O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), mandou bloquear as contas da empresa Starlink no Brasil, diante da ausência de representantes do X (antigo Twitter) no país. Foto: Saulo Angelo/Folhapress.

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Elon Musk não desafia apenas o STF – mas a soberania nacional

Ao envolver Starlink, bilionário mostra como instrumentaliza suas empresas para fins políticos. E o Brasil está vulnerável a isso.

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), mandou bloquear as contas da empresa Starlink no Brasil, diante da ausência de representantes do X (antigo Twitter) no país. Foto: Saulo Angelo/Folhapress.

Clientes da Starlink no Brasil receberam na noite de quinta-feira, 29, um e-mail inesperado. A empresa informava que continuaria prestando serviços, mesmo que gratuitamente, após a ordem judicial do ministro Alexandre de Moraes que congelou suas contas. A nota podia ter acabado ali, mas foi além. Criticou a “determinação infundada” e afirmou estar “comprometida em defender” os direitos dos clientes “protegidos por sua Constituição”. 

Foi mais uma oportunidade que Elon Musk, o bilionário dono do Starlink e da rede social X, encontrou para bater no judiciário brasileiro – desta vez, mobilizando uma imensa base de clientes de seus satélites contra as decisões do STF. 

Para especialistas ouvidas pelo Intercept Brasil, a postura de Musk deve ser entendida não apenas como um ataque ao Supremo – mas à própria soberania nacional. 

“Nós podemos ter críticas às decisões de Moraes enquanto brasileiros e podemos discutir internamente. Mas o fato é que o Brasil hoje é uma democracia com instituições, com três poderes que tomam decisões sobre o que acontece no país”, diz Nina Santos, pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, o INCT.DD. 

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“O que Musk faz é tentar se sobrepor a essas decisões. É dizer que ele, enquanto dono de uma plataforma digital, não é obrigado a obedecer a decisões das quais discorda”, disse Santos. “Trata-se de um empresário americano que acha que pode desrespeitar decisões de uma instituição brasileira”. 

Até outubro de 2023, 90% das cidades da Amazônia tinham ao menos uma antena Starlink conectando-as à internet. Em um texto publicado em abril, Luã Cruz, coordenador de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, alertou que depender exclusivamente da Starlink para garantir conexão nessas regiões poderia deixar a população “suscetíveis às vontades de um único indivíduo”. Foi o que aconteceu. 

“A gente enquanto sociedade, e evidentemente com a responsabilidade maior dos poderes públicos, foi construindo essa infraestrutura de comunicação que hoje nos deixa muito vulneráveis”, analisa Santos.

Para a pesquisadora, é preciso olhar para a escalada nas tensões não como uma discordância entre Musk e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes – mas como um episódio de desrespeito à soberania brasileira. 

Intimado pelo perfil oficial do STF brasileiro no próprio X a indicar um representante legal no Brasil sob a pena de ter a plataforma suspensa, Elon Musk respondeu com um tweet-ameaça: uma foto de um homem calvo atrás de grades e, por escrito, a promessa de que veria Moraes preso um dia. Depois, mais tweets: uma ilustração de um rolo de papel higiênico com “Alexandre” escrito, e montagens comparando Moraes a um vilão da saga Star Wars.

Reprodução X
“Você gosta do meu papel higiênico?”, diz a postagem de Elon Musk. Reprodução X

Na quinta-feira, 29, a Globonews revelou que em 18 de agosto Moraes mandou bloquear os valores do grupo Starlink no Brasil como forma de garantir que o X pagasse as multas pendentes. A empresa está recorrendo no STF contra a decisão de Moraes e pede o desbloqueio das contas. 

Mas Musk extrapolou os limites da corte e levou a discussão para a arena pública. Ao envolver a Starlink nos ataques ao Supremo, Musk deixou claro como  sua disputa com o STF não acaba com o iminente bloqueio do X. Ao bilionário, interessa e muito manter o Brasil como antagonista dessa liberdade de expressão absoluta que ele diz defender. Sai de cena Twitter/X, entra Starlink.

Reprodução X
“Um dia, Alexandre, essa foto sua na prisão será real. Grave minhas palavras”, diz a postagem de Elon Musk. Reprodução X

Ao dizer que a Starlink está “comprometida em defender seus direitos protegidos por sua Constituição”, Musk envolve um personagem que não cabe nessa disputa. E pior: sugere que uma empresa estrangeira, prestadora de serviços de conectividade, tem a prerrogativa de defender os cidadãos de um país democrático de suas próprias instituições.

Só que a imagem de Musk como paladino defensor da liberdade de expressão ou dos direitos democráticos, como ele diz aos clientes da Starlink, já não cola faz tempo. Quando ele diz que é este o motivo de descumprir ordens judiciais do Supremo Tribunal Federal, é só um jogo de palavras.

Se ele acreditasse nisso, não teria cumprido com as ordens de remoção de conteúdo e de bloqueio de contas do governo autoritário de Narendra Modi, na Índia. 

Tampouco teria aceitado restringir conteúdos na Turquia a pedido do presidente Tayyip Erdogan. Em ambos os casos, cumpriu as ordens sem acusar censura. Qual a diferença entre a Turquia, a Índia e o Brasil de hoje? Quem está no poder no Brasil não é mais a extrema direita, com quem Musk se alinha. 

“A resposta do Musk ao Alexandre de Moraes e, ali no início do ano ao [Presidente] Lula em alguns tweets, é uma confirmação de que ele usa o Brasil como lugar para colocar em plano suas posições políticas”, disse Bruna Santos, gerente de campanhas global na Digital Action e integrante da Coalizão Direitos na Rede.

Em pleno ano eleitoral nos Estados Unidos, Musk não esconde qual seu alinhamento político: basta passear pelo seu feed do X para ver a quantidade de posts misóginos contra a candidata democrata Kamala Harris. Em meados de agosto, o bilionário convidou o candidato republicano Donald Trump para um papo amigável (mas cheio de falhas técnicas) no X Spaces. 

“Essa falta de compliance e de decoro com as autoridades brasileiras – e não só com o Alexandre de Moraes mas também com o Supremo – deixa muito claro qual a posição política do Elon Musk e que ele vai continuar desafiando essas ordens judiciais quando vierem de países com governos um pouco mais progressistas e que não fazem parte desse alinhamento político dele”, disse Bruna.

País de segunda classe

A falta de decoro e o descumprimento das decisões judiciais por Musk reforçam também, segundo a pesquisadora, a tese defendida há anos por acadêmicos e pela sociedade civil de que há uma disparidade no tratamento dado pelas big techs a países do Norte Global versus países do Sul Global, como o Brasil. 

O embate do bilionário com o judiciário se soma a uma série de ações que corroboram essa tese, como o desmonte de equipes de moderação de conteúdo e o desmantelamento dos times de Trust & Safety, que garantem a integridade do conteúdo nas plataformas.

Como efeito colateral da desobediência do Twitter, outras empresas que operam no Brasil também seguiram ações semelhantes, como redução de investimentos e esforços no Brasil. Não quer dizer que elas irão entrar em confronto com o Supremo como faz Musk, mas que ganham margem para serem menos complacentes. “Esse precedente acaba mostrando que pode haver uma certa leniência com esse tipo de comportamento”, disse Nina.

O desafio, para a pesquisadora, é que o Supremo encontre um equilíbrio entre mostrar que existem limites para o comportamento das empresas, ao mesmo tempo em que reconheça que elas se tornaram infraestruturas centrais para a vida de muitos brasileiros. 

Para a pesquisadora, a regulação de plataformas digitais precisa passar por uma regulação econômica que discuta monopólios ou oligopólios. 

“Essa sobreposição de camadas que vão ficando na mão de poucas pessoas em poucas empresas do cenário internacional, muito concentradas nos Estados Unidos, e com pouquíssimas regras sobre como elas devem obedecer a legislações e decisões de outros países é um novo momento do capitalismo internacional, e que coloca desafios muito grandes”. 

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