são vítimas de violência sexual. “Em mais de 80% das vezes, o estuprador é alguém da rede de afeto, o que dificulta o reconhecimento e a tomada de ação pela família”, destacou.
Já no caso de uma gestação, a obstetra diz que deve haver uma política pública clara, com acesso facilitado ao aborto legal para essas meninas.
“O ideal é descentralizar o serviço, que os hospitais e maternidades sejam treinados para fazer o procedimento e que qualquer unidade fosse capaz de acolher uma menina ou mulher com direito ao aborto”, disse.
Se considerarem as evidências científicas e os dados oficiais, os candidatos vão tratar o assunto como uma questão de saúde pública. Afinal, é mais perigoso para a vida de uma mulher, principalmente se ela for adolescente, manter uma gestação do que interrompê-la por meio de um aborto seguro.
Enquanto centenas de meninas e adolescentes morreram por problemas na gravidez, no parto ou no puerpério em seis anos, segundo os registros do DataSUS, nenhuma morreu ao fazer um aborto por motivos médicos ou legais, ou seja, em casos de estupro, de feto anencéfalo ou de risco de morte para a mulher. Considerando todas as faixas etárias, ocorreram apenas três mortes nesse período.
Corpos de adolescentes não estão preparados para a gravidez
Segundo Rocha, que também integra o Rebentos, um coletivo de médicos em defesa da ética, da vida e do SUS, essas mortes acontecem porque os corpos de meninas dessa idade não estão prontos para uma gravidez.
“A gestação aumenta o volume de sangue, do trabalho cardíaco e da pressão intrauterina, fazendo com que o risco global de morte aumente em torno de cinco vezes nessa faixa etária”, disse.
As principais causas de morte são hemorragia, insuficiência cardíaca e pré-eclâmpsia, que é a pressão alta induzida pela gestação e está relacionada aos extremos da vida reprodutiva, como explicou a obstetra.
Para além do risco maior de morrer, Rocha destaca que uma adolescente grávida tem a projeção de vida completamente comprometida, começando pela evasão escolar, que vai dificultar a chance de inserção profissional. “É um ciclo de empobrecimento, da perda da capacidade de sonhar e de ser sujeito de si mesma”, afirmou.
De acordo com Rocha, meninas de até 14 anos e mulheres com déficit intelectual então entre as vítimas de estupro que demoram mais para conseguir o aborto legal. “Muitas delas nem sabem que têm direito, porque as informações não são acessíveis”, disse a obstetra.
O processo é tão difícil, afirmou a médica, que, muitas vezes, o nascimento ocorre. Por hora no Brasil nascem 44 bebês de mães adolescentes, sendo que duas têm idade entre 10 e 14 anos, de acordo dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, do Sistema Único de Saúde.
“A essas meninas é dada uma condição compulsória de maternidade. Elas se tornam mães sem qualquer direito a acolhimento, assistência ou integridade”.
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